Bendito sejas, meu Senhor, pela água desta cruz,
que brotou juntamente com o sangue do Cristo crucificado.
Teu Espírito clama em mim, ó Deus humilhado:
“Eu sou a Ferida que cura o homem que crê!”
Michel Hubaut, OFM
1. Não nos cansamos de contemplar o mistério de Cristo. Ele, feito homem simples e andarilho, perambulou pelos caminhos poeirentos da Palestina, encontrou pessoas, fez convites e caminhou com a testa erguida na direção de Jerusalém, essa cidade dourada que tinha a triste fama de matar profetas. Nossos olhos e nosso interior se detêm de modo especial nos últimos momentos da vida do Mestre. Contemplando à distância, ajudados pelo Místico de Patmos, revestimo-nos, de modo especial no tempo da quaresma e da semana santa, dessa dimensão contemplativa que admira os extremos de amor do Senhor. Sim, na realidade aqueles momentos passados entre o céu e a terra, em que Jesus contempla do “alto” as coisas de “baixo” ficam gravados indelevelmente nas dobras do coração do discípulo.
2. Um pouco antes de inclinar a cabeça, quando ainda tudo girava em seu interior, o Filho, chegou ao cume da obediência. E, perscrutando os desejos do Pai, se amor-oblação para que o mundo pudesse viver. São Clemente I, assim se exprimiu: “Na caridade Deus nos assumiu para si. Pela caridade que tem para conosco, nosso Senhor Jesus Cristo, obediente à vontade divina, por nós entregou o seu sangue e sua carne por nossa carne e a sua alma, por nossa alma” (L.Horas III, p. 74). Esses últimos momentos da vida de Jesus são puro dom. Como puro dom é aquele momento, em que na mais modesta capela, um sacerdote, emprestando sua voz a Jesus, diz: “Isto é o meu corpo que é dado por vos1”.
3. Michel Hubaut, numa bela oração de louvor à água, extasia-se diante da cena do Gólgota. Contempla a Água da cruz que corre paralela ao Sangue. Água para os sedentos, água para os que desejam purificar-se, água que brota da fonte de um novo paraíso. Michel Hubaut, contemplando o Cristo nesse momento, o designa de Deus humilhado. Por isso, os discípulos de Cristo ficam extasiados diante dessa loucura: um Deus que se humilha. E, segundo a expressão poética do frade, Cristo se define: “Eu sou a Ferida que cura o homem que crê!”. Em muitas ocasiões Jesus vai se autodefinindo. Nessa página, ele se define como sendo ferida, chaga, janela. Tudo já estava consumado. Nada mais a fazer. Nada mais a dizer. Um homem que se tornara um verme, sem forças, cambaleante quando ficava em pé antes da crucificação, agora sem energia alguma. Realizava-se naquele momento as palavras de Isaías: “Era desprezado, era o refugo da humanidade, o homem das dores e habituado à enfermidade; era como pessoa de quem se desvia o rosto, tão desprezível que não fizemos caso dele. No entanto, foi ele que carregou as nossas enfermidades e tomou sobre si as nossas dores. E nós o considerávamos, como alguém castigado, ferido por Deus e humilhado. Mas ele foi traspassado por causa de nossas rebeldias, esmagado por causa de nossos crimes; caiu sobre ele o castigo que nos salva, e suas feridas nos curaram” (Is 53, 3-5). Ele reúne ainda o que tem de melhor e de mais expressivo no coração. Trata-se do momento de terminar uma trajetória, momento aparentemente de fracasso, de abandono de uns e de outros, mas suprema revelação do amor que rasga caminhos de salvação. Trata-se do momento de colocar a assinatura na obra de sua vida: Este que morreu de amor e que uma ferida que cura os que crêem.
4. Os que refletem sobre esse amor que vai até o fim procuram, como pede Paulo aos cristãos de Filipos ter os mesmo sentimentos de Cristo Jesus: “Ele, subsistindo na condição de Deus, não se apegou à sua igualdade com Deus, mas esvaziou-se tomando a condição de escravo” (Fl 2, 5 ss).
5. Compreendemos toda a riqueza que aparece no verso de Michel Hubaut: o Deus humilhado, o Deus chagado, com uma ferida que cura os que crêm. E os devotos do Coração de Jesus sabem perfeitamente que, ao longo de suas vidas, nada mais têm a fazer do que contemplar a ferida do amor de Deus que não fecha e cuidar das feridas dos irmãos da face da terra.