Experiência na Amazônia encanta missionários
23/02/2016
Frei Atílio Battistuz, OFM
Provenientes da Argentina, Brasil, Paraguai, México, Portugal e Peru, de 04 a 28 de janeiro de 2016, 25 missionários e missionárias participaram de uma experiência missionária na Amazônia. A missão foi realizada em Caballo Cocha, uma cidade de 22 mil habitantes situada às margens de um lago marginal do baixo Amazonas peruano, região de fronteira com Colômbia e Brasil. Entre os missionários estavam frades, religiosas, leigos e leigas, um grupo muito diverso, não apenas pela procedência e pelo estado de vida, mas também pela idade, costumes, cultura, formação e trabalho profissional, bem na caminhada de fé.
Esta é 4ª experiência missionária promovida pelo Projeto Amazônia da Ordem dos Frades Menores. O primeiro objetivo desta missão foi oferecer a possibilidade de uma experiência missionária na Amazônia, principalmente para quem não vive e, ou não conhece a Amazônia. É a possibilidade de um discernimento missionário para quem está no seu tempo de formação inicial e de estudos, e para quem pensa em ser missionário para além das suas fronteiras (geográficas, culturais, econômicas, sociais). Não deixa de ser também a possibilidade de conhecer outras realidades existenciais e de fé, e de criar vínculos e laços de comunhão, de solidariedade e de afetividade. É a possibilidade de conhecer a Amazônia, para amar e cuidar da Amazônia. Outro objetivo é de fortalecer o trabalho missionário e pastoral que já se faz, em uma realidade bem concreta, com suas limitações, dificuldades e necessidades bem concretas: anunciar o Reino de Deus, levar esperança, animar a vida cristã e comunitária, despertar novas lideranças.
A programação foi simples, a mesma de outras experiências: a) um tempo de preparação, com estudo, convivência e oração; b) uma semana de missão urbana; c) uma semana de missão nos casarios ribeirinhos; d) um tempo de partilha e avaliação final. A missão propriamente dita foi de duas semanas, de 10 a 24 de janeiro, sendo uma urbana, de 10 a 17 de janeiro (domingo a domingo), e uma semana ribeirinha, de 17 a 23 de janeiro (domingo a sábado), e a celebração de encerramento no domingo, 24 de janeiro. A programação foi pensada dessa maneira para todos os missioneiros terem a oportunidade de fazer as duas experiências, uma urbana e outra ribeirinha, que são realidades diferentes. E também pela necessidade pastoral da paróquia, de formar Comunidades Eclesiais de Base nos bairros, bem como de animar a vida cristã nos casarios ribeirinhos. Quando falamos de realidade urbana, estamos falando da amazônica, e não de um centro metropolitano. Com 22 mil habitantes Caballo Cocha é o maior centro populacional do Vicariato de São José do Amazonas, que tem uns 150 mil quilômetros quadrados (uma vez e meia o Estado de Santa Catarina, ou o tamanho do Ceará), uma área extensa que faz fronteira com Equador, Colômbia e Brasil, sem uma rodovia sequer, com mais de 3.000 km de rio e uns 600 “pueblos” (vilas ou casarios). As rodovias da Amazônia são os rios.
Os missionários foram divididos em grupos, ou fraternidades de 3 em 3, para fazer um trabalho comunitário, em equipe, mas também para fazer uma experiência de vida fraterna, lembrando que o carisma franciscano é evangelizar em fraternidade. As fraternidades foram bem plurais, internacionais, interculturais e mistas (frades e leigos, homens e mulheres – exatamente uma em cada fraternidade). Uma riqueza de experiência, para convivência, oração, serviços, trabalho missionário e apoiarem-se mutuamente nas necessidades, dificuldades, medos e inseguranças. Foram formadas oito fraternidades, correspondendo ao número de missionári@s. Na primeira semana cada fraternidade ficou responsável por um bairro, incluído o centro. A necessidade era maior, alguns bairros ficaram sem receber missionários, mas o trabalho foi organizado conforme o número de missionários. Os missionários visitaram famílias, fizeram encontros de estudo da bíblia e catequese, encontros com crianças (que são muitas em todos os lugares), celebrações da Palavra, celebrações eucarísticas (onde tinha um sacerdote e condições celebrar, porque na maioria dos lugares faz anos que não tem missa e já não sabem o que é) e celebrações de batismo (onde já estava programado). Os encontros e celebrações foram em escolas, quadras de esporte, casas de família, ou mesmo na rua. É visível a ausência dos jovens, pois quando terminam o ensino médio, com poucas exceções, vão pra cidade (Iquitos ou Lima), para continuar os estudos e procurar trabalho. Aproveitando a visita às famílias também fizeram uma pesquisa, com um questionário, para um diagnóstico da realidade social, econômica, religiosa, problemas e necessidades do bairro, bem como para identificar líderes. Alguns também tiveram a oportunidade de fazer programas de rádio.
