Depois de recuar significativamente até meados da década passada, a fome voltou a crescer no Brasil e a chamada insegurança alimentar disparou nos dois últimos anos. São quase 117 milhões de pessoas nessa situação, sem acesso pleno e permanente a alimentos. Além deles, há ainda 19,1 milhões de brasileiros que efetivamente passam fome, em um quadro de insegurança alimentar grave.
Os dados fazem parte do Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, desenvolvido pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar (Rede Penssan). Pela pesquisa, mais da metade da população está em situação de insegurança alimentar, seja leve, moderada ou grave. Dessa forma, o total passou de 36,7% dos domicílios, em 2018, para 55,2% no final do ano passado.
EM MEIO À PANDEMIA DA COVID-19, O BRASIL VIVE UM PICO EPIDÊMICO DA FOME: 19 MILHÕES DE BRASILEIROS ENFRENTAM A FOME NO SEU DIA A DIA
O Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 foi realizado em 2.180 domicílios nas cinco regiões do país, em áreas urbanas e rurais, entre 5 e 24 de dezembro de 2020.
Os resultados mostram que nos três meses anteriores à coleta de dados, apenas 44,8% dos lares tinham seus moradores e suas moradoras em situação de segurança alimentar. Isso significa que em 55,2% dos domicílios os habitantes conviviam com a insegurança alimentar, um aumento de 54% desde 2018 (36,7%).
Em números absolutos: no período abrangido pela pesquisa, 116,8 milhões de brasileiros não tinham acesso pleno e permanente a alimentos.
Desses, 43,4 milhões (20,5% da população) não contavam com alimentos em quantidade suficiente (insegurança alimentar moderada ou grave) e 19,1 milhões (9% da população) estavam passando fome (insegurança alimentar grave).
É um cenário que não deixa dúvidas de que a combinação das crises econômica, política e sanitária provocou uma imensa redução da segurança alimentar em todo o Brasil.
O BRASIL CONTINUA DIVIDIDO ENTRE OS POUCOS QUE COMEM À VONTADE E OS MUITOS QUE SÓ TÊM VONTADE DE COMER
A fome no Brasil é um problema histórico, mas houve um momento em que fomos capazes de
combatê-la.
Entre 2004 e 2013, os resultados da estratégia Fome Zero aliados a políticas públicas de combate à pobreza e à miséria se tornaram visíveis.
A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), realizada em 2004, 2009 e 2013, revelou uma importante redução da insegurança alimentar em todo o país. Em 2013, a parcela da população em situação de fome havia caído para 4,2% – o nível mais baixo até então. Isso fez com que a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura finalmente excluísse o Brasil do Mapa da Fome que divulgava periodicamente.
Mas esse sucesso na garantia do direito humano à alimentação adequada e saudável foi anulado. Os números atuais são mais do que o dobro dos observados em 2009.
A FOME RETORNOU AOS PATAMARES DE 2004.
E o retrocesso mais acentuado se deu nos últimos dois anos. Entre 2013 e 2018, segundo dados da PNAD e da POF (Pesquisa de Orçamentos Familiares), a insegurança alimentar grave teve um crescimento de 8,0% ao ano. A partir daí, a aceleração foi ainda mais intensa: de 2018 a 2020, como mostra a pesquisa VigiSAN, o aumento da fome foi de 27,6%.
Ou seja: em apenas dois anos, o número de pessoas em situação de insegurança alimentar grave saltou de 10,3 milhões para 19,1 milhões. Nesse período, quase 9 milhões de brasileiros e brasileiras passaram a ter a experiência da fome em seu dia a dia.
FOME NÃO TEM HORA, MAS TEM LUGAR
Segundo a pesquisa VigiSAN, a insegurança alimentar cresceu em todo país, mas as desigualdades regionais seguem acentuadas. As regiões Nordeste e Norte são as mais afetadas pela fome.
Em 2020, o índice de insegurança alimentar esteve acima dos 60% no Norte e dos 70% no Nordeste – enquanto o percentual nacional é de 55,2%. Já a insegurança alimentar grave (a fome), que afetou 9,0% da população brasileira como um todo, esteve presente em 18,1% dos lares do Norte e em 13,8% do Nordeste.
O Nordeste apresentou o maior número absoluto de pessoas em situação de insegurança alimentar grave, quase 7,7 milhões. Já no Norte, que abriga apenas 7,5% dos habitantes do Brasil, viviam 14,9% do total das pessoas com fome no país no período.
