Notícias - Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil - OFM

Herança do passado e perspectiva para o futuro

07/11/2016

Notícias

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Formação religiosa nos mosteiros

Que adianta sermos “certinhos” se não deixarmos Deus fazer o que quer de nós?

 Esta reflexão é uma retomada da conferência de Fernanda Barbiero,   religiosa de Santa Doroteia ( La formazione nei Monasteri. Eredità del passato e prospettive di futuro), que foi pronunciada na Aula Magna  da Pontifícia Urbaniana, a 30 de janeiro de 2016.  As reflexões  da autora se inspiram nas respostas dadas a questionários enviados a todos os mosteiros do mundo solicitados  pela Congregação para os Institutos de Vida consagrada e  Sociedades de Vida apostólica, em vista de ser ver com clareza a realidade.  A autora, por sua vez,  andou também visitando muitos mosteiros para inteirar-se da realidade.  Não se trata aqui de tradução do artigo, mas uma síntese do essencial da conferência.  O texto que temos diante dos olhos apareceu em Consecrazione e Servizio 2/ 2016, p. 68-80.

Falando de formação 

            O tema da formação, na verdade, foi o que mais apareceu nas respostas ao questionário distribuído pela Congregação para a Vida Consagrada. Muitas religiosas enclausuradas manifestaram desejo de  busca de caminhos novos para que  as  religiosas  cresçam em comunhão, caminhos que possibilitem o surgimento de uma vida religiosa mais significativa  ambiente e lugar  onde vivem. A formação exige mudança de perspectiva: do conteúdo ao processo para favorecer a maturação das pessoas e produzir reais transformações ou mudanças.  Forma-se melhor quando se aprende a aprender.  A responsabilidade da formação é, antes de tudo, da própria religiosa.

Uma nova perspectiva formativa não acontece sem uma visão do homem: uma antropologia que tenha um valor teologal, traduzido na experiência monástica, aquela que chegou até nós com o instrumental  que a Tradição  nos legou.

O que é o monarquismo senão uma visão do homem e de seu destino; da vida e de seu devir; do tempo e de sua dimensão escatológica; do espaço e da projeção para além da precariedade e do limite  contingente, que brota como fonte viva do mistério da criação, da encarnação, da redenção, e da transfiguração? É visão existencial que procede da fé, permanece na fé  e  se orienta para uma  fé total.

“Somos gerados pela fé, gerados para a vida, para a vida em plenitude, para a vida que não morre mais porque fomos evangelizados por aqueles que, na fé, nos precederam. Agora é na fé que geramos outros. A fé é por si e em si intrinsecamente fecunda, geradora, materna. É o acontecimento  materno por excelência, que transmite a vida recebida  na sua autêntica fecundidade, fecundidade inexaurível em correspondência a uma palavra que vem de Deus”  ( P. Stancari).

O monarquismo é resultado dessa busca constante na fé, de um humano de plenitude de sentido, de significação. É tensão vital rumo à felicidade, é memória que transcende ao tempo, é amplitude escatológica do  futuro, é movimento de conversão e transfiguração do ser, parte da encarnação e volta para a encarnação para encontrar  na pessoa única e infinita  do  Filho de Deus,  salvação e destino, princípio e fim, plenitude de vida e  a fonte de toda subsistência.

A formação se revela como uma experiência profunda do coração humano, transformado e renovado pela presença de Deus, e por isso, pode se fazer solidária da humanidade e dar uma resposta ao desejo íntimo do coração de cada criatura. À formação é reconhecida a responsabilidade de promover a identidade profunda da  pessoa chamada e levá-la a uma alegre maturidade da vocação. Que vocação? Vocação descrita por São Paulo: “Chamados a se transformarem na imagem de Cristo (2Cor 3, 18)”.

O significado monástico da formação

O tema da imagem de Deus é central na espiritualidade do monarquismo primitivo. Transformados à imagem de Cristo. Esta transformação, através de um longo processo de conversão, é o objeto de toda a formação monástica. Na verdade, nenhum dos pais do monarquismo dissertou a respeito da “formação”, como hoje a entendemos. Em seus escritos, no entanto, aparece que sua missão seja exercida pelos  abades ou padres espirituais, isto é,  gerar Cristo nos seus discípulos, levando os  monges a se transformarem em imagens de Cristo.  Através dessa transformação é que o monge torna gradualmente mais visível em sua vida, a semelhança recebida no momento da criação e  renovada no batismo. Para os Padres, a vida monástica não consistia uma realidade para a qual alguém se pudesse formar, mas, ao contrário, uma condição de vida através da qual alguém se deixava formar. Simplesmente vivendo a vida monástica o monge gradualmente se deixa transformar na imagem de Cristo e torna-se sempre mais monge. Vive na presença misericordiosa de Deus: a graça do olhar paterno de Deus  precede todo nosso esforço e torna a vida luminosa. Quando se esquece isso não há condições de acercarmo-nos da fonte da vida. A vida não acontece se a pensamos e organizamos  segundo os nossos planos.

