Mirna Yamazato Koda
Falar sobre diálogo num contexto atual caracterizado pela polarização de posições e de disputa pela verdade, me parece uma tarefa necessária para encontramos caminhos alternativos num cotidiano marcado pela violência, em maior ou menor grau pelos insultos, desrespeito e intolerância.
Quando recebi o convite para refletir sobre o tema: “Disposição psicológica para o diálogo”, pensei na indagação que ele coloca: haveria tendências psicológicas nos sujeitos que facilitariam o exercício do diálogo? Em meu percurso como psicóloga social, pensar características psicológicas do ser humano sempre passa por pensar seu grupo e seu contexto social mais amplo. Assim, para se falar sobre uma disposição psicológica ao diálogo, é necessário considerarmos os processos de subjetivação na atualidade e que formas de subjetividade estão sendo privilegiadas. Tal discussão visa refletir sobre as problemáticas que temos com relação ao diálogo (que em última instância geram processos de exercício da violência), buscando pensar caminhos para a superação dessas dificuldades, possíveis pontes de solidariedade entre os seres humanos.
Em minhas aulas, ao trabalhar alguns conteúdos, gosto de buscar imagens na internet a partir de uma palavra chave, tanto para ilustrar o material didático como para ter uma ideia das representações sociais acerca de tal questão. Ao jogar a palavra “diálogo” na página de busca de imagens, surgem vários desenhos de duas ou mais pessoas falando. Pois é, apenas falando… Mesmo considerando as limitações de um desenho ao representar uma ideia, acho que essas imagens são ilustrativas daquilo que me proponho a refletir aqui. Observamos, no dia a dia de nossas relações, pessoas muito mais falando do que escutando, conversas que se tornam um conjunto de monólogos, pessoas que, mais do que dialogar e refletir, buscam impor sua verdade no afã de terem razão e vencerem a discussão sobre o outro.
Gosto daquele conhecido texto de Rubem Alves (2011) sobre Escutatória:
Sempre vejo anunciados cursos de oratória. Nunca vi anunciado curso de escutatória. Todo mundo quer aprender a falar. Ninguém quer aprender a ouvir. (…) Parafraseio o Alberto Caeiro: “Não é bastante ter ouvidos para se ouvir o que é dito. É preciso também que haja silêncio dentro da alma.” Daí a dificuldade: a gente não aguenta ouvir o que o outro diz sem logo dar um palpite melhor, sem misturar o que ele diz com aquilo que a gente tem a dizer. (…) Nossa incapacidade de ouvir é a manifestação mais constante e sutil da nossa arrogância e vaidade: no fundo, somos os mais bonitos…
Quando era adolescente, me lembro de ir assistir a alguns monólogos nos teatros de São Paulo. Tinha virado moda atores mais famosos fazerem monólogos. Hoje em dia vemos isso a todo momento nos shows de stand up. Pessoas falam sozinhas com personagem “criados” pelo protagonista. Uma boa ilustração dos relacionamentos atuais, numa sociedade em que o que vale é a imagem e o reconhecimento que obtemos, o outro vira plateia ou escada para um triunfo pessoal. Acabamos por falar e nos relacionar com projeções de nós mesmos, mas não com o outro real.
A capacidade de diálogo está muito além da aptidão intelectual de fala e de argumentação dos sujeitos. Ela implica nessa arte que Alberto Caeiro coloca de fazer silêncio dentro da alma, na capacidade de escuta e de silenciar por instantes nossos desejos e nosso ego. Assim, podemos construir encontros mais efetivos, compreender o outro e suas questões.
Em uma ocasião, oferecemos um curso de capacitação em Saúde Mental para trabalhadores da Rede de Saúde de diversos municípios do interior paulista. Uma situação que afligia vários profissionais eram as angústias dos pacientes que se traduziam em choro e uma necessidade de falar sobre seus próprios sofrimentos. Os profissionais se sentiam impotentes por não terem um procedimento imediato que desse uma resposta às dificuldades dessas pessoas. Sugerimos que eles escutassem aquilo que esses pacientes tinham a falar. Esses profissionais retornaram nas próximas semanas do curso surpresos com a percepção de que a escuta atenta e sem julgamentos ocasionava um alívio para esses sujeitos em sofrimento. A partir disso, era possível entender melhor a situação vivida e daí delinear ações a serem efetuadas. A fala daqueles era: “Eu só escutei e ele(a) se sentiu melhor, mais aliviado!”. O escutar parece ser desqualificado como algo passivo e secundário perante o lugar da fala.
