A Quaresma é um tempo forte da vida de toda a Igreja no qual todos somos convidados a empreender um caminho penitencial de 46 dias, assinalado pelo espírito da oração, do jejum e da esmola (caridade fraterna). É um tempo “favorável” para todos, como se anuncia na Quarta-Feira de Cinzas, pois está em jogo a história salvífica de toda a humanidade e, por conseguinte, da inteira criação. Neste caminho quaresmal necessitamos estar atentos à Palavra de Deus que nos remete para a história da salvação narrada no Antigo Testamento, como ressalta a pessoa de Nosso Senhor Jesus Cristo no seu caminho pascal (Paixão, Morte e Ressureição). Logo, é a Palavra de Deus meditada e contemplada na oração que nos transforma mediante sadias atitudes penitenciais, simbolizados no jejum e, consequentemente, nos inspira e motiva a obras concretas de misericórdia, compaixão e caridade simbolizados na esmola.
Neste itinerário quaresmal, em comunhão com toda a Igreja no Caminho de Esperança, o Conselho Episcopal Pastoral da CNBB escolheu uma belíssima temática para a Campanha de Fraternidade deste ano de 2025: Fraternidade e Ecologia Integral com seu lema: “Deus viu que tudo era muito bom” (Gn1,31). Qual a motivação deste tema?
A primeira motivação vem da própria Igreja que, neste ano, celebra o Jubileu Ordinário de 2025. Mediante a Bula Spes non confundit (A esperança não decepciona), o Papa Francisco nos alerta à necessidade de estarmos atentos ao risco do imediatismo imposto pelo mundo digital (‘aqui e agora’) para novamente abrir o coração à admiração da vida, da alternância das estações, das flores e frutos no seu respectivo tempo, como os olhos da alma de São Francisco de Assis ao compor, há exatamente 800 anos, o Cântico das Criaturas (cf. Bula n. 4). Que os sinais de esperança, a começar pela paz, passem pela transmissão dos valores da vida, concretizem os sonhos dos jovens, se voltem às pessoas privadas de liberdade, aliviem o sofrimento das enfermas e seus cuidadores, fortaleça a esperança da pátria aos migrantes, refugiados e exilados, alivie a solidão dos idosos e, que cessem as ondas do empobrecimento para que a Mãe Terra possa acolher a todos com o mesmo respeito e dignidade, pois ela é a verdadeira “mãe que nos sustenta e governa” (cf. Bula n. 7-15).
A esta motivação do Ano Santo, também fazemos memória dos 10 anos de publicação da Carta Encíclica Laudato Si’ e, mais recentemente, da Exortação Apostólica Laudate Deum. Se Quaresma é tempo de conversão e penitência, a provocação do tema da Campanha da Fraternidade de 2025 deseja ajudar-nos a sair de um possível intimismo espiritual e narcisista para conduzir-nos pela Palavra de Deus a uma verdadeira conversão ecológica integral, onde todos somos convocados a dar nossa contribuição à crise social e ecológica e, vivificados no Espírito do Criador, renovar a face da terra, a nossa Casa Comum, onde tudo está interligado. Os fenômenos e desastres climáticos, o risco da sustentabilidade da própria Criação, a morte da biodiversidade, a alta produção de dejetos poluidores que criminosamente são lançados na água, na terra e no ar, devem alertar-nos a um exame de consciência e fazer de coração sincero nosso “mea-culpa”.
Se nós, criaturas humanas, fomos colocados pelo Criador a um estado de excelência no mundo criado, nem sempre nos posicionamos como filhos e filhas, principalmente quando nos “deleitamos nos vícios e pecados”. Francisco de Assis, o cantador impar do Deus-Criador que se revela em todas as criaturas, nos convida a estarmos mais atentos, isto é, a prestar atenção à nossa grandeza, mas também às nossas fragilidades. Por isso, com a sua sabedoria e grandeza de alma, nos admoesta: “Todas as criaturas que há sob o céu, à sua maneira, servem, reconhecem e obedecem ao seu Criador melhor do que tu” (cf. Admoestações V,2). A maior glória da criatura humana não está no ensimesmamento, na autorreferencialidade, mas quando somos capazes de “gloriar-nos em nossas fraquezas e em carregar cada dia a santa cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo” (Adm V,8).
As biografias de São Francisco de Assis, especialmente a Compilação de Assis, narram que o Pobre de Deus, depois de ter carregado a cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo e ter chagado com ela ao ápice da perfeição do Evangelho, retorna a Assis. Na sua terra natal ele é recolhido numa choupana ao lado da Igreja de São Damião, onde se encontrava Clara de Assis e suas Irmãs. Ali, em meio à miséria e pobreza da choupana, sofre no corpo a dor suplicada no Monte Alverne, associada à dor que aflige a sua alma. Em uma noite, em meio às dores e desconfortos, da quase cegueira e ferimentos das chagas, faz a experiência do perdão e da reconciliação. Nasce ali, neste chão da conversão inicial (“Vai, Francisco, e restaura a minha Igreja”), o Cântico das Criaturas, fruto de um coração amadurecido no amor, na dor e no vigor do Evangelho.
E o biógrafo da Compilação de Assis deixou-nos a herança de uma preciosa pérola quaresmal para a nossa meditação, oração e conversão espiritual e ecológica. Relata que Francisco, em meio à dor do corpo e da alegria na alma por sentir-se confortado pelo Senhor, compõe o novo “Louvor do Senhor pelas suas criaturas de que nos servimos a cada dia, sem as quais não podemos viver e nas quais o gênero humano muito ofende o Criador e doador de todos os bens” (CA 83,21-22).
Conversão é colocar-nos como irmão/irmã ao lado de todas as criaturas para com eles servir, reconhecer e obedecer ao seu Criador e, com Francisco, convidar toda a criação para o hino da Ressurreição de um novo céu e de uma nova terra: “Nações todas, batei palmas, aclamai a Deus com gritos de exultação… Alegram-se os céus, e exulte a terra, comovam-se os mares e tudo o que eles encerram, regozijar-se-ão os campos e tudo o que neles existe. Cantai-lhe um cântico novo, canta ao Senhor a terra inteira” (Ofício da Paixão, VII). Sim, “louvado sejas, meu Senhor, com todas as tuas criaturas”.
Frei Fidêncio Vanboemmel