Thomas Merton: “O monge ocupa-se mais de Deus e daqueles que Deus ama, do que de si mesmo”.  Centro da vida monástica é a busca do relacionamento com Deus. Cada vez fica mais claro que Deus é que toma a iniciativa. A vocação é graça, realidade completamente gratuita. É o  Senhor que por primeiro entra em relação conosco.

Não se inventa a vida monástica. Ele se recebe da Tradição que tem suas raízes nos primeiros séculos da Igreja.

Não existe vida monástica sem fidelidade à história contemporânea dos homens.

Estar diante de Deus cujo amor é sempre o mesmo para com todos, vivendo no amor a precariedade, caminhando conduzidos e, ao mesmo tempo,  conduzindo é condição de extrema fragilidade.  A vida monástica não é evidente em si. Não tem uma lógica que o homem possa entender sozinho. 

Quem é a monja?

Em chave de formação o que é a monja?

É aquela que tem a missão de cuidar e cultivar a própria alma.

Cuidado e cultivo são imagens inspiradas na forma de vida que Bento viveu e fez com os seus vivessem.

A imagem do cultivo da terra mostra que a formação é obra artesanal. A terra é libertada da erva e dos espinhos. Num simbolismo medicinal, originário da Idade Média, o nome de Jesus seria o mais salutar remédio. A formação não é questão de uma experiência passageira, mas um estilo, exigência constante da vida da monja.

Cuida-se da alma pela formação interior do homem, formação de uma consciência sólida. Formação feita de coisas bem conhecidas, de valores vividos, formação que se realiza no interior do claustro: da pessoa, da comunidade,  dentro da materialidade da clausura.

A escolha ou opção por um espaço limitado permite que a religiosa  participe  de alguma forma do aniquilamento vivido pelo Filho de Deus  no mistério da encarnação, no qual o Verbo  encerrou sua divindade no limite do seio de Maria, seja em seu mistério pascal em que Cristo  vive o limite extremo da morte  para transformá-la em abundância de vida. Espaços, tempo, coisas, relacionamentos têm a finalidade de formar o coração: espírito, alma e corpo. A experiência contemplativa por  si é extremamente formadora, espaço privilegiado que leva a pessoa a uma  particular experiência de Cristo e de fecunda comunhão com ele no coração da Igreja.

A raiz vital da formação será buscada no Espírito Santo. Ele é o verdadeiro formador.  A formação está vinculada à ação do Espirito Santo na pessoa. Nem sempre é evidente o que deva ou não deva fazer o formador, o acompanhante, o padre ou madre mestra. Não estão tão distantes de nós os tempos em que os formadores estavam muito próximos dos psicólogos e psicoterapeutas.

Recupera-se hoje o termo educação, educador que parece mais apropriado à missão do formador, porque sugere o tirar para fora da pessoa aquilo que já está posto, mas escondido dentro da pessoa. Se recebermos a pessoa como dom de Deus, descobrimos em seguida que a  vocação é uma identidade já inscrita nela  com o chamado divino.  Trata-se de fazer com que as riquezas da pessoa venham à tona, ajudá-la a crescer,  cultivando os dons próprios que nela o Senhor colocou.  Pode-se recuperar o termo tradicional de mestra que exprime essa tarefa educativa.  O mosteiro, na concepção beneditina, é escola do serviço divino.

A tradição monástica da busca de Deus

Na Idade Média o mosteiro era concebido como escola onde se aprende a verdadeira filosofia, o que é verdadeiro, o melhor modo de buscar o sentido verdadeiro da vida. Mosteiro lugar de reflexão e de celebração da liturgia. Esta última, bem vivida, é grande escola de verdade e de amor.

Reconhece-se o monge se ele busca verdadeiramente a Deus, diz São  Bento.  Essa busca se faz no meio de provações e mortes.  O motor da busca é caminhar na presença de um Deus sempre oculto na constante busca de seu semblante. Tudo se realiza por meio de Jesus. A monja encontra Jesus na Palavra e mais concretamente nas irmãs.

