“Educação é para formar pessoas felizes”
03/12/2015
Moacir Beggo
Curitiba (PR) – O teólogo e escritor Frei Betto, ou Carlos Alberto Libânio Christo, foi o palestrante desta quarta-feira, 2 de dezembro, no Congresso Internacional Franciscano, que termina nesta quinta-feira, em Curitiba.
Assessor da Pastoral Operária e de movimentos populares, Frei Betto trouxe muitas provocações aos participantes do Congresso ao abordar o tema “Educação: Esperança em uma humanidade nova em um contexto de mudança de época”.
Segundo o frade dominicano, estamos vivendo uma mudança de época. “E quando ocorre essa passagem, há uma enorme turbulência. Tudo fica confuso. Porque os valores antigos são questionados e os novos valores ainda não foram afirmados”, explicou.
Crítico do sistema neoliberal, o mineiro Frei Betto acha que a educação não é para formar mão de obra qualificada para o mercado. A educação existe para formar pessoas felizes. “Esse deveria ser o propósito número 1 da educação. Pessoas felizes, capazes de amar e ser amadas”, ensina.
VEJA A ÍNTEGRA DE SUA PALESTRA
Mudança de época é algo que todos nós aqui estamos vivendo. Momento de grande turbulência global e se não entendermos isso, a gente não entenderá a crise de valores, dos conflitos, a dificuldade de as pessoas serem tolerantes. A gente acha que é uma questão pessoal. Não é uma questão pessoal, é uma questão conjuntural. Por quê? Porque nós estamos vivendo o que nossos avós não viveram. Eles viveram época de mudanças, mas não viveram uma mudança de época.
A última geração que viveu uma mudança de época era composta por essas pessoas que vou citar: Copérnico, Galileu, Michelangelo, Leonardo da Vinci, João da Cruz, Teresa D’Ávila, Descartes, Pedro Álvares Cabral, Cristóvão Colombo. Essas pessoas viveram o que nós estamos vivendo 500 anos depois. Porque elas foram contemporâneas da passagem da época medieval, que durou mil anos, para a época moderna. E quando ocorre essa passagem, há uma enorme turbulência. Tudo fica confuso. Porque os valores antigos são questionados e os novos valores ainda não foram afirmados.
O que caracteriza uma época é o seu paradigma. E o paradigma é exatamente aquela haste central que sustenta a lona do circo. Se a gente retira a haste, o circo desaba.
E como era o paradigma do período medieval que durou mil anos? A religião. Tudo girava em torno da fé. Os camponeses da Idade Média regavam a lavoura com água benta e depois chamavam o padre para celebrar uma missa agradecendo a Deus pela boa colheita. Até que apareceu um sujeitinho, de barbicha e solidéu na cabeça, vendendo um pozinho preto. E falou: “Este ano, vocês experimentam esse pozinho na lavoura. Não experimentem a água benta dos padres, não!” E o tal do adubo deu muito mais resultado do que água benta dos padres. Foi uma crise de fé generalizada na Europa. Ou seja, a hegemonia da religião era tamanha…
Eu fui a Éfeso, na Turquia, onde Paulo esteve preso e escreveu a Carta aos Efésios. Também João teria morado ali e, segundo a lenda, Nossa Senhora também. Uma cidade-museu muito bem preservada, lindíssima, e lá tem – não era pintura, mas escultura gravada na pedra – o símbolo da Nike. Mas eu vi outro detalhe e perguntei: por que a Fifa não adota como símbolo o que resta da maior estátua de Éfeso, que é a do Imperador Trajano? É do século 3 da nossa era. Restou apenas o pé direito dele com uma bola na ponta. Disse: “Olha que símbolo bom para a Fifa!”. Mas não é futebol. É que Trajano, no século 3, já tinha assimilado que os gregos, três séculos antes de Cristo, tinham descoberto: que a Terra era redonda. Mas isso não convinha à Igreja e por isso não vingou a teoria grega. O que vingou foi a cosmologia de Ptolomeu, que dizia que a terra era achatada. E obviamente, Deus não ia se encarnar num planetinha qualquer. A Terra é o centro do Universo. Basta olhar o movimento do Sol. O Sol se declina ali, passa por debaixo dela, que fica escura à noite, e depois volta.
