Experiência missionária: A lição que fica da Amazônia
17/10/2017
Assim como a tinta de jenipapo, que ficou impregnada por mais de duas semanas em nossos corpos, sinto que os efeitos da Missão na Amazônia ainda continuam reverberando e dando frutos, pois tudo aquilo que vivenciamos enquanto fraternidade deixou marcas profundas na alma e no coração.
Promovida pela Conferência dos Frades Menores do Brasil, a experiência missionária na Amazônia aconteceu, de 12 a 26 de setembro, na Custódia São Benedito, junto aos índios Mundurukus, do Rio Cururu, no estado do Pará. Destinada aos frades de até dez anos de profissão solene, mais conhecida como Under Ten, a Missão contou com a participação de oito frades, a saber: Freis Diego A. de Melo, Jeâ Paulo Andrade, João Lopes da Silva, da Província da Imaculada; Freis Irwin Couto e João Ricardo, da Província da Santa Cruz: Frei Jorge Vasconcelos, da Custódia das Sete Alegrias; Frei Ricardo Gomes, da Província de Santo Antônio; e Frei Cristóvão Jackson, da Província da Assunção.
Ao longo de duas semanas vivenciamos e partilhamos muitas coisas, ouvimos muitas histórias, experimentamos novos sabores, partilhamos novos costumes, expressões, língua e cultura diferentes. Adaptar-se com a rede para dormir, acostumar-se a uma modesta alimentação feita praticamente de peixe, suportar as 36 horas de viagem pelos rios Tapajós e Cururu, enfrentar os desafios e riscos de uma viagem pela Transamazônica e partilhar um pouco do cotidiano e do ritmo de vida dos índios foi, talvez, a grande riqueza dessa Missão.
Assim, embora receoso de escrever qualquer coisa sobre os índios Mundurukus, tendo em vista o pouco tempo que ficamos entre eles, sinto-me no dever de partilhar parte daquilo que vivenciamos, bem como algumas singelas impressões, de modo que essa experiência possa ser transformadora para os outros, assim como o foi para nós. Não se trata de uma análise de um antropólogo, cientista social ou algum entendido da área. É, na verdade, apenas uma reflexão baseada no desejo de descobrir as sementes do Verbo presentes em todos os lugares. Afinal, como franciscanos, sempre descobrimos a presença secreta e misteriosa de Deus nos mais diferentes lugares e culturas.
Pois bem, a primeira conclusão e aprendizado que tiro é o conceito de civilização. Muitas vezes ouvimos expressões de que o índio não é civilizado, de que, pelo fato de viverem no meio da mata e por muitas vezes não terem acesso ao computador, à TV ou outras tecnologias, são menos civilizados do que aqueles que vivem nas cidades. Nosso etnocentrismo, branco e ocidental, julga-os como primitivos ou atrasados, colocando-os em um grau de inferioridade.
Convivendo esses poucos dias com eles, fico me perguntando se não seria muito mais civilizado aquele que é capaz de conviver harmonicamente com a natureza, respeitando seus ciclos e tempos, do que nossa sociedade capitalista neoliberal que só vive a partir da lógica do consumo e da destruição. Para o índio, não existe essa lógica do acúmulo, da ganância e do lucro. A cada dia, eles saem para pescar e cultivar a sua pequena roça, pois a natureza lhes garante o necessário para viver. Quando um grande peixe é pescado ou a caça de um grande animal é feita, o alimento é automaticamente partilhado com toda a aldeia. Além disso, seu espírito de comunhão os faz partilhar todas as manhãs o café da manhã, quando também aproveitam a reunião para conversar, dialogar e tentar resolver coletivamente alguma dificuldade. Diante disso tudo, só posso concluir que selvagem não é o índio que vive na floresta e no meio da mata, mas somos nós, que muitas vezes vivendo em grandes cidades em um ritmo alucinante e degradante, estamos adoecendo coletivamente e destruindo nossa própria casa, a mãe terra.
Outro ponto que gostaria de destacar é sobre a nossa consciência moral e os nossos padrões de comportamento ligados ao corpo, realidade essa que acredito que os índios estejam muito mais evoluídos do que nós.