A comunidade monástica não é uma sociedade em que se busca realizar um projeto. É algo que recebe vida e feições da comunhão trinitária:  “Como o Pai me amou, eu também vos amei”, diz  Jesus.  Não são apenas belas palavras. É trabalho continuo feito em si  para viver a vida como dom para os irmãos. O bem de um é o bem de todos.  Todos se esforçam em ajudar os outros a crescer. Isto reveste de beleza a vida  comunitária. Dá alegria: alegria do estar juntos. Alegria que se constrói renunciando a outras alegrias.

O mosteiro sempre foi concebido como laboratório ou escola do aprendizado prático da pureza do coração e da vida. Formar em sentido monástico significa orientar-se para uma forma de vida que se torne cada vez mais uma  norma do pensar, do amar  e do agir. Não há crescimento na formação a não ser quando a vida manifesta ou traduz a vocação, quer dizer que responde ao olhar amoroso de Deus sobre nos. 

Fundamento teológico da formação

Tentemos situar o discurso da formação no contexto de uma possível compreensão teologal.

O fundamento teológico pode ser encontrado em Paulo aos Filipenses  2,5: Tende em vós os mesmos sentimentos de  Cristo Jesus.  Ter os sentimentos de Cristo Jesus significa ter o modo de pensar, de julgar, de ver, de agir do Filho de Deus. Ter os sentimentos de Filho e sentimentos divinos: de filho quer dizer estar em relação com o Pai, de filho divino, quer dizer superar a limitação do pecado e da morte que é uma humanidade sem Deus.

Ter os mesmos sentimentos que foram os sentimentos de Cristo Jesus significa viver na obediência ao Pai, assumindo  nossa humanidade até o mais profundo como ela foi depois do pecado e levar essa humanidade  ao Pai vivendo com filho. Não se trata apenas de imitação do Filho, mas de um dinamismo de vida, de uma humanidade filial, no justo relacionamento com o Pai, na obediência  confiante.

Trata-se de fazer brilhar no humano a vida divina.  A formação não tem outro fundamento.  Para atingir este objetivo será integrada e atenta a todas as dimensões: intelectual e emotiva, individual e comunitária, pessoal e social, afetiva e sexual. 

Construir um centro vital 

            Urgente uma pedagogia formativa que possa encontrar um sujeito disponível para deixar-se formar, docilitas  formandi, sem divisões estanques entre a formação inicial e a  formação permanente.  A vida não se gere, mas se recebe como um dom. Ao longo da formação necessário se faz  adquirir a capacidade  de construir e  de reconstruir a própria vida  em torno de um centro vital que,  para o que crê,  é o mistério pascal, a cruz do Filho que elevado da terra  que  atrai tudo a si.

Fundamental que o coração acolha a vida como vocação e a vocação como vida divina que plasma a existência  na Páscoa da morte e ressurreição de Jesus.

Importante o silêncio que acompanha e gera a solidão. A solidão costuma ter duas vertentes: a vertente negativa é o egoísmo e a positiva a espera, a expectativa, quer dizer, o encontro com o Outro e os outros.  A solidão modela a pessoa de tal forma que ela aprende a não levar em conta exageradamente  suas coisas e procura a presença do Outro.

Nesse contexto será preciso sempre de novo um maior conhecimento de si.  Sempre de novo a retomada da vontade de fazer o dom de sua pessoa.

Experimentar o sentir de Deus 

Para ter os sentimentos que foram os de Cristo  Jesus, quer dizer ter sentimentos divinos, pensar,  perceber, racionar, julgar segundo Deus.  Trata-se de uma modalidade de ser. Este é o elemento  teológico de base para uma formação monástica. Somos levados a dar carne a uma  natureza divinizada.

Participar da vida do  Espírito

Nossa tarefa é fazer resplender, em nossa natureza humana marcada pelo pecado, a filiação divina depois do batismo, retomada de maneira explícita na profissão religiosa.

Não é imitação de Deus.  Nossa vida está inserida, implicada na vida de Deus,  somos participantes da natureza de Deus. A natureza de Deus é amor, santidade.

Participação na vida da Trindade que nos educa e nos transforma em filhos do Pai, que explicita a vocação em dom de si. Somos participantes da vida da Trindade da mesma forma como precisamos do ar para viver.

