Estamos às vésperas da festa de Santa Clara (11 de agosto). Nesse momento todas as atenções se voltam para os oitocentos anos do carisma da Mulher de Assis e de suas irmãs de São Damião (1212-2012). Nesta primeira sexta-feira de agosto de 2012, queremos chamar atenção para alguns aspectos da devoção de Clara pela paixão de Jesus e do carinho que tinha pelo “lado aberto” do Senhor no alto da cruz.
1. Através de seus escritos e da biografia de Tomás de Celano (Legenda de Santa Clara), somos informados de que Clara meditava muitas vezes e profundamente na Paixão de Jesus. As Irmãs rezavam o Ofício da Paixão, composto por Francisco de Assis, e Clara também recitava a Oração das Cinco Chagas de Cristo. As irmãs, ao longo do Processo de Canonização da santa, insistem no carinho que a Mãe Clara tinha para com a Paixão. Irmã Benvinda de Dona Diambra, diz com simplicidade, que Clara “lhe ensinou que sempre deveria recordar a Paixão do Senhor”. No mesmo processo, Irmã Inês lembrava: “Depois ela rezava, especialmente na hora sexta, pois dizia que naquela hora Nosso Senhor foi posto na cruz”.
2. Escrevendo a Inês de Praga, na quarta Carta, falando da contemplação do espelho, Clara diz: “E no fim desse espelho contemple a caridade inefável com que quis padecer no lenho da cruz e nela morrer a morte mais vergonhosa. Assim, posto no lenho da cruz, o próprio espelho advertia quem passava para o que deviam considerar: Ó vos todos que passais pelo caminho, olhai e vede se há outra dor igual à minha (Lm 1,12). Respondamos a uma só voz, num só espírito, ao que clama e grita: Vou me lembrar para sempre, e minha vai desfalecer em mim (Lm 3,20). Tomara que você se inflame cada vez mais no ardor dessa caridade, “rainha do Rei celeste” (4CtIn 23-27). A simples leitura destas linhas nos coloca diante de uma mulher que se detém longamente diante do Crucificado. Há elementos fundamentais de uma espiritualidade de contemplação do Crucificado: caridade inefável que quis padecer no lenho e sofrer morte vergonhosa; os que passavam viam a dor do torturado; a alma do que contempla começa a arder. Clara deseja que Inês se inflame neste amor. O Coração do Mestre é fonte de ardor.
3. Mais um testemunho, o da Irmã Filipa, filha do falecido Messer Leonardo de Gislério: “A referida testemunha também disse que dona Clara foi tão solícita na contemplação que, na sexta-feira santa, pensando na Paixão do Senhor, ficou como que insensível durante todo aquele dia e grande parte da noite seguinte” (Proc 3,25).
4. Nesta rubrica sobre o lado aberto do Cristo na cruz queremos nos deter em outro aspecto. Novamente lançamos mão dos depoimentos do Processo de Canonização de Santa Clara. Trata-se do testemunho da irmã Angeluccia de Messer Angeleio de Espoleto: “A testemunha também disse que, uma vez, a santa madre Dona Clara ouviu cantar depois da Páscoa Vidi aquam egredientem de templo a latere dextro (cf. Ez 47,1), guardou isso na memória e ficou tão contente que, sempre, depois de comer e depois das Completas, fazia servir água benta e ela e às outras Irmãs e dizia: “Minhas irmãs e minhas filhas, vocês devem lembrar sempre e guardar na memória da água bendita que saiu do lado direito de Nosso Senhor Jesus Cristo pendente na cruz” (Proc 14,8).
5. A antífona Vidi aquam faz parte do rito de aspersão com água benta, previsto para o início da celebração eucarística dominical e característica do tempo pascal. Renova a consciência do batismo conferido na noite pascal e da água que se junta ao vinho para a celebração eucarística. Clara repete esse rito de aspersão duas vezes ao dia num gesto de significado cristológico. Tem certamente diante dos olhos o Coração do Crucificado, a fonte que dele brotou com o golpe da lança. Clara vê nesse lado aberto o supremo dom do amor, amor derramado sobre o homens por meio da água e do sangue do peito do Senhor. Renovando esse rito na liturgia doméstica, Clara nada mais faz senão tornar concreta a memória constante da dor e do amor do Cristo pobre.
6. Concluímos ainda com uma citação da quarta carta a Inês. Essas linhas falam por si. Dispensam comentários. Estamos diante das núpcias místicas entre a alma e o esposo pobre da cruz. Misturam-se delícias, honras e riquezas: “Além disso, contemplando suas indizíveis delícias, riquezas e honras perpétuas, proclame, suspirando com tamanho desejo do coração e tanto amor: Arrasta-me atrás de ti! Corramos no odor de teus bálsamos (Ct 1,3), o esposo celeste! Vou correr sem desfalecer até me introduzires em tua adega (Ct 2,4), até que a tua esquerda esteja sob a minha cabeça, sua direita me abrace (Ct 2,6) toda feliz e me dês o beijo mais feliz de tua boca (Ct 1,1) (4CtIn 28-32).
7. Clara, a contemplativa da Paixão do Senhor e que quer ser a esposa daquele Jesus pobre, que deixa seu coração esvaziar com o toque da lança do soldado.
Frei Almir Ribeiro Guimarães