1. Uma tradição secular faz com que, nas primeiras sextas-feiras de cada mês, quando a liturgia o permite, o celebrante possa tomar o formulário da Solenidade do Coração de Jesus. Não se trata de querer salvar uma devoção tida por alguns como cheia de sentimentalismo e pouca teologia. Na verdade, algumas orações de determinados grupos, falam do Coração de Jesus de uma forma sentimental demais. Ora, pensar no Coração do Mestre é deter-se num coração de alguém que soube amar até o fim. Um coração cheio da verdadeira caridade.
2. São Clemente de Roma, na sua carta aos coríntios, escreve assim a respeito da caridade em geral e do amor de Jesus: ”A caridade não tolera a divisão, não provoca revolta. A caridade faz tudo na concórdia. Na caridade, todos os eleitos de Deus são perfeitos. Sem a caridade, nada é aceito por Deus. Na caridade, Deus nos assumiu para si. Pela caridade que tem para conosco, nosso Senhor Jesus Cristo, obediente à vontade divina, por nós entregou seu sangue, a sua carne, por nossa carne, a sua alma, por nossa alma” (Liturgia das Horas, III, p. 74).
3. Nunca nos cansaremos de contemplar os últimos momentos de vida de Jesus de Nazaré. Ele, no vigor de seus anos, teve que enfrentar a dura realidade da morte violenta. Uma coisa é morrer serenamente num canto, outra coisa é entregar o espírito suspenso entre o céu e a terra, num abandono inominável. Assim aconteceu com Jesus. Romano Guardini assim escreve: “Ninguém morreu como Cristo porque ele era a própria vida. Ninguém expiou como ele o pecado porque ele era a própria pureza. Ninguém caiu tão baixo como ele no nada – até essa terrível realidade evocada pelas palavras: “Deus, ó Deus por que me abandonaste”, porque ele era Filho de Deus. Ele aniquilou-se verdadeiramente. Teve que morrer quando ainda era jovem. A sua obra foi sufocada quando teria podido florescer. Os seus amigos foram-lhe arrancados, sua honra foi maculada. Não tinha mais nada e não era nada mais. “Um verme e não um homem”. Num sentido inexprimivelmente profundo, ‘desceu aos infernos’, o reino onde impera o nada” ( O Senhor, p.401).
4. Esse sim de Jesus, com esta entrega no alto da cruz, esse gesto dos gestos num momento de total abandono, é a Caridade. O mais belo dos filhos dos homens e o Filho de Deus, retomando São Clemente, “obediente à vontade divina, por nós entregou o seu sangue, a sua carne por nossa carne, a sua alma, por nossa alma”. Aquele sim varou o coração do Pai. A frágil natureza de Jesus, adquirida no seio da Virgem, feita obediência, atinge o Pai. O amor do filho de Deus feito carne, a caridade de Cristo, renova o mundo e atinge a todos. Somos invadidos e ensopados dessa caridade divina. Não se trata apenas de lembrar que um dia, crianças ainda, fomos batizados e nos revestimos desta caridade. Trata-se de fazer da existência um hino de ação de graças pelo amor que nos toca aqui e agora, de modo particular no sacrário de nossa interioridade, na nudez de nossa verdade, no doído arrependimento de sermos medícores. Não na superfície de orações barulhentas, nem de ritos frios. Contemplando a caridade de Cristo somos levados a dar uma resposta de amor. Esse pensamento não nos larga: assim como Senhor deu a vida por todos, tenho que dar a vida por ele e pelos outros.
5. Ora, precisamente esta é a finalidade da devoção ao Coração do Redentor. Ele, quando vivo foi se entregando, amando, criando um mundo novo, mundo da graça que seria derramada na história de cada um. Depois de morto, o toque da lança no seu peito nos fez “ver” a profundidade de amor de seu Coração. Nada. Jesus é nada. Aniquilou-se. Desse nada, nasceu o tudo. Os devotos do Coração do Redentor, evidentemente, são contemplativos. Gostam de fechar a porta do quarto e estar com aquele que os amou de forma estrema. Há algum mal nisto? Quem ousará dizer que isso é alienação? Ao mesmo tempo, os que se sentem agraciados, cobertos por esta Caridade, não descansam, não se aposentam, falam, andam, dão testemunho, são corajosos. Evangelizam, sem burocracia mas dando a vida pela vida dos outros, como fez o mártir do Gólgota. Conclusão: a caridade do Coração do Redentor proíbe toda sorte de aposentadoria.