Notícias - Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil - OFM

A Tradição de Jesus e a Religião Cristã

17/10/2013

Notícias

artigo

Leonardo Boff  (*)

Para se entender corretamente o Cristianismo se fazem necessárias algumas distinções, aceitas pela grande maioria dos estudiosos. Assim importa distinguir entre o Jesus histórico e o Cristo da fé. Sob o Jesus histórico se entende o pregador e profeta de Nazaré como realmente existiu  sob César Augusto e Herodes. O Cristo da fé é o conteúdo da pregação dos discípulos que veem nele o Filho de Deus e o Salvador.

Outra distinção importante é entre Reino de Deus e Igreja. Reino de Deus é a mensagem originária de Jesus. Significa uma revolução absoluta redefinindo as relações do ser humano com Deus (filhos e filhas), com os outros (todos irmãos e irmãs) com a sociedade (centralidade dos pobres) e com o universo (a gestação de um novo céu e uma nova terra). A Igreja só foi possível por causa rejeição de Jesus e com isso da não realização do Reino. Ela, como comunidade organizada de fiéis, é uma construção histórica, tentando levar avante a causa de Jesus nas diferentes culturas e tempos. A encarnação dominante é na cultura ocidental. Mas se encarnou tambem na cultura oriental, na copta e em outras.

Outra distinção importante é entre a Tradição de Jesus e a religião cristã. A Tradição de Jesus se situa anteriormente à escritura dos evangelhos, embora esteja contida neles. Os evangelhos foram escritos depois de 30 até 60 anos depois da execução de Jesus. Nesse entretempo já se haviam organizado comunidades e igrejas, com suas tensões, conflitos internos e formas diferentes de organização. Os evangelhos refletem e tomam partido dentro desta situação. Não pretendem ser livros históricos, mas livros de edificação e de difusão da vida e da mensagem de Jesus como Salvador do mundo.

Dentro deste emaranhado que significa a Tradição de Jesus? É aquele núcleo duro, aquele conteúdo que cabe numa casca de noz e que representa a intenção originária e a prática de Jesus (ipsissima intentio et acta Jesu) antes das interpretações que se fizeram dele. Esta pode ser resumida nos seguintes pontos entre outros:

Em primeiro lugar vem o sonho de Jesus: o Reino de Deus como uma revolução absoluta da história e do universo, proposta conflitiva pois se opunha ao Reino de César. Depois sua experiência pessoal de Deus que a transmitiu ao seguidores: Deus é Paizinho (Abba), cheio de amor e de ternura. Sua característica especial é a misericórdia, pois ama  até os ingratos e maus (Lc 6, 35). Em seguida prega e vive o amor incondicional que é posto na mesma altura que o amor a Deus. Outro ponto é conferir centralidade aos pobres e invisíveis. Eles são os primeiros destinatários e beneficiários do Reino, não por sua condição moral, mas porque são privados de vida o que leva ao Deus vivo a optar por eles. No comportamento que tivermos para com eles se decide nosso destino futuro (Mt 25, 46). Outro ponto importante é a comunidade. Ele escolheu doze para viverem com ele; o número doze é simbólico: representa a comunidade das 12 tribos de Israel e a comunhão entre todos os povos, feitos Povo de Deus. Por fim é o uso do  poder. Só se legitima aquele uso que é serviço e seu portador deve sempre buscar o último lugar.

Este conjunto de valores e visões constitui a Tradição de Jesus. Como se depreende, não se trata de uma instituição, doutrina ou disciplina. O que Jesus queria era ensinar a viver e não criar uma nova religião com fregueses piedosos de uma instituição religiosa. A Tradição de Jesus é  um sonho bom, um caminho espiritual que pode ganhar muitas formas e que pode ter seguidores também fora do quadro eclesial.

Ocorre que essa Tradição de Jesus se transformou, ao longo da história, numa religião, na religião cristã: uma organização religiosa, na forma de diversas Igrejas especialmente na Igreja romano-católica. Elas se caracterizam por serem instituições com doutrinas, disciplinas, determinações éticas, formas rituais de celebração e cânones jurídicos. A Igreja católico-romana concretamente se organizou ao redor da categoria poder sagrado (sacra potestas) todo concentrado nas mãos de uma pequena elite que é a Hierarquia com o Papa na cabeça, com exclusão dos leigos e das mulheres. Ela detém as decisões e o monopólio da palavra. É hierárquica e criadora de grandes desigualdades. Ela se identificou com a Tradição de Jesus.

Esse tipo de tradução histórica encobriu de cinzas grande parte da originalidade e do fascínio da Tradição de Jesus. Por isso, as Igrejas todas estão em crise, pois não constituem “alegria para todo o povo” (Lc 2,11) como era nos primórdios.

O próprio Jesus entrevendo este desenvolvimento, advertiu que pouco adianta observar as leis e “não se preocupar com o mais importante que é a justiça, a misericórdia e a fé; é isso que importa, sem omitir o outro”(Mt 23, 23).

Atualizemos: em que reside o fascínio da figura e dos discursos do Papa Francisco? Reside no fato de se ligar diretamente à Tradição de Jesus. Afirma que “o amor vem antes do dogma e o serviço aos pobres antes das doutrinas” (Civiltà Cattolica). Sem essa inversão, o Cristianismo perde “o frescor e a fragrância do Evangelho” e se transforma numa ideologia e numa obsessão  doutrinária.

Não há outro caminho para a recuperação da credibilidade perdida da Igreja senão voltar à Tradição de Jesus como  o faz  sabiamente o Papa Francisco.

(*) Leonardo Boff é autor de Cristianismo: o mínimo do mínimo, Vozes 2012.