Porém, onde essas questões se ancoram e encontram sua base de constituição?
A capacidade de pensamento (consciência) e comunicação (linguagem) são aspectos muito próprios do ser humano e o diferenciam de outros animais. O ser humano se constitui a partir de sua rede de relações inserida em um contexto social específico. É a partir de suas relações iniciais e da linguagem que a criança vai introjetando aspectos do mundo externo e constituindo assim seu mundo interno. Isso tem continuidade ao longo de toda vida da pessoa. O psicanalista Renè Kaës (2012) afirma que todo sujeito é sujeito do grupo, no sentido de que o grupo (e consequentemente as instituições e a sociedade) serve como apoio psíquico para a constituição do sujeito.
No que diz respeito à conjuntura macrossocial, vivemos atualmente sob a égide do discurso neoliberal e da globalização da economia. Nesse cenário, a questão econômica suplanta fronteiras nacionais e coloca o “deus mercado” acima de questões nacionais e sociais. O contexto cultural é pautado por dois grandes imperativos: a competitividade e o consumo. Desse modo, impulsionados por esses dogmas, vivemos um tempo em que nada é duradouro, tudo é efêmero (Santos, 2002). O sujeito é lançado constantemente no campo do incerto e da falta: incertezas com relação a seu futuro, a seu emprego, suas relações afetivas, a sua segurança. Se tudo pode se tornar objeto de consumo, também pode se tornar descartável após seu uso. As pessoas vivem sempre o risco iminente da desqualificação e da segregação, elas podem se tornar obsoletas instantaneamente. Desse modo, o sentimento de desamparo sempre está à espreita.
O paradigma da competitividade e consumo está na base de um ethos que se impõe às relações sociais e interpessoais influenciando a produção de subjetividade contemporânea. A competitividade é fonte de novas formas de totalitarismos e segregações. O que vale é vencer. Levada às suas últimas consequências, ela provoca um afrouxamento dos valores morais e um convite ao exercício da violência (Santos, 2002). Assim, a responsabilidade perante o outro e a humanidade se esvai. Esse cenário favorece o individualismo, enfraquecendo a ideia de solidariedade. Esse fenômeno se multiplica na internet e na mídia em geral. A expressão de uma posição prescinde do respeito pelo outro, dando lugar para toda forma de ofensas.
Numa sociedade que valoriza o espetacular, o sujeito se reduz a máscara, a imagem. Não só o indivíduo se reduz a uma persona, como também o outro que, limitado a um estereótipo, um rótulo, torna-se mais facilmente alvo dos mais diversos tipos de preconceitos e intolerâncias. Presenciamos um momento histórico onde a subjetividade assume uma configuração marcadamente estetizante, em que o olhar do outro no campo social e midiático ocupa uma posição importante em sua economia psíquica.
Desse modo, os laços sociais se pautam pelo espetáculo e o culto ao eu ganha uma importância sem precedentes (Birman, 2016). Observamos aí como consequência um empobrecimento da capacidade de pensamento, do campo simbólico e da linguagem. O campo de discussão fica minado por opiniões pessoais ou de grupos que muitas vezes negam o conhecimento científico coletivamente construído ao longo de séculos. Nesse contexto, o que vale mais é quem grita mais alto e faz mais ofensas (quem “lacra” a discussão).
Nesse processo, produzimos sujeitos solitários, cada vez mais voltados para dentro de si, capturados por suas imagens nos espelhos fornecidos pelo mundo do consumo. Vivemos o paradoxo de estarmos solitários no meio da multidão. Indivíduos alienados da história, do tempo, da memória (Neves 1997). Presenciamos aí um grave processo de infantilização do ser humano. Nos encontramos como seres autocentrados e alienados, presos em nossas necessidades mais básicas de amor e reconhecimento, aos imperativos da busca da satisfação e do prazer imediatos. Nesse cenário, o exercício da solidariedade e da alteridade tornam-se vazios de sentido. O sujeito perde em interioridade, densidade e profundidade.