Nossa falsa moralidade erotiza demasiadamente o corpo humano, explora e lucra com a pornografia e, ao mesmo tempo, condena o nu e suas expressões. Será que nós, brancos e ‘não indígenas’, temos realmente uma equilibrada consciência moral, quando um seio exposto é sinal de vulgaridade, quando um corpo um pouco mais descoberto é um convite ao sexo e uma justificativa para o estupro, quando é preciso criar uma lei para que uma mãe possa amamentar seu filho publicamente? Nesses dias de missão, vimos muitas índias com os seios de fora, meninos e meninas nuas brincando e tomando banho no rio sem nenhum problema e com a maior naturalidade. Crianças e jovens participando das celebrações litúrgicas com suas roupas típicas, deixando seus corpos naturalmente expostos. Diante disso tudo, concluo que a sua maneira de ser e se relacionar ainda está muito mais próximas da lógica paradisíaca em que o homem e a mulher, criados à imagem e semelhança de Deus, andavam livremente e sem nenhuma maldade do que nós, ‘civilizados’. Mais uma vez, nossa pretensa moralidade ainda tem muito que aprender com aqueles que julgamos ‘atrasados’.
Outro aspecto que muito me marcou foi o profundo espírito religioso dos índios Mundurukus. A sua cosmovisão e a maneira como veem relacionadas todas as coisas criadas são uma verdadeira catequese para nós. Não obstante os equívocos que os missionários possam ter cometido ao longo dos séculos de Evangelização, que algumas vezes pode ter sido reduzida à simples doutrinação, percebi que há uma boa integração entre as suas crenças e tradições com o nosso catolicismo tradicional.
Nossos freis estão nessa missão há 106 anos. Doaram e continuam doando suas vidas pelos índios Mundurukus, que encontram na figura dos Pains (freis) um sinal da presença de Deus, respeito, proteção e defesa dos seus direitos e da sua cultura. A alegria com que nos recebiam nas aldeias é impossível de ser expressa em palavras. Só quem viu a emoção dos caciques, crianças e adultos com a presença missionária pode entender essas palavras. Como nos disse um dos caciques: “A vinda de vocês à nossa aldeia é sinal de que Deus não se esqueceu de nós”. Expressões como essa serviam como força para continuar enfrentando as longas horas de viagem na desconfortável voadeira.
Seu respeito pelas coisas sagradas é exemplar e inspirador, pois assim como eles adentram em uma igreja com toda a reverência, beijam a mão do Paim pedindo a bênção, também pedem licença ao rio para pescarem o seu alimento e à floresta antes de iniciar uma caça. Assim como fazem da celebração eucarística um momento de encontro com Deus e da partilha do corpo de Cristo, também são capazes de partilhar o alimento material que a mãe natureza lhes proporciona. Interessante também é a sua concepção de pecado e as suas consequências. Dentro da sua cultura e tradição religiosa, os grandes pecados são a maldade, a falta de partilha, o desrespeito pela natureza e para com a pessoa, de modo que quem morre em pecado torna-se um animal selvagem. Assim, ser pecador é deixar de ser humano e tornar-se um animal irracional. Ser santo significa dominar a sua selvageria e tornar-se cada vez mais humano.
Não poderia deixar de mencionar que os índios, como qualquer outro grupo humano, também precisam aprimorar outros aspectos de sua cultura. Reconhecer suas grandezas não significa idealizá-los cegamente como se fossem perfeitos ou imunes ao erro, mas é sinônimo de que podemos e devemos aprender uns com os outros e que é preciso quebrar nossos preconceitos e barreiras.
Diante de todo esse aprendizado e partilha, somente podemos agradecer a Deus por essa experiência Missionária tão singular e marcante em nossas vidas. De ora em diante, a Amazônia não será uma realidade somente feita de árvores e rios, pois será sinônimo de muitas vidas, histórias, sonhos e lutas daqueles povos indígenas que, não obstante os mais de cinco séculos de dominação, invasão e depreciação da sua vida e costumes, continuam resistindo com determinação e sagrada teimosia.
Paz e bem.
DEPOIMENTOS
“Esses dias de Missão me ensinaram que devo ser mais simples. Que é possível ser feliz vivendo com pouco.” (Frei Ricardo Gomes)
“Os índios e os Frades foram um verdadeiro exemplo de humanização.” (Frei João Ricardo)
“Levo dessa experiência o desejo de entregar-me mais. Doar-me mais pela fraternidade, pelo povo e pela missão.” (Frei Jorge Vasconcelos)
“Consegui reavivar a alegria gratuita pelas coisas simples e o meu espírito lúdico. Foi uma rica experiência. Volto mais feliz.” (Frei João Lopes da Silva)
“A realidade indígena tem muito a nos ensinar e esses dias foram uma oportunidade divina de alimentar o espírito missionário.” (Frei Irwin Couto)
“Para nós, que estamos dando os primeiros passos na vida Franciscana, vivenciar tudo isso é muito motivador.” (Frei Cristóvão Jackson)
Cheiro de peixe
Era dia 17 de setembro de 2017, festa das Chagas de nosso Pai São Francisco de Assis. Estávamos viajando de voadeira (uma espécie de barco a motor) há mais de seis horas, quando tínhamos partido da aldeia Restinga, onde havíamos celebrado batizados e primeira comunhão de alguns jovens.
