A misericórdia na perspectiva franciscana
04/08/2017
Aparecida (SP) – Os capitulares reunidos em Aparecida, no segundo dia do Capítulo das Esteiras nesta sexta-feira, 4 de agosto, Dia do Padre, tiveram um dia de formação com ninguém mais do que Frei Luiz Carlos Susin, frade capuchinho, doutor em Teologia pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma e professor na PUC-RS, só para citar alguns destaques de seu currículo.
Frei Susin falou sobre a misericórdia na perspectiva franciscana. Mas antes de entrar diretamente no tema, abordou um problema histórico, que segundo a tradição doutrinária a respeito de Deus, colocou mais acento no Deus metafísico. “Quando pensamos em Deus, na sua grandeza metafísica, na sua onipotência, até por uma tradição muito antiga da filosofia grega, fomos em direção ao Deus absolutamente imutável; e sendo imutável, também impassível. Deus que não se deixa tocar, e que não tem propriamente sentimentos. E aí vocês podem ver que teríamos problemas para falar do Deus da misericórdia”, observou.
Para o palestrante, é preciso cuidar muito com estas expressões Onipotente, Todo-poderoso etc. “Isso estava bem, está bem, nós podemos continuar rezando o Credo dizendo que Deus é onipotente. Isso é doutrina e dogma da Igreja. Mas quando isso deriva para uma certa unilateralidade, por causa, sobretudo, de uma herança filosófica, então, esse Deus imutável, metafísico, onipotente, se torna a imagem de um Deus impassível”, explicou, ensinando: “Por isso que, quando a gente diz que Deus é Todo-poderoso, não deve esquecer que tem de dizer que Deus é Pai Todo-poderoso e, em segundo lugar, que seu poder se manifesta exatamente no seu amor, na sua misericórdia”.
Frei Luiz lembrou que no contexto bíblico, combinar a justiça e a misericórdia de Deus não é tarefa fácil. “Nós poderemos compreender melhor a misericórdia não como um simples ato de bondade de Deus, sobretudo quando a misericórdia aparece em contraste. Por isso que o profeta diz: misericórdia eu quero e não sacrifícios. Ela aparece nesse contraste e no contexto em que se acreditava que, para agradar Deus, era necessário sacrificar algo, como se Deus dissesse ‘vita mea mors tua’. A minha vida vive um pouco da tua morte. Isso é sacrifício”, explicou, lembrando que a palavra sacrifício é polissêmica e existem mudanças no seu sentido. “Quando nós dizemos, na Eucarista, ‘sacrifício de louvor, sacrifício de pão e vinho’, aí temos outra maneira de dizer a palavra. Então, o que significa dizer misericórdia e não sacrifício? É dizer que Deus e a relação com Deus se faz de outra maneira”.
Segundo o frade, na Escritura, a palavra misericórdia mais privilegiada é ‘rahamim’, que tem como raiz o ventre materno. Misericórdia sinifica “gerar com dores de parto”. “Nós temos aqui outra maneira de ver Deus, que não é só ‘El Shaday’, somente o grande, o poderoso, mas é o ‘rahamim’, o compassivo, o misericordioso, o clemente. E assim nós descobrimos um outro movimento de Deus, que não é só da glória de Deus, mas que se manifesta paradoxalmente no seu contrário: em se aproximar, envolver, nutrir, proteger. Na teologia judaica, isso significa ‘shekinah’, a presença divina que envolve a tenda, que envolve o povo que caminha no deserto”, aprofundou.
Segundo o frade, para conhecer a glória de Deus, é preciso começar não pela grandeza, mas pela humildade, pela misericórdia, pela esvaziamento dessa grandeza que se mostra na misericórdia.
TRADIÇÃO FRANCISCANA
Frei Susin abordou três pontos para falar da experiência da misericórdia como formatação do modo de ser franciscano:
1. Uma experiência de misericórdia como iniciação à vida franciscana
“Com o leproso Francisco vive a figura do bom samaritano. Reparem que essa é uma experiência samaritana de Francisco. Ele faz uma experiência de ser tocado, uma experiência de compaixão, que tem a ver com sentimento, e finalmente a misericórdia. Ele viu, ele se aproximou, ele teve compaixão e cuidou das suas feridas. Portanto, essa experiência samaritana é um desafio no início da formação franciscana”.
2. A misericórdia como fundamento da fraternidade, da irmandade;
“Naquela experiência de Francisco passar entre os leprosos, ele foi conduzido por Deus mesmo para que ele tivesse novos relacionamentos. Depois disso, nós sabemos que houve uma troca de linguagem em Francisco, de tal maneira que, mesmo quando ele fala para homens como uns devem se comportar em relação a outros, ele apela para uma linguagem feminina e maternal”. É a Fraternidade vista como cuidado, próprio do carisma franciscano.
3. A misericórdia como relação justa com todos os seres vivos.
“Animais não são parte da ecologia. Animais foram dados pelo Criador para conviver conosco. O mundo não foi dado só para nós. Nós somos o regente da orquestra. Um regente sem a orquestra é um desastre”.
Frei Susin diz que Francisco não se sente Senhor das criaturas e deve-se aplicar a todas as criaturas a mesma relação que teve com os irmãos, com Clara e com as irmãs.
O frade fez uma provocação aos participantes do Capítulo: “Se nós temos São Francisco como Patrono da Ecologia, nós temos que nos acordar para certas coisas”, disse, referindo ao problema ambiental que vivemos e que pode, muito em breve, destruir o planeta.
O frade indicou o filme (pode ser visto no Youtube) de Marianne Thieme, deputada da Holanda, que apresenta argumentos e dados relevantes e complementares sobre a contribuição da atividade pecuária para o aquecimento global.
