Acorre com vivo desejo a esta fonte de vida e de luz, quem quer que sejas, ó alma consagrada a Deus, e exclama com todas as forças do teu coração: “Ó inefável beleza do Deus altíssimo e puríssimo esplendor da luz eterna, vida que vivifica toda vida, luz que ilumina toda luz e conserva em perpétuo esplendor a multidão dos astros que desde a primeira aurora resplandecem diante do trono da vossa divindade” (São Boaventura)
Cenário simples, mil vezes representado por pintores: três cruzes, dois salteadores e um homem. Na verdade o Homem! Esse que é o desejado das colinas eternas, aquele que teve princípio no tempo, embora junto do Mistério da Trindade seja sem começo e sem fim. O Eterno se prepara para morrer.
Uns poucos conhecidos ao pé da cruz. Um mulher de Nazaré acostumada a acolher com carinho os desígnios do Senhor, conhecida como a Senhora do sim. Uns soldados apressados para que as coisas terminassem o mais rapidamente possível. Fim de uma história que havia começado com o sim daquela mulher que está ao pé da cruz.
Jesus vive a solidão das solidões. Aparentemente até mesmo o Pai se faz ausente. Dor, sufocamento no peito, sede na garganta, nuvens sobre olhos, suor e sangue impedem a visão daquele que se mexe e remexe no trono escandalosamente duro daquela cruz.
Seu olhar vagueia de um lado para o outro. Talvez reconheça alguns rostos entre as pessoas presentes… Esse seu olhar atravessa os tempos e perscruta os corações dos solitários de todos os lugares e de todos os tempos. Lá no alto, contorcendo-se de dores, ele estira o olhar e esses torturados de regimes políticos, esses soldados que morrem nas guerras idiotas, filhos queridos de senhoras viúvas, esses pedaços de carne e de ossos na lama, nos vagões dos trens de extermínio. Esses homens e mulheres assassinados barbaramente por causa de uma louca paixão amorosa. Essas crianças jogadas pelas janelas, espatifadas no chão, esses doentes de câncer feito encarnação da dor, esses pais e mães desesperados que nunca mais verão seus filhos e suas filhas. Do alto da cruz, ele recolheu tudo.
Esse condenado daquela tarde de sexta-feira não encontrava mais posição. Remexia-se na ilusão de cessarem as câimbras. E esse mistério do mal que entrava em sua mente. Negações, violência, cusparadas. Lá por dentro ele queria, precisava querer amar. Ao Pai silencioso entrega tudo. Inclina a cabeça e dá seu Espírito. Fim. As cortinas podiam se fechar. Ele vencera o desespero e numa entrega estupendamente bela salvou tudo e abriu as portas da misericórdia de Deus para todos: Levi, Zaqueu, ladrão arrependido, sequestradores, brigadas de extermínio, facínoras, agentes de toda perversidade, torturadores. Pai, em tuas mãos entrego o meu espírito. As cortinas, no entanto, não podiam ainda ser fechadas. As pessoas foram saindo, talvez batendo no peito, outras decepcionadas voltando para seus vilarejos e aldeias. Houve um soldado que, com a lança, tocou o seu lado morto. E da fonte do coração aberto brotaram a água e o sangue que perdoam o pecado do mundo e alimentam os famintos de vida.
“Ó eterno e inacessível, brilhante e suave manancial daquela fonte oculta aos olhos de todos os mortais! Sois profundidade infinita, altura sem limite, amplidão sem medida, pureza sem mancha” ( São Boaventura).
Frei Almir Ribeiro Guimarães