Todo esse cenário afeta a disponibilidade para o diálogo das pessoas que querem a qualquer custo vencer o debate. Os indivíduos muitas vezes se mostram intolerantes à frustração e a assumir os próprios erros e equívocos, por macular uma imagem de pseudoperfeição que eles fantasiosamente construíram para si. Isso os mantêm em uma posição regredida, evitando situações que fazem parte da vida e que são necessárias para qualquer processo de crescimento.
Observamos na contemporaneidade a dificuldade com relação ao diálogo nos mais diferentes níveis, do micro ao macrossocial, das relações cotidianas entre as pessoas ao campo das políticas nacionais e internacionais. Dentro dessa lógica vamos construindo grandes e pequenos muros, seguindo a lógica de que se não está comigo está contra mim. Quanto mais desamparado, mais o indivíduo se apega a verdades e a certezas. Mais aterrorizador vai parecer o rival a ser combatido. Portador das projeções do mal que não pode ser reconhecido em si, sempre haverá mais à frente um novo inimigo a ser combatido.
Voltando à questão inicial: haveria tendências psicológicas nos sujeitos que facilitam o exercício do diálogo? A abertura a um efetivo diálogo implica em qualidades um pouco empoeiradas nas prateleiras do “mercado subjetivo” como empatia, capacidade de escuta, humildade. No entanto, elas devem estar ligadas a uma transformação mais profunda e paradigmática no sujeito. O exercício da alteridade não é algo fácil, exige crescimento pessoal e consciência de si. Observamos alguns métodos que têm buscado melhorar a capacidade de diálogo, como a comunicação não violenta e a mediação de conflitos. Ações de efeitos interessantes num mundo com tantas tensões. Porém, o que propomos aqui é que, além das técnicas, é necessário repensarmos nossas lógicas. Não apenas incorporar novas práticas a paradigmas antigos.
Como diz Neves (1997):
A transformação do existente só se torna possível através da ruptura com o modo de subjetivação hegemônico, ou seja, tal transformação se dá com um operar revoluções permanentes.
Rupturas locais, provisórias, potencialmente instituintes de outras formas de relação com o mundo, de outros modos de representação: outro olhar, outra escuta, outros afetos.
Efetivamente, dialogar pode ser uma ação muito perigosa ao colocar em cheque nossas certezas sobre o mundo e sobre nós mesmos. Por isso, é mais fácil monologar. Poder dialogar implica em se voltar ao outro, em sair de um autocentramento e de um narcisismo que acomete nossa cultura.
Nesse sentido, relembro uma colocação de Freud (1921/1996) que afirma que o amor por si só conhece uma barreira: o amor pelos outros, o amor pelo objeto. O amor atua como fator civilizador, de modo a ocasionar a modificação do egoísmo em altruísmo.
Ensinamento básico que está presente em diferentes vertentes religiosas e que existe há milênios. O amor ao próximo talvez seja aquilo que pode nos salvar de nós mesmos. Precisamos reconhecer e superar nossos egoísmos em benefício de modos de viver mais altruístas, mais solidários e empáticos. Tarefa desafiadora pois nos leva a encararmos e dialogarmos inicialmente com nossas fraquezas, com aquilo que não queremos ver em nós. Assim, o exercício do diálogo coloca questões desafiadoras para nós mesmos e em nossas relações cotidianas. Não se trata mais de vencer o debate, de impor sua verdade por melhor que ela seja, mas sim de encontrar caminhos para a construção de um possível bem comum para todos (humanos e não humanos). Se nosso modo de ser é construído, podemos desconstruí-los e transformá-los. A capacidade do ser humano de mudar é imensa, isso é e será sempre um potencial em nós.
Por fim, acredito que efetuar uma ruptura com os modos de subjetivação hegemônicos passa por viver e experimentar as dificuldades inerentes dos encontros e desencontros com o outro. Tornar nossa própria vida um pequeno laboratório de transformações do cotidiano. E quem sabe, sairmos daqui um pouco melhor do que entramos.
Mirna Yamazato Koda Psicóloga, professora do curso de Psicologia e do curso de especialização em Saúde Mental da Universidade São Francisco. Especialista em Saúde Coletiva pela Faculdade de Medicina da USP, doutora em Psicologia Social pelo Instituto de Psicologia da USP.
Bibliografia: