Os soldados foram e quebraram as pernas de um e, depois do outro, que foram crucificados com Jesus. Ao se aproximarem de Jesus, e vendo que já estava morto, não lhe quebraram as pernas; mas um soldado abriu-lhe o lado com uma lança, e logo depois saiu água e sangue. Aquele que viu, dá testemunho e seu testemunho é verdadeiro; e ele sabe que fala a verdade, para que vós também acrediteis. Isso aconteceu para que se cumprisse a Escritura que diz: Não quebrarão nenhum de seus ossos. E outra Escritura ainda diz: Olharão para aquele que traspassaram (Jo 19, 32-37).
1. A cena realmente chama atenção. Jesus já estava morto, tendo exalado o último suspiro (Jo 19,30). Por que o interesse do evangelista em continuar a narração? Jesus estava morto. Era um cadáver a ser retirado do patíbulo. O olhar da fé, no entanto, continua sua contemplação e perquirição. Aí está o mistério do corpo de Jesus, inseparável de sua pessoa e de sua obra. A obra de Jesus já havia revelado desígnios insondáveis. Com o toque da lança haver-se-ia de descobrir a interioridade de seu corpo. Um corpo cujos ossos não foram quebrados, como um verdadeiro cordeiro pascal. Um corpo do qual emana aquilo que tinha sido o motor interno de toda a sua vida: sangue e água.
2. O sangue, para a Escritura, representa a vida (cf. Gn 9,3-6). Desta maneira, o sangue de Jesus que mana do lado aberto é sua vida plenamente doada até o final, mostrando que tudo se havia cumprido e que, desta forma, no alto da cruz, atrairia todos a si (Jo 12,32). Também brota a água do Espírito que o Senhor dá aos seus, o mais excelente de seus dons, através do qual os discípulos continuarão sua vida em Cristo. Na força do Espírito passarão a glorificar o Pai, depois do desaparecimento de Jesus. Belíssimos dons do sangue e da água.
3. Para captar o alcance destas imagens, importante levar em conta as duas citações bíblicas. A primeira alude ao Cordeiro Pascal, dando a entender que Jesus é o verdadeiro Cordeiro Pascal, imolado, que salva os homens do pecado numa nova páscoa. A segunda remete para Zacarias. Ao ser sido traspassado, Jesus se manifesta como verdadeiro Messias, cuja morte vinha já prefigurada em diversos textos do Novo Testamento. A figura do Messias aproxima-se daquela do Servo de Javé que, entregando sua vida a Deus, manifesta e revela o Amor de Deus. Por meio de Cristo, mediador, esse amor se derrama sobre o povo. Esse Jesus que se acerca de Deus passa pelo momento da entrega sacrifical da vida. Paradoxalmente de sua morte brota a vida, pela efusão do Espírito que mana do coração dilacerado.
4. O versículo 37 transcreve Zacarias 12,10. Trata-se de um olhar de fé. Esse olhar alimenta a fé. Olhar que contempla o mistério do amor e da redenção. Olhando, reconhecemos o amor que verte sangue. Pode-se considerar a fé como um saber olhar. Bento XVI, na mensagem da quaresma de 2007, intitulada «Hão-de olhar para aquele que trespassaram», escreve: “Na cruz, o próprio Deus mendiga o amor de sua criatura. Tem sede do amor de cada um de nós”.
5. A Escritura, de modo especial o evangelho de João, se refere de modo bastante claro ao coração de Jesus como fonte de águas vivas. Estas fontes simbolizam o Espírito Santo que se derrama no coração dos fiéis. As águas brotam do interior de Jesus, do centro de sua vida, de seu coração.
6. “Coração” é uma palavra primordial em muitas culturas. Alguns a designam de “proto-palavra”, que nos coloca diante do fundamental, do básico e fundamental, do originário e profundo nunca penetrável pelo raciocínio. O coração descreve a pessoa em seu conjunto, em sua verdade e autenticidade. Muitas vezes, o coração se situa no relacionamento com Deus. Deus conhece e perscruta o coração humano (cf. Jr 17,10).
Obs.: Esta reflexão se inspirou em El corazón de Jesús; manantial que sacia la sed, Gabino Uríbarri, SJ, in Sal Terrae 965 (2008), p. 507-509.
Frei Almir Ribeiro Guimarães