Moema Miranda: “Espero que esse ‘Apocalipse’ seja um novo ‘Gênesis’”
31/03/2020
“Espero que esse ‘Apocalipse’ seja um novo ‘Gênesis’ em que possamos voltar a compreender que só em harmonia com o planeta podemos viver bem aqui”.
A firme constatação é da antropóloga e franciscana secular Moema Miranda, que participou do Sínodo para a Amazônia no ano passado, em entrevista a Frei Gustavo Medella, vigário provincial da Província da Imaculada Conceição, para compreendermos melhor o que está acontecendo no mundo e no nosso planeta Terra diante da pandemia do novo coronavírus que assola quase todos os países.
Frei Gustavo partiu do conceito, que não é do Papa Francisco, mas que é por ele abraçado, de que tudo está interligado no Universo, para iniciar esta reflexão com Moema e entender essa situação que estamos vivendo.
Moema lamentou que, além da pandemia, há um “pandemônio”, uma falta de coerência e de conformação nas formas de lidar com a doença e que faz com que ela seja tão letal. “A privatização dos sistemas de saúde nos últimos anos e a fragilização dos sistemas públicos de saúde são elementos que se revelam agora na sua maior perversidade, porque são os sistemas de saúde que não estão preparados para acolher a população que precisa de atendimento”.
Tão graves e “satânicas” são as posturas de governos, como o brasileiro, que minimizam a crise para evitar que a situação econômica se deteriore ainda mais. O governo Bolsonaro chegou a criticar medidas “alarmistas” de alguns governadores do país e o fechamento de escolas, o que gerou um grave conflito com os políticos regionais. “Não podemos estar colocados em alternativas satânicas: Você quer morrer de fome ou você quer morrer do vírus? Você quer morrer sem trabalho ou você quer morrer do vírus? Essas são alternativas satânicas das quais a gente deve fugir. Nós devemos, ao contrário, encontrar vínculos que nos articulam. Como disse o Papa Francisco muito bem, não pânico, mas corresponsabilidade”, lembrou.
Moema leciona a disciplina Conflitos Socioambientais do Instituto Teológico Franciscano (ITF) de Petrópolis (RJ) e integra a secretaria da Rede “Igrejas e Mineração” da CNBB. Ela também faz parte da coordenação nacional do Sinfrajupe (Serviço Interfranciscano de Justiça Paz e Ecologia) e assessora a Rede Eclesial Pan-Amazônica (REPAM). Atuou até agosto de 2017 no Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase) e faz doutorado em questões ambientais pela PUC do Rio de Janeiro.
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Site Franciscanos – O Papa Francisco insiste na ideia de que tudo está interligado. De maneira esta pandemia vem reforçar tal ideia?
Moema – Essa é uma ideia que emerge dos estudos de ecologia, mas que hoje se revela com muita clareza. Quando o Papa Francisco lançou há cinco anos a encílica Laudato Si’, já era um prenúncio deste tempo. Na verdade, o coronavírus – e sua pandemia e sua expansão – é, sem dúvida nenhuma, uma questão ecológica. Eco no sentido de oikos, da casa, da forma como funciona a nossa Casa Comum. O Papa, na homilia tão maravilhosa que fez na sexta-feira (27.03), disse que seria muita ilusão nossa pensarmos que tudo está bem se o planeta está doente. Lembra que na encíclica Laudato Si’ dizia, no parágrafo 2: “Nós somos terra”. Então, não existe a possibilidade que o humano e o húmus, de onde somos feitos, separem-se num momento tão dramático. Na verdade, a questão da pandemia do coronavírus junta muitos fios complexos. Por um lado, um desrespeito humano aos biossistemas, aos ecossistemas das esferas de vida dos animais como um todo. Nós sabemos que, no momento que vivemos, nós atravessamos a sexta extinção em massa, com a devastação das florestas, devastação dos rios, devastação dos habitats naturais de um conjunto de seres outros, que ‘não humanos’, que coabitam conosco no planeta e que são essenciais para a vida de todo ecossistema e de todo planeta. Não existe possibilidade de os humanos viverem sem os ‘não humanos’ nessa criação maravilhosa. Mas quando a gente não respeita esses limites, quando a gente invade esses limites, o reverso também é verdadeiro. Da mesma forma quando a gente faz uma barragem no rio e depois vem uma chuva e o rio transborda levando a lavoura, e a gente diz: “O rio atravessou, o rio passou da conta”. Não! Nós é que passamos da conta da falta de limite. Então esse é um primeiro elemento: a falta de limite no respeito pelos ecossistemas onde vivem outros seres não humanos.
Segundo, como nós já sabemos hoje, esse é um vírus que vem de um mercado de animais vivos, que ali são mantidos e são vendidos, numa intersecção entre diferentes animais, inclusive nós, que somos também um desses animais. As doenças vão passando e determinados microorganismos, que habitam em paz um ecossistema, quando são transmitidos para outros, viram doenças. A gente sabe que a diferença entre vacina e veneno é muito pequenininha. É a dose e o ambiente. Então num momento como esse, essa falta de limite faz com que isso afete aos humanos de uma maneira diferente do que afetava a outros animais. Depois, na globalização, o circuito e a circulação da população são intensas por todo o mundo. Mas essa pandemia revela outros aspectos absolutamente fundamentais da economia, da forma como a gente está lidando com a economia. A privatização dos sistemas de saúde nos últimos anos e a fragilização dos sistemas públicos de saúde são elementos que se revelam agora na sua maior perversidade, porque então são os sistemas de saúde que não estão preparados para acolher a população que precisa de atendimento. O vírus pode ser muito menos letal se as pessoas tiverem atendimento adequado e de qualidade num primeiro momento.
