Frei Carlos Susin: a Fraternidade se constrói
24/11/2021
Continuação da pregação de Frei Luiz Carlos Susin à tarde e à noite (veja a primeira parte):
A Declaração Universal dos Direitos Humanos tem alguns antecedentes, outros manifestos muitas vezes inspirados nos ideais de Liberdade, Igualdade e Fraternidade. Num processo de laicização – porque Fraternidade ainda era muito próxima dos valores cristãos –, o positivismo vai trocar Fraternidade por Humanidade. Isso aparece ainda na tensão que há entre liberdade e fraternidade, seja no Brasil ou em vários outros lugares, às vezes até mais marcados que aqui. Um exemplo é a questão da resistência com relação à vacina, alegando um princípio de liberdade para não se vacinar. Claramente é o conflito entre essa compreensão de liberdade, e o princípio de solidariedade com o outro.
O artigo primeiro da Declaração Universal dos Direitos Humanos começa com liberdade e termina na fraternidade: “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de ração e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade”.
Hoje há uma crise de fundamentação para as relações. Quando dizíamos que todos somos “filhos de Adão e Eva”, por isso devíamos nos tratar bem, isso funcionava. Outra tentativa era dizer: “Somos todos cristãos”, disso advinha do preceito de não agredir fulano, porque ele também era cristão. Em um tempo de cristandade, claro. Depois do evolucionismo, isso cada vez mais se torna não um critério, Adão e Eva são compreendidos como uma narrativa de sentido, mas que não gera sentido para um chinês, por exemplo. Há sempre o processo de sacralizar e dessacralizar. Nas guerras santas, dessacralizava-se o outro para poder matar: o muçulmano não era chamado de homem, mas de cão pelos cruzados (e vice-versa). Sacralizar aquilo pelo que vale a pena morrer também: nosso hino nacional fala em morrer pela pátria.
O Papa Francisco, na Fratelli Tutti, quer superar até mesmo a individualidade da expressão de fé, em prol de uma fraternidade universal.
No contexto bíblico, vemos na história de Caim e Abel a tragédia, ou o fracasso da fraternidade. E ali está a origem do pecado. A doutrina do Pecado Original tem um papel interessante no cristianismo. A formulação de Santo Agostinho o auxiliou a rebater a doutrina do maniqueísmo, desfazendo a proposta de duas forças antagônicas, Deus e o Mal, que lutam. O mal depende de mim, mas também não só de mim, há algo já no ser humano, como que herdado.
O pelagianismo propunha que pelas próprias forças, o homem poderia resolver as coisas, mas não é assim, e a condição do pecado original ajuda a embasar. Ainda São Paulo sustenta na Carta aos Romanos a necessidade de Deus para superação do pecado, embora seguindo a narrativa de Adão e Eva como início (Cf. Rm 5) e afirma com todas as letras que todos pecaram e precisam de Graça para redenção (Cf. Rm 3, 23-25). Para superar a teologia do bode expiatório e a prática de colocar a culpa em alguém, precisamos todos juntos assumir que pecamos e pedir perdão. Cristo se apresenta não como bode expiatório, mas como cordeiro sem mancha que se deixa conduzir.
O relato de Adão e Eva apresenta uma alegoria de como a humanidade só amadurece com a provação. Era preciso abandonar o paraíso infantil para se tornar adulto e assumir o outro lado da vida: trabalho, sofrimento, morte. Adão alcança sua condição e Eva é ainda mediadora. Mas há a transgressão. E aqui vem a pergunta: toda transgressão é pecado? Por exemplo um filho que aos 30 anos ainda pede permissão para a mãe para sair com amigos e beber uma cerveja. Nesse caso é necessário que chegue o dia em que ele simplesmente vá. Em certo sentido, foi o fruto proibido que fez com que Adão e Eva se tornassem como nós! Se tornassem de fato imagem e semelhança de Deus, porém como deuses finitos. Mas isso precisa acontecer no companheirismo de Deus, e não contra Deus!
Ocorre então o salto para a consciência… consciência e liberdade são condições para pecar, sem isso não há culpa. O fruto proibido traz a possibilidade de pecar, que antes não existia, como no estágio infantil em que a criança não tem consciência de suas ações, e, portanto, não pode ter imputada culpa.