No sábado à tarde foram realizados três encontros paroquias: um de crianças, um de jovens e outro de adultos. Todos acontecem no mesmo horário, animados pelos missionários conforme a preferência e o carisma de cada um. O encerramento da semana urbana foi com uma celebração dominical em cada um cada bairro. Esta programação seguiu uma metodologia e uma estratégia. Primeiro vem a catequese, entendida como formação de discípulos, despois a celebração; e, de propor ou incentivar a realização de celebrações dominicais nos bairros, e mais do que isso, formar comunidades eclesiais nos bairros. É claro que isso não acontece por decisão dos missionários, nem por decreto, é fruto de uma caminhada, exige formação e acompanhamento, e respeitando o ritmo amazônico. Os missionários vieram para dar essa força. A programação temática dos estudos bíblicos e catequéticos foi pensada nesta perspectiva. Mas mais importante do que os temas é a participação das pessoas, é a experiência encontros de irmãos, de reunir-se com os vizinhos, de ler e partilhar a bíblia comunitariamente e fortalecer a fé. Essa foi uma das riquezas da desta semana.
No domingo dia 17, pela manhã, enquanto cada um celebrava nos seus bairros, começaram as chegar os animadores dos casarios, com seus botes, para buscar os missionários e leva-los às suas comunidades ribeirinhas. Alguns vieram em comitiva, para recepcionar e acompanhar os missionários. Onde ainda não tem um animador cristão (ministro da comunidade), vieram as autoridades locais (cada casario tem sempre duas autoridades, um agente municipal, que é o vínculo com a prefeitura, e um tenente governador, que é a ligação com o governo Regional; são eleitos pela comunidade e nomeados pela respectiva autoridade). Participaram do almoço com os missionários e depois foram conduzindo os missionários para a nova etapa da missão.
As fraternidades missionárias foram as mesmas da primeira semana. Cada uma visitou três casarios, ficando dois dias em cada um: de domingo a terça-feira no primeiro, de terça a quinta no segundo e de quinta-feira a sábado no terceiro. A primeira comunidade veio apanhar os missionários em Caballo Cocha, e depois cada uma os levou para a Comunidade seguinte. A última os trouxe de volta a Caballo Cocha. O combinado foi também que cada comunidade deveria “convidar” os missionários para a comida. Os missionários não levaram comida. A maioria ficou hospedada em escolas, que estão livres nessa época do ano, por ser tempo férias, e também porque tem melhores estruturas, com banheiro, e algumas recolhem água de chuva. Em outros lugares os animadores hospedaram em suas casas. Com a experiência da primeira semana, cada fraternidade se programou em acordo com os animadores. Todos fizeram visitas às famílias e a maioria realizou três encontros: um de apresentação e programação, outro de estudo bíblico catequético, e uma celebração.
Com a palavra, os missionários:
Para sentir melhor o foi que a missão, ou como cada um viveu a experiência, passo a palavra aos missionários. As impressões subjetivas e as vivencias pessoais dizem mais do que os relatos descritivos. Transcrevo algumas coisas consegui anotar, muitas outras mais foram partilhadas. “Foi uma experiência nova, estou feliz por estar aqui, muito contente, sinto uma satisfação muito grande pelo que passei”.
Nós perguntamos aos missionários o que vão levar da Amazônia. Vão levar riquezas incríveis. “Levo coisas muito lindas dentro de mim: a simplicidade, o calor das pessoas, a experiência muito forte de experimentar a diversidade”. “Levo uma recordação muito boa das crianças: as crianças vivem juntas, entram em todas as casas como se fosse a sua”. “Levo as pessoas; nos casarios não nos davam nada, mas se davam a si próprias, levo esse grupo, as alegrias, os sorrisos”. “Levo duas coisas: a perfeita alegria, em condições tão adversas a gente conseguia cultivar a paz, a amizade, a simplicidade; e a fé desse povo, como esse povo tem fé, só se preocupa com o hoje, não pensa em acumular”. “Levo coisas boas: agradecimento, alegria, contemplação, entusiasmo, emoção, empatia, partilha, escuta”. “Levo uma experiência muito forte, vivida na diversidade”. “Levo muitas experiências para partilhar”. “Eu vou mais pobre, porém, mais rico de Deus”.