O terceiro e fundamental elemento é o da falta de solidariedade internacional. Milão é um dos centros onde a doença está causando uma dizimação impressionante – só nas suas dioceses, nos últimos dez dias, 35 padres morreram, as pessoas estão morrendo sozinhas nos hospitais porque não podem receber a visita de seus familiares e os corpos estão em fila nos necrotérios -, Milão, um pouco antes de entrar nessa fase, dizia: “Nossa economia não pode parar”. E aí vem uma força maior que diz: “para ou para”. Então, esse momento de prepotência humana e de falta de solidariedade, porque se quando a Itália começou a desenvolver a doença, a União Europeia tivesse se somado e dado atenção a isso, entendendo como disse o Papa Francisco na homilia da sexta-feira (27.03), que nós estamos no mesmo barco e que, portanto, não é possível que os da proa se salvem, certamente, a difusão do vírus seria muito, muito menor. Além da pandemia, de uma epidemia mundializada, um pandemônio, uma falta de coerência e de conformação nas formas de lidar com a doença, é que faz com que ela seja tão letal.
Site Franciscanos – Pensando-se no cuidado com o ser humano e com a Casa Comum, o que se torna prioritário numa situação como esta?
Moema – O mais importante nesse momento é retomar esse mesmo conceito com que a gente partiu. Nós, humanos, somos feitos da terra; nós somos filhos e filhas da terra. Não podemos estar colocados em alternativas satânicas: Você quer morrer de fome ou você quer morrer do vírus? Você quer morrer sem trabalho ou você quer morrer do vírus? Essas são alternativas satânicas das quais a gente deve fugir. Nós devemos, ao contrário, encontrar vínculos que nos articulam. Como disse o Papa Francisco muito bem: não pânico, mas corresponsabilidade. Nós estamos vivendo uma emergência crônica e o planeta Terra está entrando numa nova fase. Numa fase do antropoceno, como já conversamos. Muitas coisas imprevisíveis acontecerão no nosso planeta. Mas, cada vez mais, a gente vai entender que não se salva sozinho. Não são os caminhos da individualização, do individualismo egoísta, os que podem nos levar a encontrar a solução. São, certamente, os caminhos da informação compartilhada, do cuidado com o bem comum, do respeito ao limite e da compreensão de que humanos e não humanos habitam o mesmo planeta, onde cabemos todos, mas o que não cabe é a lógica de uma economia que não se adapta aos limites do planeta.
Site Franciscanos – E que lições você espera que essa pandemia traga para a humanidade?
Moema – Acho que um primeiro elemento muito inspirador – se é que posso falar assim – é que ele não afeta só os mais pobres. Vocês lembram a última grande doença que nos amedrontou, o ebola, que era evidentemente muito mais letal e matava 90% das pessoas afetadas, diferente dessa em que o nível de letalidade está entre 3 e 7%, ficou restrita a países da África, num canto recluso da África. Essa pandemia, o coronavírus, é muito mais capaz de nos ensinar, porque até o Primeiro Ministro da Inglaterra está infectado pelo coronavírus. Artistas importantes estão infectados e isso nos mostra mais e mais que somos carne. Não importa – claro que as condições de saúde, as condições alimentares são vitais -, mas não é possível que todo dinheiro do mundo leve a que só uma elite do mundo seja salva. Então, o que eu espero é que esse ‘Apocalipse’ seja um novo ‘Gênesis’, seja um ‘Gênesis’ em que nós possamos voltar a compreender que só em harmonia com o planeta nós podemos viver bem aqui. Esse não é um Planeta para nós temermos, como disse o Papa antes: ‘Deus ama a criação’. Esse é um Planeta de amor. Feito para o bem viver, para a abundância, feito para a alegria, para a festa e para a partilha. Mas a festa da partilha e da alegria precisam se basear nos limites do planeta. Uma economia que não para, num planeta que é cíclico, se transforma numa forma doente e patológica de habitar o planeta.
Nós temos dito e voltamos a dizer: Nosso Planeta é maravilhoso, é cíclico, é sistêmico e é limitado. Então, é impossível crescer ilimitadamente a economia num planeta limitado. Nós temos que aprender a nos adaptar e podemos viver muito bem adaptados aos limites do planeta. Como já disse um filósofo antes, a ideia de que a economia tem que crescer ilimitadamente num planeta limitado é a lógica das células do câncer, que se reproduzem independentemente da saúde do hospedeiro. Como disse o Papa na homilia (27.3), é impossível que os humanos vivam com saúde se o planeta está doente por sua ação de adoecimento do planeta. Achei a oração do Papa, na sexta (27.03), tão profunda, tão bonita, um momento místico tão importante, que nos lembra dessa fragilidade e da força que vem dessa fragilidade, do reconhecimento de que nós somos uns com a natureza, que o mundo não foi feito só para nós, que o mundo foi feito para a festa amorosa da partilha e da abundância entre humanos e não humanos.
Que nós nos irmanemos, nos fraternizemos, como São Francisco de Assis nos ensinou, como uma grande fraternidade, com todo o universo cósmico, com todo esse universo que nos cerca. E que a gente aprenda a viver na suficiência, na sobriedade feliz como ensina o Papa. Que essa pandemia nos mostre o que é essencial na solidariedade, o que é essencial no consumo. Quais são as coisas que nós efetivamente precisamos para vivermos com dignidade. Saúde pública, educação de qualidade. E que a gente não precise continuar, como diz o Papa, obcecado por um consumo ilimitado de bens que desequilibra nosso planeta. Que essa pandemia, que esse ‘Apocalipse’, seja o ‘Gênesis’ de uma humanidade mais fraterna, mais solidária, mais ecológica. É isso que, junto com o Papa Francisco, eu rezo todos os dias.