Se não houvesse a cruz, Cristo não seria crucificado, a vida não teria sido pregada no lenho com cravos. Se a vida não tivesse sido cravada, não brotariam do lado as fontes da imortalidade, o sangue e a água que lavam o mundo. Não teria sido rasgado o documento do pecado, não teríamos sido declarados livres, não teríamos provado da árvore da vida, não se teria aberto o paraíso. Se não houvesse a cruz, a morte não teria sido vencida e não teria sido derrotado o inferno.
Santo André de Creta (séc.VIII)
Ele mesmo disse: “Não existe maior amor do que dar a vida pelos seus”. O coração humilde e simples do discípulo do Ressuscitado se compraz em agradecer esse amor que foi até o fim. Nunca seremos suficientemente gratos a esse que veio do seio da Trindade, que veio se instalar no seio de uma mulher transparente, agarrar-nos por dentro para sermos homens e mulheres de um mundo novo, que veio nos falar da ternura e da misericórdia do Pai. O ato extremo desse amor foi colocado na cruz. Sem forças, depois de horas de tormentosa agonia, ele dá o seu espírito ou o Espírito.
Cruz, instrumento abominável de castigo, dois pedaços de madeira entrecruzados, leito dos condenados. E lá estava ele, esse Jesus que é o ar que respiramos. Lá estava ele se contorcendo de dores e vestido dos trajes da nudez e da solidão. Expressão de um amor que vai até o fim, situação vivida com dor, mas sem revolta, consequência coerente de uma vida de dom. Um pedaço de gente, pernas, braços, peito, corpo que é dado e sangue que é vertido. No sofrimento mais hediondo esse Jesus rasga um documento que havia sido exarado contra nós. “Como é glorioso, santo e sublime ter nos céus um pai! Como é santo, consolador, belo e admirável ter um esposo! Como é santo e dileto, aprazível, humilde, pacífico, doce, amável acima de tudo, desejável ter um tal irmão e filho que expôs a sua vida por suas ovelhas”(Francisco de Assis, Carta aos Fiéis, 2ª. recensão).
“Se a vida não tivesse sido cravada, não brotariam do lado as fontes da imortalidade, o sangue e a água que lavam o mundo”, diz André de Creta. Sangue e água saindo da pedra do peito, do peito fissurado, do peito aberto pela lança do soldado, sangue que daria força aos mártires, sangue que é símbolo de uma vida dada e doada, água que deseja matar um sede de plenitude que existe nos corações sinceros e contritos, água do batismo que faz matar em nós o homem velho, água que irriga a secura de uma vida seca e árida que levamos, sangue e água que nos permitem olhar para além da porta estreita da morte e divisar um novo paraíso com a Fonte no meio.
Vale a pena ler e meditar estas palavras de São Proclo, bispo de Constantinopla: “Ó Paixão, purificação do universo! Ó morte, princípio da imortalidade e origem de vida! Ó descida à mansão dos mortos que lança uma ponte a fim de que eles passem ao reino da vida! Ó meio-dia da morte de Cristo, recordação daquele dia do paraíso em que Eva comeu o fruto! Ó cravos que fixam o mundo para Deus e traspassam a morte! Ó espinhos, fruto da videira má! Ó fel que dás a doçura da fé! Ó esponja que lavas o mundo de seu pecado! Ó instrumento, que inscreves os fiéis no livro da vida!”
O peito rasgado de Cristo é fonte de vida plena!
Frei Almir Guimarães