Nossa previsão de chegada à próxima comunidade era para as 13hs, onde estavam todos nos aguardando para o almoço. No entanto, tendo em vista que o Rio estava muito baixo, nosso barco teve que ir mais devagar e chegamos somente depois das 16hs.
No meio da grande floresta e da imensidão de água, nossa fraternidade itinerante seguia sua viagem. A fome, o cansaço, o sono, o sol e calor escaldantes me faziam refletir sobre muitas coisas. Algumas partilhadas com os confrades, outras silenciadas no coração e na oração.
Mas o que me levou a escrever esse texto foi sobre uma brincadeira feita no barco e que talvez esteja tão carregada de verdade e ensinamento.
Pois bem, em uma das paradas ganhamos algumas bananas e um peixe assado. Partilhamos imediatamente o alimento, pois a fome já apertava. Embora em número diferente, também aconteceu o mesmo milagre da partilha promovido pelos dois pães e cinco peixes do Evangelho.
Depois de ter comido o peixe, Frei Cristóvão comentou que mesmo tendo lavado suas mãos, elas continuavam com o cheiro forte desse alimento tão essencial para esse povo.
Diante da sua constatação, Frei Erlison replicou, dizendo: ‘Frei, lembre-se que o Papa Francisco disse que devemos ter o cheiro das ovelhas. Esse é o cheiro das suas ovelhas daqui da Amazônia.’
Diante disso, imediatamente cheirei meus dedos e percebi que aquele era o mesmo cheiro que havia sentido no meu primeiro dia de missão ao abraçar e beijar as primeiras crianças das aldeias. Confesso que ao beijá-las, aquele cheiro me pareceu estranho e, de certa forma, desagradável.
Naquele momento, ao cheirar meus dedos que tinham acabado de pegar o peixe, percebi que o cheiro das crianças e dos índios era exatamente o mesmo cheiro que estavam em minhas mãos e meus dedos.
Disso tudo, concluo que se não tivesse partilhado do alimento deles, jamais entenderia o seu cheiro, ou seja, para realmente entender as pessoas que estão à nossa volta é preciso tempo, partilha, proximidade e abertura.
Assim, fiquei pensando que o pedido do Papa para termos o cheiro das ovelhas é muito mais exigente do que imaginamos. Acredito que muitas vezes não entendemos nossas ovelhas nem tampouco as acolhemos pelo fato de não estarmos próximos a elas. Não partilhamos do quotidiano de suas vidas, suas lutas e suas alegrias. Como pastores, muitas vezes estamos distantes do povo que nos é confiado. Fechados em nossas secretarias paroquiais, nossos conventos, nossas leis, nossos programas, nossas estruturas e nossas seguranças, vamos esquecendo o modo de vida das pessoas.
No entanto, acredito que esse pedido do Papa não serve somente para nós, frades ou padres, mas é possível estender essa reflexão também àqueles que são cuidadores ou pastores de outros. Penso nos pais que no frenesi da vida se distanciaram de seus filhos. Nos professores que não são capazes de entender a realidade de onde seus alunos proveem. Nos casais que mesmo partilhando do mesmo teto e da mesma cama, vivem separados em seus corações e sentimentos.
Dessa distância nasce o estranhamento, a incompreensão, o julgamento, as exigências inadequadas e, por fim, a falsa ideia de que nosso povo, ou seja, o outro tem um ‘cheiro ruim e desagradável’, quando, na verdade, somos nós que desconhecemos o verdadeiro cheiro das pessoas que nos são confiadas ou estão à nossa volta.
Assim, diante desses e de tantos outros exemplos, só posso concluir o quanto é necessário ouvirmos o apelo do Papa para termos o cheiro das ovelhas, ou seja, criarmos mais proximidade entre nós. É preciso diminuir as distâncias, aprofundar a comunicação, dedicar tempo e interessar-se mais pela realidade do outro. Ter cheiro das ovelhas significa construir verdadeiras relações capazes de entender as inquietações, angústias, sonhos e alegrias daqueles que estão ao nosso lado.
Por fim, voltando à grande experiência da missão, espero não mais estranhar o cheiro das minhas mãos, pois agora entendi que era o cheiro sagrado daqueles que não só pescam o peixe, mas sabem dividi-lo com todos os que estão à sua volta, até mesmo com os ‘Pains’ (freis), homens brancos, que não sabem sua língua, não são da sua aldeia, mas que mesmo assim são acolhidos como sendo da sua própria família.
Frei Diego Atalino de Melo, OFM
frei.diego@hotmail.com