Hoje, festa da Transfiguração do Senhor
06/08/2015
Frei Ludovico Garmus, OFM (*)
A cena da transfiguração de Jesus acontece na viagem de Jesus a Jerusalém, onde seria preso, condenado à morte e crucificado. A viagem começa em Cesareia de Filipe, no extremo norte da tetrarquia de Herodes Filipe, onde Jesus faz uma pergunta crucial aos discípulos sobre sua pessoa e missão: “Quem as pessoas dizem que eu sou?”. “E vós, quem dizeis que eu sou?” Pedro, em nome seu e dos discípulos confessa Jesus como o Cristo, o Messias tão esperado pelo povo. Pedro, certamente, pensava num Cristo, descendente do grande rei Davi, portanto, um Messias rei, que haveria de expulsar os dominadores romanos, instaurar um reino de justiça e reformar a religião judaica. Por isso pôs-se a repreender a Jesus quando ele começava a ensinar aos discípulos como seria a sua missão como Messias: “O filho do homem devia sofrer muito, ser rejeitado pelos anciãos, pelos sumos sacerdotes e pelos escribas, que devia ser morto e ressuscitar depois de três dias”. Jesus, porém, olhando para os discípulos, repreendeu a Pedro e chamou-o de Satanás, porque tentava desviá-lo da missão que o Pai lhe deu: “Tu não tens senso para as coisas de Deus, mas para as dos homens”.
Na sequência vem um convite de Jesus dirigido a quem deseja segui-lo a renunciar a si mesmo, tomar a sua cruz, a por em risco a própria vida para salvá-la. E a viagem de Jesus rumo a Jerusalém continua, Jesus na frente, seguido pelos discípulos. De modo que “seis dias depois” chegam aos pés de um “monte alto e afastado”. Jesus gostava de lugares assim para rezar, para estar a sós com o Pai do Céu. Mas desta vez leva consigo três dos discípulos mais achegados: Pedro, Tiago e João. No passado, Moisés foi convidado a subir sozinho o monte Sinai, a fim de receber de Deus a Lei. Agora Jesus convida alguns discípulos para o acompanharem. Eles não sabiam o que ia acontecer. Mas Jesus os estava convidando a mergulhar com ele no mistério de seu Pai. Quis assim levantar um pouquinho o véu que encobria o mistério de sua identidade e de sua missão como Messias.
Marcos é sóbrio ao descrever a transfiguração, chamando a atenção apenas à extraordinária brancura das vestes de Jesus. Mais importante é o que diz sobre as figuras que aparecem em companhia de Jesus: “Apareceram-lhes Moisés e Elias, conversando com Jesus”.
Moisés, depois de libertar o povo do Egito, foi convidado por Deus a subir ao monte Sinai (Horeb). Foi envolvido pela nuvem que encobria o monte Sinai. Mergulhou no mistério de Deus durante quarenta dias e quarenta noites. Ouviu tudo o que Deus queria comunicar ao povo e pôs por escrito nas duas tábuas da Lei. Moisés estava acostumado a se encontrar com Deus e vivia na sua intimidade. Quando voltava para junto do povo depois destes encontros com Deus, ficava com o rosto marcado com um brilho extraordinário. Por isso, ocultava o rosto com um véu. Sobre Moisés o próprio Deus falou assim: “Ele é um homem de confiança em toda a minha casa. Com ele falo face a face, às claras e não por figuras; ele contempla o semblante do Senhor” (Nm 12,7-8).
Elias é o profeta que recebe mensagens de Deus e as comunica aos reis e às pessoas. É o profeta que teve um encontro especial com Deus no monte Horeb, o monte em que Deus havia revelado os dez mandamentos a Moisés. Elias e os profetas são pessoas que têm uma intimidade particular com Deus. São pessoas que intercedem junto a Deus em favor do povo e recebem diretamente de Deus as palavras que devem comunicar ao povo em seu nome. São pessoas que mergulham no mistério de Deus.
Estes dois personagens estão conversando com Jesus, assim como estavam acostumados a conversar com Deus. Jesus, para nós cristãos, é o Filho de Deus. Portanto, estão conversando com o Filho de Deus. Certamente, gostaríamos também nós de entrar nesta conversa ou de saber qual era o assunto sobre que conversavam. Marcos não nos revela o assunto da conversa, mas Lucas diz que “falavam de sua morte, que teria lugar em Jerusalém”. A cena era tão bonita que os discípulos até esqueceram o detalhe da morte da qual Jesus lhes falava e que o esperava em Jerusalém. Levado pelo entusiasmo, mas também pelo temor diante da visão sagrada, Pedro propõe a Jesus: “Vamos fazer três tendas: uma para ti, outra para Moisés e outra para Elias”. Foi só Pedro dizer isso, esquecendo o destino trágico do Mestre em Jerusalém, e a maravilhosa visão sumiu, encoberta por uma nuvem de sombra. O véu do mistério que envolvia a Jesus foi erguido apenas um pouquinho, mas logo tudo se recolhe ao mistério da nuvem. E desta nuvem ressoou uma voz, explicando o que acabavam de ver: “Este é o meu Filho amado. Escutai o que ele diz!” Jesus era o filho amado, querido de Deus, apesar da morte que o aguardava em Jerusalém. Mas seu destino final não seria o da morte e sim da glória da ressurreição. Aos discípulos, a todos nós, cabe escutar, ouvir bem os ensinamentos e explicações que o próprio Jesus está dando sobre sua missão e sobre a missão de cada cristão: que o Filho do Homem vai ser rejeitado pelos chefes religiosos, vai ser morto, mas ao terceiro dia vai ressuscitar; que o discípulo deve tomar a cruz todos os dias e segui-lo; que para ganhar a vida é preciso saber perdê-la por causa de Jesus e do Evangelho. Assim como os judeus escutam as palavras de Moisés e dos Profetas, agora os discípulos de Jesus devem também escutar e seguir as palavras e ensinamentos de Jesus. Para entender o que se passa no mistério da nuvem, símbolo do mistério de Deus, é necessário agora ouvir com fé os ensinamentos do próprio Jesus. É destes ensinamentos ouvidos e praticados no dia a dia da vida cristã é que vai brotando e se aprofundando o conhecimento de Jesus Cristo.
Terminada a visão, ao descerem da montanha, Jesus proíbe de falar aos outros, o que acabaram de ver e ouvir. “Até que o Filho do Homem tivesse ressuscitado dos mortos”. Diz o texto que eles obedeceram a ordem, mas entre si se perguntavam o que significaria “ressuscitar dos mortos”. Era difícil entender que Jesus como o Messias, confessado por Pedro e esperado por todo o povo, como o descendente real de Davi, não tomaria o poder em Jerusalém, como imaginavam. Mais difícil ainda era compreender que Jesus, após sofrer a morte, haveria de ressuscitar; que para ganhar a vida era necessário perdê-la. Era cedo demais para entender tudo isso. Somente seria possível uma compreensão mais exata da pessoa e da missão de Jesus depois de sua morte e ressurreição, e da experiência de sua presença viva na fé da comunidade pós-pascal. Era preciso escutar o que o próprio Jesus estava dizendo aos discípulos e diria, no futuro, no seio das comunidades cristãs que anunciavam e viviam a sua boa nova.
* Frei Ludovico Garmus, oFM, é doutor em Exegese Bíblica, atualmente leciona Exegese III: Pentateuco, Exegese IV: Livros Histórico, Exegese V: Livros Proféticos, Exegese VI: Livros Sapienciais na Faculdade de Teologia – ITF.