Caim, nesse sentido, foi advertido por Deus quando fechou os olhos para a oferta de seu irmão Abel e ressentiu-se da preferência do Senhor por Abel. Era como se ele perdesse o privilégio de filho único. Caim que na verdade é, de certo modo, primogênito da humanidade, já que Adão e Eva foram criados, mas não cresceram, já eram adultos. Caim representa a força de Deus, força do primogênito e Abel representa a fragilidade. No entanto, Abel se tornou uma provação para Caim!
Abel ser o preferido de Deus se torna a provação da Fraternidade! E Caim não passa na prova! Esse seria, de fato, com consciência e liberdade, o primeiro pecado. Não porque ofendeu ao alto de modo vago e abstrato (fruto proibido), mas porque usou o poder de Deus (Caim era o mais forte) para pisar no que estava abaixo (mais frágil). Usar a força recebida de Deus para esmagar o outro! Isso sim é pecado!
O Gênesis então vai mostrar como a descendência de Caim vai aumentando e multiplicando o fracasso (e o pecado) de Caim: ele é tido como fundador das cidades mais sanguinárias e violentas.
Depois vemos que Abraão também é provado. No relato do sacrifício de Isaac, seu filho, Abraão recebe duas ordens: a primeira revestida de sacralidade, em tom cerimonial, de tomar seu filho único, preparar o altar e oferecer em holocausto ao seu Senhor, e em troca ele receberia toda a Promessa. E a segunda ordem foi mais simples: “não faças mal ao menino”: sem sacralidade, sem cerimônia. E Abraão, de certo modo, transgride a primeira ordem (que não obedece) para seguir a segunda.
Vemos ainda Esaú e Jacó – gêmeos que saem do ventre materno já brigando. Após a história dos subterfúgios para obter a bênção e os direitos da primogenitura, Jacó vê seu irmão que marcha contra ele com seu exército bem armado, e percebe que não tem o que fazer. Vai então, sozinho e desarmado em direção ao exército de seu irmão, e ao chegar perto, se abraçam chorando. O choro é necessário e importante na construção da fraternidade. Depois Jacó também terá seu preferido: José e Benjamim que foram gerados na velhice. Isso desagrada seus irmãos, José se torna a provação para seus irmãos, que arrumam um modo de se livrarem dele. Então eles fazem o que Caim fez. Só não o matam porque Rubem, o primogênito (aquele que está “no lugar do pai”) interfere. Mas ele é vendido como escravo. Quando José se reencontra com os irmãos, ele precisa chorar. O choro é necessário instrumento de superação. No processo de perdão, José diz aos irmãos que não foram eles que o fizeram parar no Egito, mas sim fora o próprio Deus! Ele mesmo perdoa e dá sentido à narrativa. É necessária mesmo a didática do Perdão!
Assim como não há Eucaristia sem Ato Penitencial, é necessário reconhecer-se pecador e pedir perdão. Hannah Arendt apresenta uma definição de perdão muito válida, quando confrontada com a pergunta de como seria possível para os que o sofreram, perdoar os causadores do holocausto. Como não buscar vingança ou reparação? O próprio sistema judiciário é pautado em garantir alguma espécie de vingança ou compensação, para que não fuja do controle, mas o sistema é esse, de vingança no fundo. Por isso, Hannah Arendt apresenta o perdão não como um sentimento, mas como uma promessa: a promessa de que no futuro não se vai cobrar o erro do passado!
O filósofo Emanuel Levinas chama a atenção para a banalização do perdão quando acontece sem uma pedagogia. Ele criticava o perdão cristão por ser abrangente e fácil demais. Dizia que era possível perdoar os alemães pelo holocausto, mas impossível perdoar Heidegger, pois Heidegger era um gênio.
A Fraternidade, portanto, não é algo dado, garantido ou natural. É algo que se cria, que se constrói. É a vivência da Fraternidade Escatológica que se concretiza sim, mas pelas nossas ações e decisões.
A UNIVERSALIDADE DA FRATERNIDADE
Alguns franciscanólogos reconhecem no século XIX um momento em que São Francisco foi, de certo modo, “sequestrado” pelo romantismo para fazer frente ao racionalismo do Iluminismo. Essa ideia de um São Francisco dos passarinhos e não muito atuante. Voltaire vai inclusive criticar a apresentação de um São Francisco de braços abertos, cantando e que depois vai pedir esmola. Ele diz que seria melhor ir trabalhar então. Claramente não conhece a espiritualidade de São Francisco, nem suas escolhas, critica justamente essa imagem da romantização.