“No Brasil, isso é gritante. Por quê? Um dos nossos maiores problemas é proteger as florestas da Amazônia, que são devastadas para o plantio de pastagens e grãos para o gado. 70% do cultivo agrário do Brasil existe em vista da carne e 80% da carne não fica no Brasil. Dos 70%, 35% para pastagens e 35% é para cultivo de grãos para animais. Sobra 30% para outras formas de comida no mercado interno. Nós voltamos a ser uma grande fazenda colonial do mundo que nos compra”, denunciou, dizendo essas estatísticas podem ser verificadas em diversas fontes diferentes. Ele terminou com uma mensagem em vídeo de Leonardo Boff falando sobre o problema ambiental. “Ele foi meu professor e hoje é um companheiro para quem tenho muito carinho”, completou.
CELEBRAÇÃO EUCARÍSTICA
Frei Carlos Silva, Ministro Provincial dos Frades Menores Capuchinhos de São Paulo, presidiu a Celebração Eucarística, às 10h50, no Centro de Eventos. No final do dia, os capitulares participaram da Celebração Penitencial na Basílica.
Na sua homilia, Frei Carlos falou do encontro. “Nós seguimos a forma de vida de um homem e de uma mulher que se encontraram com Cristo. E o Frei Susin nos falava desse encontro de Francisco como: amargo, horrível e nojento. Mas aquilo que era amargo se tornou doçura da alma e do corpo. E Francisco quando fez esse encontro disse: ‘Eu fiz misericórdia com eles’. Esse foi o encontro com o rosto da misericórdia que se estendeu para os rostos que estavam aí pelo caminho, os leprosos e os pobres. Nós, estamos na casa da Mãe. Trezentos anos atrás ela foi encontrada pelos pobres pescadores. O primeiro Santuário não foi essa majestosa basílica, mas foi a casa dos pobres. Por mais de 30 anos, ela peregrinou pela casa dos pobres. E foi fazendo esses homens e mulheres pobres se encontrarem com Cristo”, disse.
Segundo o Provincial, assim é a vida: feita de encontros. “Que encontro restaurador é esse! Que Capítulo das Esteiras comprometedor! Nos lembra que somos peregrinos e forasteiros. Nos lembra a nossa vocação comum que abraçamos como forma de vida e que nos leva ao encontro de irmãos e irmãs. Não basta imitar a Cristo e Francisco, é preciso ter paixão, como dizia Frei Vitório ontem”, recordou, pedindo a confirmação de Frei Vitório, que reforçou sua frase: “O seguimento de Francisco e Clara é puro enamoramento”.
CRB
A presidente da Conferência dos Religiosos do Brasil (CRB), Irmã Maria Inês Vieira Ribeiro, veio ao Capítulo e falou de sua alegria em ver a Família Franciscana reunida em Aparecida.
“Para mim é muito importante estarmos juntos neste momento de reflexão aos pés de Nossa Senhora. Para nós, consagrados, o momento que vivemos no Brasil é muito desafiador. E é justamente nessa energia de consagrados aos pés de Nossa Senhora que podemos acreditar num Brasil reconstruído, pela nossa unidade, comunhão, ação conjunta. Eu desejo que este Capítulo vá de encontro àquilo que a nossa Conferência está propondo para nós: integrar mística e profecia. A nossa 24ª Conferência colocava como primeira prioridade buscarmos com sinceridade e com o coração ardendo. E quem mais do que Francisco e Clara anos ajudaria a manter esse coração ardendo de amor a Cristo e a Maria, de amor pelo Reino? E com esse coração ardendo, colocamos os pés a caminho”, disse, completando: – Meus irmãos e minhas irmãs, quando o coração não arde, os pés não andam.
Durante o dia, as Irmãs de Sissen, de Guaratinguetá, e as Franciscanas Catequistas, deram testemunhos de realidades de fronteiras. Ir. Rosa, que é Provincial das Irmãs Franciscanas de Sissen, falou da experiência de misericórdia que viveram com a morte de Ir. Odete, que foi assassinada brutalmente em 2015, momentos antes da oração da manhã. As Irmãs Catequistas falaram do trabalho evangelizador com mulheres vítimas da violência doméstica na Baixada Fluminense. Momentos fortes de reflexão e dor.
CELEBRAÇÃO PENITENCIAL
Os Capitulares estiveram em Aparecida para celebrar também o Jubileu de 800 anos do Perdão de Assis. Um dos momentos mais bonitos foi a Celebração Penitencial na Basílica Nacional de Aparecida, na sexta-feira. Todos os participantes se reuniram para celebrar o maior gesto de amor de Deus Pai para conosco: reconstruir a própria história à luz de uma relação renovada com os outros.
Frei Gilson Nunes, Ministro Provincial dos Frades Menores Conventuais, presidiu a celebração, lembrando que estavam na casa da Mãe Aparecida, a Virgem feito Igreja, a Virgem Pobrezinha, num momento histórico: os trezentos anos de bênçãos e de graça. A Basílica de Aparecida ficou ainda mais bela com as velas acesas dos capitulares:
“Nós queremos pedir que esse fogo, que essa luz se acenda no nosso coração como gratidão e louvor e que a Família Franciscana, depois de 50 anos de caminhada, com o Cefepal, com a Família Franciscana do Brasil e por último a Conferência da Família Franciscana, que a Virgem Negra interceda por nós para que reencontremos o caminho da unidade, da interdependência. Que seja reacendido em nossos corações o amor que ardia no coração de nosso Pai Francisco!”, disse o celebrante.
Neste sábado, dia 5 de agosto, os capitulares refletirão sobre a Laudato Si’, com a assessoria de Frei Rodrigo Peret (OFM), Moema Miranda (OFS) e Igor Bastos (Jufra). Será também o dia das oficinas.
Equipe de Comunicação do Capítulo