Para alguns, especialmente os frades, foi uma ótima oportunidade de discernimento vocacional: “São experiências vitais pra minha vocação, me ajudam a discernir minha vida futura. É difícil pensar de outro modo, que não seja a missão”. “Aprendi muito, pra minha vocação foi fascinante”. “Não vim para uma para uma vida social, mas para perguntar-me sobre minha vocação”. Nunca é tarde para descobrir a sua vocação: “Realizei um sonho de 40 anos”. “Tenho mais entusiasmo do que condições físicas, vou voltar outro janeiro, pode ser que um dia fique”. Um outro rematou: “o frade é missionário ou não é frade”.
Missão é saída. “É bom sair de nosso lugar. Não vim para trazer nada, levo a experiência de sair”. “Pessoalmente foi muito importante ter saído do meu país”. “Para mim a missão foi um presente, eu não esperava. Sair a outros lugares é um presente, é um dom”.
Dois sentimentos foram de consenso e repetidos por inúmeros missionários, de gratidão, e da riqueza da convivência fraterna, com os momentos de oração. “Minha primeira palavra é de agradecimento” e a última também, porque até a despedida ninguém parou de agradecer. “Encantou-me a fraternidade que vivemos, foi um pouco do Reino de Deus”. “Construímos uma fraternidade, a fraternidade e a oração em fraternidade foram os pontos altos”. “Sou ruim pra guardar nomes, costume guardar os nomes quando alguém me marca, e aqui guardei o nome de todos”.
Numa experiência vivida com intensidade, muitos são os aprendizados: “A Amazônia começou a me ensinar a viver o momento presente, costumo sempre me antecipar nas coisas que tenho que fazer; descobri que vale a pena esperar”. “Aprendi muito, a conhecer um pouco da Amazônia. Conhecer para amar. Foi uma grande felicidade”. “Aprendi a ser mais contemplativa, a cada dia me surpreendia algo diferente”. “Marcaram-me a contemplação da natureza, e perceber como somos acomodados em nossa situação”. “Aprendi que é possível viver com pouco e ser feliz”. “As minhas expectativas se concretizaram, espero que esta experiência dê muito fruto em mim”.
Nem tudo é maravilhoso, o novo e o diferente sempre trazem insegurança e medo. “Logo no primeiro dia de viagem eu senti vontade de pedir resgate”, testemunhou uma jovem. “Na primeira vez que vim senti medo, mas na segunda vez já não era desconhecido; ao saber que os missionários são franciscanos, me deu mais segurança”. “Eu queria partilhar o que o povo faz, e para mim, um dos desafios foi a água, tomar banho no rio como o povo faz”. Tomar banho no rio, pra uns é lazer, uma festa, mas não faltou quem ficou seis dias sem tomar banho. “Viajar naquele botezinho tão pequeno e com tantas pessoas, parecia que ia afundar, e anoitecendo, eu ficava bem quietinho”. Mas acima de tudo, a mística missionária é mais forte: “Estar no (rio) Amazonas foi um sonho que se concretizou, descobri que posso sobreviver, mas não foi uma aventura, vivi com muito respeito um encontro com Deus”. Ninguém enfrentou serpentes nem jacarés, nem situações limites.
A Amazônia oferece experiências maravilhosas, a exuberância e a imponência das matas e dos rios, mas com certeza, a maior riqueza é o seu povo. Para alguns o grande encanto foi conhecer a sua gente: “O povo vive como o rio, passa calmamente, é um jeito de viver diferente do nosso”. “A alegria nasce do coração das pessoas. Senti a capacidade de partilhar das pessoas, disfrutam do que têm, as pessoas são livres, e nesta liberdade são felizes”. “Vim ver como o povo encontra Deus. O povo que mora aqui tem muito a nos ensinar”.
O encontro com o povo é também um encontro com Deus. “Contemplei muito, observei a beleza do Amazonas, este povo não está abandonado, Deus está com eles, senti sua providencia” “É bom ver como as pessoas vivem a sua fé em Deus: muitos perdem a sua casa a cada crescente, e seguem construindo a sua casa”. “A riqueza da simplicidade, no outro, no diferente, está a presença de Deus”. “O encontro com Deus não tem horário”. “Uma contradição: na pobreza está a riqueza. Eu vou e eles continuam comendo a mesma coisa. Em seu alimento aí está Deus”. “Creio que nunca tinha rezado tanto como aqui, de dia, de madrugada, mas não com o breviário. Regresso muito feliz”.
Por bem da verdade, muitas experiências são difíceis de manifestar em palavras: “As palavras me faltam, a experiência a gente leva no coração”. E nem todos tem facilidade para se expressarem: “É difícil falar, a simplicidade e a contemplação mexeram comigo”.
Impressões pessoais:
Eu também quero expressar minhas impressões pessoais. Algumas coisas me surpreenderam, outras me marcaram fortemente.
– A capacidade dos missionários de acomodarem-se à realidade e a cada situação, muitas vezes desconfortável. Eu estava preocupado com as condições precárias e sem conforto de hospedagem e com o impacto que poderia provocar no ânimo dos missionários. As casas são de adobe, já centenárias e condenadas à demolição. Elas “tem passado, mas já não tem futuro”, sintetizou um. Por melhor que quiséssemos oferecer, é o que a paróquia tem para oferecer. Nem a casa, nem a cama, nem o calor, nem os mosquitos, nada disso diminuiu o entusiasmo, a alegria, nem o espírito comunitário.
– Respeito diante da realidade. Para a grande maioria dos missionários a Amazônia é novidade, é diferente, é exótica. É sempre grande a tentação da arrogância de ser dono da verdade, de criticar, de condenar, julgar tudo a partir da nossa cosmovisão e dos nossos referenciais e nos considerarmos melhores, mais desenvolvidos. Não percebi nada disso, pelo contrário, foi impressionante a atitude de respeito, de sacralidade e de reverência. Até mesmo na hora de avaliar, de fazer críticas, de dar sugestões, principalmente no que se referre à Igreja, a atitude foi sempre de simpatia, de serviço, de colaboração.
Para ter essa atitude a motivação é motivação é fundamental. Com que motivação vieram os missionários? Eis algumas das motivações: conhecer a Amazônia; tocar a grandiosidade da Amazônia; sair e descobrir em outros lugares a presença de Deus; partilhar o tempo com outras culturas; fazer a experiência de viver com, de olhar além, ser presença e não quere converter ninguém; ter encontro com Cristo a partir de outra realidade; encontrar irmãos. Essas atitudes são fundamentais para permitir a ação do espírito santo. Não senti nos missionários “espírito de turista”, nem de aventura, ninguém veio para passear, ou simplesmente para conhecer, mas para fazer missão, dispostos a encarnar-se na realidade local, vivenciar uma experiência séria e em profundidade.
– Não sou de emocionar-me facilmente, mas dois momentos em particular me emocionaram muito. O primeiro foi no encontro de adultos, com o objetivo de fazer um encontro paroquial das pessoas que participaram dos estudos bíblicos ao longo da semana, e com elas refletir sobre o encontro com Jesus e o discipulado. Foi emocionante ver a presença de pessoas que não tem o hábito de participar, dos bairros mais periféricos e pobres, e não só isso, pessoas que nem sequer tem bíblia, partilhando a Palavra de Deus, e falando em público. O outro momento foi depois do encerramento, na avaliação e partilha entre os missionários. Em grupos os missionários avaliaram o trabalho, mas também partilharam as suas experiências. Eu circulei pelos grupos para sentir o conjunto. Ouvi testemunhos impressionantes, que não apareceram no plenário, nem nos relatórios, que me emocionaram muito (nesse momento eu não estava com o caderno para anotar), e que mostram a intensidade e o espírito com que os missionários viveram a missão.
– Tenho a impressão que recuperamos alguns anos de ausência da Igreja. Para entender isto, é preciso fazer um resgate da história. Caballo Cocha teve a presença de um missionário canadense, Pe. Real, que esteve durante 38 anos na paróquia, até sua morte em 2003. Depois dele a presença de padres foi de maneira temporária. O que ficou mais tempo ficou um ano e meio, alguns ficaram poucos meses. A maior parte do tempo ficou sem padre, recebendo visitas de padres ocasionalmente para celebrar sacramentos. Quem garantiu a “presença” da Igreja nesses anos todos, foram as Irmãs Franciscanas de Jesus Crucificado, que dentro de suas limitações, fizeram o possível, atenderam o centro, e criaram centros de catequese nos bairros. Nós chegamos em junho de 2015, em dois frades, tempo ainda insuficiente para conhecer a realidade e ganhar a confiança. Ainda não conseguimos chegar a todas as comunidades. Alguns nos veem como “prestaditos” (emprestados). Algumas comunidades ficaram anos sem receber visita de um missionário. Nos lugares onde os “animadores” perseveram, conseguiram manter fiel a comunidade católica. Em outros lugares o pessoal migrou para igrejas evangélicas, para ao menos ter a oportunidade de ouvir a Palavra de Deus. Estamos tentando resgatar antigos animadores e descobrir novos. Em uma semana oito bairros viveram uma experiência intensiva de proximidade com a Igreja. E na semana seguinte foram visitadas 24 comunidades ribeirinhas, com a presença de três missionários durante dois dias em cada uma. Os missionários nos deixaram uma lista com 25 nomes, homens e mulheres, alguns são casais, de possíveis animadores, dos casarios e dos bairros. Sem contar que muitos se animaram a reconstruir, ou a construir a sua capela. Uma grande bênção. Um pentecostes!
– O espírito de partilha da paróquia. Um projeto missionário como esses tem o seu custo. Cada missionário assumiu sua própria viagem. Nós (Projeto Amazônia) assumimos as viagens e transporte local (as passagens de barco e a gasolina para os deslocamentos em bote), e solicitamos da paróquia, além da hospedagem, a alimentação para os missionários. Foi uma multiplicação dos pães. Alguém doou todo o arroz, uma padaria todo o pão, outros uma cesta básica e ofertas diversas em víveres ou em espécie chegavam a cada dia. Alguns ofereceram uma refeição, uma comida típica e vieram preparar. O que faltou foi completado pelas ofertas da coleta dominical. Não faltou a contribuição dos próprios missionários: uma vez os mexicanos fizeram uma comida típica mexicana, outra vez os argentinos, e os brasileiros também se animaram. Uma missionária testemunhou: “vivi a multiplicação dos pães a cada dia, a irmã estava preocupada e as coisas chegavam”. A confiança na providência e a partilha fazem parte do evangelho.
– A fidelidade e confiança dos animadores. Muitas comunidades perseveram pela dedicação e fidelidade dos animadores, mesmo com pouco apoio, e apenas dois encontros de formação por ano. As missões nos casarios foram organizadas e programadas com eles, e onde não tem animadores, com as autoridades locais. O combinado, como já disse, foi que eles iriam transportar os missionários com seus botes e motores, para todos os lugares, e iriam oferecer a comida. Nós entramos com o combustível. Isso pode ser normal em outros lugares, mas aqui nesta região da Amazônia não. O conceito que se tem é que os missionários tem tudo, tem comida, tem dinheiro, constroem igrejas e não precisam de nada. Estamos tentando mostrar já foi assim, mas hoje não é mais. Os católicos mesmos é que devem colaborar e manter a sua comunidade. Nesse sentido Caballo Cocha já tem uma caminhada, porque em 2010 em uma tempestade o vento arrancou o telhado, e depois a chuva acabou com o que restou (as paredes eram de adobe e foram se derretendo). As missões foram uma prova de fogo e, funcionou, tanto o transporte como a alimentação. Obrigado aos missionários por terem se submetido a isso. É preciso confiar, porque o Espírito Santo não deixa desprovida a sua Igreja!
As boas notícias continuam
– Não podemos deixar de partilhar: no mesmo dia que viajaram os missionários, chegou a primeira parte do material para a construção de uma casa nova para as irmãs. Alguns missionários, que viajaram um dia depois, ainda ajudaram descarregar. Poderia ter chegado alguns dias antes, mas a casa estava ocupada, e não teria onde guardar. A decisão de construir primeiro a casa das “hermanas”, depois a dos “hermanos” foi tomada na visita pastoral do bispo. Para uma já tem grande parte dos recursos, para a outra ainda tem que esperar e procurar aliados e apoiadores. A notícia de que o Conselho Econômico tinha aprovado iniciar a construção, mesmo sem ter todo o orçamento necessário, chegou com os missionários.
– Por que não visitaram nosso “pueblo”? Quando se descarregava o material, um missionário me falou: “estão te procurando, é algo você vai gostar!”. Eram as autoridades de um casario. Apresentaram-se e foram explicando o motivo da visita: “Soubemos que na semana passada uns missionários estiveram visitando as comunidades, estiveram bem pertos, nas duas comunidades vizinhas, pra cima (rio acima) e pra baixo (rio abaixo), ficamos esperando e não nos visitaram. Por que não visitaram nosso ‘pueblo’”? Agradeci a visita, tive que explicar e desculpar-me. Esta comunidade não estava na minha lista, estamos conhecendo a paróquia e ainda não temos uma relação total das Comunidades, nem dos animadores. Além disso, tínhamos tomado a decisão, para evitar situações constrangedoras, de não enviar missionário a nenhum lugar onde ainda não estivemos e não conhecemos. A tarefa de abrir caminhos é nossa, e não dos que vem de fora para colaborar. Essa não seria uma situação constrangedora, teria sido uma alegria: “Temos animador, nos reunimos aos domingos, e queremos construir uma capela”. “Queremos fazer isso antes de terminar nosso mandato”, completaram. De fato foi uma alegria! Cobranças assim podem vir outras. Na rua também já fui cobrado, como quando alguém me abordou, dizendo: “você prometeu nos visitar e ainda não foi, estamos esperando”. A Igreja continua viva, a messe é grande e os trabalhadores são poucos.
Uma Igreja frágil, mas viva
Em muitas ocasiões tive a sensação de estar em uma Igreja em ruínas, a mesma experiência de São Francisco de Assis: onde tinha animador, já não tem; onde tinha catequistas, já não tem; onde tinha igreja (capela), já não tem, ou porque apodreceu, ou porque o rio levou; onde tinha celebração dominical, já não tem; onde tinha missionários que visitavam, davam formação e animavam as comunidades, já não tem. Falo isso não só da paróquia, pelos motivos que já expliquei, mas também de outros lugares da Amazônia que já visitei. Para ter uma ideia, as paróquias vizinhas, as duas descendo o rio, e as duas subindo, estão sem padre. Isso por vários motivos, um deles é a diminuição de missionários, pelo menos o modelo de missionários que se conheceu no passado. E outro motivo é a pouca confiança na gente do lugar, seja como padres ou como leigos. O Vicariato mesmo, com mais de 60 anos de presença missionária, só tem dois padres naturais da Amazônia. Alguma coisa está mudando, porque tem nove candidatos ao sacerdócio (seminaristas).
Mas é sobre isso que quero refletir, porque as percepções são diferentes. Nesse contexto é animador a análise e testemunho de um missionário (um frei): “senti-me missionando numa Igreja viva, frágil, mas viva, uma Igreja que está a caminho”. E continuou, “há uma sintonia entre os freis e as irmãs”. E acrescentou: “o que fizemos vai ficar como ajuda”. “Espero que não se apague a chama nesta cidade”, concluiu. Outro frei confirmou: “esse tipo de Igreja me encanta, frágil, mas viva”. Mesmo entre ruinas, por entre as cinzas, as brasas continuam vivas.
A sensação geral, que tive nessa missão, foi de pequenez, a mesma que senti no dia da ordenação. As circunstâncias da vida e a providência divina nos colocaram nesse lugar, um rincão da Amazônia, fronteira de três países, com uma presença tri centenária de missionários e da Igreja, mas uma história de muita dor e muito sofrimento, principalmente das populações nativas, de muita morte e destruição fruto da exploração e da injustiça, uma experiência de uma Igreja em ruinas para ser reconstruída. Uma tarefa muito grande, que é impossível realizar sozinho, mesmo em fraternidade, só mesmo com muita confiança, solidariedade, e a graça de Deus.
Quero terminar com as palavras da Irmã Martha: “Este projeto é obra de Deus, e se é obra de Deus vai em frente. Deus está presente, a comida não acabou. Estou muito agradecida, Caballo Cocha e a paróquia foram muito abençoadas por vocês, a missão transforma, e os que estão procurando a sua vocação, não demorem muito”.
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