Eça de Queirós tem um conto muito interessante sobre o julgamento de Junípero: estaria Frei Junípero às portas do céu para seu julgamento, e Deus elencaria suas virtudes, seus atos de misericórdia e vida de oração. Quando quase Junípero estaria entrando no céu, chega o porco para o acusar. Sabemos a estória que um confrade estava doente e Junípero foi até o vizinho e “pegou” a pata de um porco para fazer uma sopa para o doente – apenas a pata do porco, deixou o resto lá. Agora, o porco sem a pata estava no seu julgamento. Quando o dono do porco veio reclamar com o guardião – vemos aqui a espontaneidade franciscana, em Junípero, e já a instituição, no guardião – este gritou tanto com Junípero que ficou sem voz. Junípero, então, aumentou o caldo da sopa e ofereceu ao guardião, para que recuperasse as forças. Como esse gritasse ainda mais alto que não tomaria a sopa para não fazer parte do roubo, Junípero pergunta então se o guardião poderia segurar a vela, que ele mesmo tomaria a sopa. Isso está nos Fioretti de São Francisco.
Em Junípero a desapropriação é tão presente, que ele perde a consciência de propriedade – sua e dos outros. Fazer juízo sobre a propriedade já é propriedade. E por isso, no conto de Eça de Queirós, Junípero é mandado para o último lugar do purgatório.
Quando Francisco faz o elogio das virtudes, reconhece que quem tem uma tem todas. E quando fala da obediência, explica que se trata de obediência a todos, não apenas ao superior, mas aos irmãos, e até às criaturas irracionais e às feras. Estar na obediência e submeter-se até quando ao Senhor aprouver. No episódio do Lobo de Gubbio, os moradores chamam Francisco porque não sabem o que fazer. Francisco consegue fazer um pacto entre o lobo (que não mais atacaria os rebanhos nem as pessoas) e a cidade (que o alimentaria e acolheria). Tanto que quando o lobo morre, a cidade chora. Isso só é possível porque Francisco está na dinâmica da desapropriação! Só assim ele é capaz de exercer o ofício de mediador, pois para isso não pode haver interesses! Francisco não tem conflito com ninguém, quem tem conflito são o lobo e a cidade, e disso Francisco não toma partido, respeita os dois, não tem juízo sobre eles, que já seria apropriação.
O Papa Francisco, na Fratelli Tutti, inspira a Religião a estar a serviço da Fraternidade Universal. Mas só podemos pedir que o outro coloque sua religião a serviço da Fraternidade quando nós já estamos dispostos. Por isso, Hans Küng diz que só haverá paz no mundo quando houver paz entre as religiões. Isso porque a religião não gera necessariamente a violência, mas a violência quer ser sacralizada para continuar. Para matar, morrer, mandar matar, mandar morrer é preciso criar uma justificativa. Isso era feito por doutores da Igreja e santos, nas pregações pelas cruzadas, onde se proclamava que quem matasse um mouro faria um favor a Cristo. Da mesma forma entre os exércitos dos muçulmanos havia a promessa de recompensas no céu para a morte dos cristãos.
As religiões costumam se organizar sob quatro fatores: rituais, mandamentos, doutrinas e hierarquia (não necessariamente vertical, mas modelos de organização). O fechamento nesses fatores gera os vícios: ritualismo, fundamentalismo etc. Religião precisa estar para além, para a Fraternidade Universal! Jesus transcende esse formalismo nas disputas com os mestres da lei e fariseus – na questão do sábado quando ele realizava curas, na superação da compreensão preconceituosa de pureza etc.). Paulo também aponta isso quando denuncia que a letra mata e o espírito vivifica. O próprio Papa Francisco insiste em transcendermos a própria religião pela Fraternidade Universal. Estar disposto ao diálogo.
E isso o franciscano devia fazer com facilidade. Os filhos de São Francisco aprendem a espontaneidade e a liberdade da sensibilidade. Talvez seja isso que caracterize a escola franciscana de pensamento. Os textos diferem, as abordagem são próprias, mas há um sensibilidade comum: confiança no Espírito; desapropriação, que será chamada simplicidade franciscana… A missão da Fraternidade Universal é ir além das paredes da religião instituída! Sermos católicos significa isso, a universalidade da Fraternidade. Nossa Religião nos abre aos outros, não nos separa! Isso é não se apropriar da realidade e colocá-la a serviço de uma religião, mas sim colocar a Religião a serviço!
Equipe de Comunicação do Capítulo: Frei Augusto Gabriel, Frei Clauzemir Makximovitz, Frei Gabriel Dellandrea, Frei Alan Leal de Mattos e Moacir Beggo.