No sulco da Tradição

A vida monástica não é um projeto pessoal, mas dom de Deus que corresponde a um desejo, desejo nem sempre claramente definido, desejo de uma vida diante de Deus e com Deus. A vida monástica se descobre vivendo, porque é uma vida escondida.  Insistimos: a vida não se gere, mas se recebe. Se o Senhor é nossa vida não há que temer as passagens mais delicadas.

Os instrumentos formativos típicos da vida monástica contemplativa  são: a Lectio divina, a liturgia, o trabalho e a ascese. São caminhos que levam  à vocação originária, à medida de Cristo.

A formação privilegia todos os caminhos que levam ao fundamento identitário: escuta da Palavra, oração com a palavra, conhecimento de si, discernimento das próprias reações diante da Palavra e da vida, atenção para com a vida espiritual porque acreditamos que  seja pelo amor que Deus derrama que atingimos o amor divino para dar aos outros. A vocação da monja não é fazer o bem, mas tornar-se como Cristo.  A formação  tem sempre tudo a ver com a nossa liberdade e com a Páscoa. Parece que uma vida monástica sadia levará em conta tais caminhos mencionados. 

A comunidade monástica

            Se a vida espiritual ocupa o primado de tudo, para  que se possa percorrer um autêntico caminho formativo esta deverá ser, forçosamente, uma espiritualidade de comunhão.  Ela se concretiza no cotidiano da vida  fraterna, como espaço onde se cresce na qualidade evangélica dos relacionamentos e do qual  depende toda a fecundidade da vida.

A vida comunitária é exigente. Não consiste apenas em um elemento que se coloca ao lado de outro. A experiência monástica se transmite especialmente na e através da forma da vida da comunidade. Nela se realiza a formação da monja, desde seu ingresso até sua passagem para outra margem. O princípio de base da formação monástica deverá ser buscado na comunidade.

Monjas são aquelas que vivem na comunidade, sob uma Regra e uma Abadessa. Vivendo estes três dados, a monja se torna mais monja, realiza sua formação, ou sua transformação.

A comunidade é lugar de crescimento. Crescimento emotivo e afetivo, humano e espiritual.  Os relacionamentos pessoais que se criam à sua volta são ao mesmo tempo uma escola que torna capaz um relacionamento profundo com Deus e um expressão sacramental do mistério da Igreja.

A comunidade é fonte de conhecimento de si, nesses encontros cotidianos, e faz com que se possa descobrir a própria necessidade de conversão. Reconhece-se nesse grupo uma comunidade de pecadores que foram perdoados. Nesse contexto é dada possibilidade de deixar-se transformar  praticando a caridade fraterna.

A vida contemplativa autêntica não consiste em afastar-se da realidade para viver num mundo artificial e puramente espiritual.  Ali, na comunidade, são oferecidas muitas ocasiões de conhecimento recíproco, de partilha dos bens espirituais e de crescimento no sentido de pertença à comunidade.  A falta de comunicação, de partilha,  gera um debilitamento  da fraternidade e a experiência  espiritual  assim adquirida tem conotação  individualista.

A comunidade é lugar em que se aprende a ler e interpretar a realidade até o seu centro, não somente em si mesmo, mas à sua volta.

A comunidade que vive o carisma, ensina-nos a vivê-lo encarnado.

As comunidades estão envelhecidas.  As irmãs mais idosas são uma gramática para as novas gerações. Estas últimas praticamente captam valores que podem ser inacessíveis de outro modo. Os valores estão inscritos na carne das irmãs envelhecidas.

A contínua reflexão sobre a Regra e dos documentos fundantes nos ajuda,  com  sua luz,  a  fazer a leitura dos  sinais dos tempos. 

Concluindo

O mundo moderno tem necessidade de homens e de mulheres que já fizeram um caminho espiritual razoavelmente longo, pessoas com unidade interior, que não vivam nostalgia dos séculos passados, mas desejam construir o novo. Depois do tempo dos questionamentos virá o tempo do renascimento.  Vamos elaborando, com a sinceridade de nossa vida e discernimento uma nova síntese da vida cristã e consagrada.

As monjas do amanhã  haverão de se lembrar que a  vida monástica é um incessante retorno a um êxodo de fé  porque Deus se entrega  numa aliança incondicional. Ele é sempre fiel. Trata-se de um monaquismo em saída.

Saída com esperança. A esperança se alimenta da escuta, da contemplação, da paciência para que os tempos de Deus venham amadurecer.  Sempre olhar para o amanhã. Lutar para uma conversão que leve à transfiguração.