Além disso, a conhecida condição de pobreza das populações rurais, sejam elas de agricultores(as) familiares, quilombolas, indígenas ou ribeirinhos(as), tem reflexo importante nas condições de segurança alimentar. Nessas áreas, em todo o país, a fome se mostrou uma realidade em 12% dos domicílios.
A FOME TEM GÊNERO, COR E GRAU DE ESCOLARIDADE
Algumas condições individuais podem afetar negativamente a situação de segurança alimentar.
Nos dados de 2020, em 11,1% dos domicílios chefiados por mulheres os habitantes estavam passando fome, contra 7,7% quando a pessoa de referência era homem.
Das residências habitadas por pessoas pretas e pardas, a fome esteve em 10,7%. Entre pessoas de cor/raça branca, esse percentual foi de 7,5%.
A fome se fez presente em 14,7% dos lares em que a pessoa de referência não tinha escolaridade ou possuía Ensino Fundamental incompleto. Com Ensino Fundamental completo ou Ensino Médio incompleto, caiu para 10,7%. E, finalmente, em lares chefiados por pessoas com Ensino Médio completo em diante, despencou para 4,7%.
A FOME NÃO ANDA SOZINHA
A fome vem acompanhada de muitas outras carências, destacadamente a falta de água.
A insegurança hídrica, medida pelo fornecimento irregular ou mesmo falta de água potável, atingiu em 2020 40,2% e 38,4% dos domicílios do Nordeste e Norte, respectivamente, percentuais quase três vezes superiores aos das demais regiões.
O abastecimento irregular de água é uma das condições que aumentam a transmissão pessoa a pessoa da Covid-19, ocorrendo com maior frequência em domicílios e regiões mais pobres do país.
A relação entre a insegurança alimentar e a insegurança hídrica é incontestável. Segundo a pesquisa VigiSAN, a proporção de domicílios rurais com habitantes em situação de fome dobra quando não há disponibilidade adequada de água para a produção de alimentos (de 21,8% para 44,2%).
A INSEGURANÇA ALIMENTAR PODE TER AVANÇADO TAMBÉM ENTRE AS PESSOAS QUE NÃO SE ENCONTRAM EM CONDIÇÃO DE POBREZA
Houve em dois anos um aumento acentuado na proporção da insegurança alimentar leve – de 20,7% para 34,7%.
Cerca de metade dos entrevistados relatou redução da renda familiar durante a pandemia, provocando inclusive cortes nas despesas essenciais. Esses lares constituem o grupo com maior proporção de insegurança alimentar leve – por volta de 40%.
Isso aponta para o impacto da pandemia entre famílias que tinham renda estável, que provavelmente foram empurradas da segurança alimentar para a insegurança alimentar leve.
A crise econômica agravada pela pandemia está fazendo com que a insegurança alimentar se alastre inclusive entre os que não se encontram em condição de pobreza.
POLÍTICAS DE GERAÇÃO DE EMPREGO E RENDA
+ AUXÍLIO EMERGENCIAL = COMBATE EFETIVO À FOME NA PANDEMIA
Um dado se destaca: a insegurança alimentar moderada e grave desaparece por completo em domicílios com renda familiar mensal acima de um salário-mínimo per capita: 0,0%.
No que se refere à situação de trabalho da pessoa de referência dos domicílios, a ocorrência da fome foi quatro vezes superior entre aquelas com trabalho informal e seis vezes superior quando a pessoa estava desempregada.
A SOLUÇÃO PARA ERRADICAR A FOME PASSA, ENTÃO, POR POLÍTICAS DE GERAÇÃO DE EMPREGO E RENDA.
Em tempos de Covid-19, no entanto, os desafios são maiores. O sucesso da garantia do direito humano à alimentação adequada, alcançado até 2013, foi progressivamente revertido a partir de 2014, e ganhou impulso negativo maior com o início da pandemia da Covid-19.
Famílias que solicitaram e receberam parcelas do auxílio conviviam com alta proporção de insegurança alimentar moderada ou grave (28%), o que enfatiza a grande vulnerabilidade desse grupo. Sem uma resposta adequada dos governos em forma de políticas públicas, a fome vai persistir – e aumentar.
A escalada da fome durante a pandemia não é de responsabilidade de um vírus, mas de escolhas políticas de negação e da ausência de medidas efetivas de proteção social.
PRECISAMOS OLHAR PARA A FOME, TODAS E TODOS NÓS. ESSE DESAFIO TAMBÉM É NOSSO.
VEJA A PESQUISA COMPLETA EM http://olheparaafome.com.br