Pois bem, até que um astrônomo polaco chamado Nicolau Copérnico leu Paulo Freire e resolveu pôr em prática um de seus conselhos: se colocar no lugar do outro. Uma coisa é eu ser diretora da escola, outra coisa é eu me colocar no lugar da faxineira da escola; uma coisa é eu ser o dono da casa, outra coisa eu me colocar no lugar da cozinheira da casa. Quando a gente se coloca no lugar do oprimido, muda o nosso lugar social, o nosso lugar epistêmico, a maneira de ver e entender as coisas.
E foi exatamente o que Copérnico fez. Ptolomeu mirou o sistema solar com os pés na terra e Copérnico, virtualmente, colocou os pés no sol e viu tudo diferente e, cientificamente, virou uma das leis absolutas da ciência. Os nossos sentidos não são meios de verificação científica, porque são enganosos. As aparências enganam, diz o ditado popular.
Além de Copérnico – e é preciso enfatizar isso hoje para evitar o preconceito -, graças aos muçulmanos, a matemática chegou à Europa Ocidental. Vocês imaginam hoje ter que fazer um cálculo com algarismos romanos? A Europa não conhecia o zero, mas foram eles que trouxeram. Eles também trouxeram todo o acervo cultural dos gregos que tinha desaparecido. Sócrates, Platão e Aristóteles, Descartes e tantos outros nos deram as bases da ciência moderna.
Além disso, há a poderosa navegação marítima da Península Ibérica, da qual nós somos resultado. Conhecemos bem a história que Vasco da Gama tinha espalhado de que nas Índias tinha bons temperos…. Um dia a mãe de Pedro Álvares Cabral estava fazendo um arroz-doce e pediu a Vasco: “Filho, vai buscar um pouco de canela para mim”. O rapaz se perdeu no caminho e o resto da história nós sabemos…
Então, vários fatores minaram as bases do período medieval. Vários fatores fizeram com que o pensamento humano começasse a questionar uma série de princípios garantidos como verdades eternas e, sobretudo, uma grande – que era próprio da época – confusão entre religião e ciência, como se a Bíblia tivesse intenção de ensinar ciência. Daí a briga que a gente tem até hoje com os creacionistas porque tem gente que, literalmente, fala: “Adão e D. Eva existiram”, sem saber que Adão, em hebraico, significa terra, e Eva, significa vida. Mas, como o autor bíblico nasceu em Minas, e na Bíblia toda não tem uma aula de teologia, graças a Deus, a Bíblia é um livro popular, contada em causos, que até chamam de parábolas. E então, para nos passar o ensinamento religioso, cria-se o “causo de seu Adão e D. Eva”. “Tudo bem”, digo aos meus amigos creacionistas. Vocês acham que a gente veio desse casal e têm medo de admitir que os símios são nossos avós. Eu só estranho que vocês apoiem o incesto, porque Adão e Eva tiveram dois filhos homens. E como é que nós estamos aqui? Aí eles se embananam. Aí fica complicado… O incesto com a mãe é mais grave ainda… Talvez seja por isso que o mundo está desse jeito. Resultado desse incesto, se é que ele houve…
O fato é que o período medieval termina e entra uma nova época, que é a modernidade. Todos nós, aqui, somos filhos da modernidade. E a modernidade tem, como toda época, um novo paradigma: a razão. Com duas filhas diletas: a ciência e a tecnologia. E quando a modernidade se iniciou, houve um grande otimismo de que ela iria equacionar todos os problemas do mundo. Não haveria mais guerras, pestes, intolerância, reinados etc. Enfim, havia um grande otimismo de que a modernidade iria criar o melhor dos mundos. Enormes avanços ocorreram hoje, pelo menos a gente não tem mais a escravidão legalizada e legítima. Hoje, temos uma democracia relativa, ainda muito medíocre, mas pelo menos houve avanço. Hoje, existe um pluralismo religioso, a humanidade avançou na ciência, na tecnologia temos o computador. Aliás, ontem a internet fez 25 anos. Bodas de prata de um instrumento fantástico para a comunicação entre nós. Mas nós somos filhos da modernidade 500 anos depois e podemos olhar para trás e aí conferir também os erros graves que impediram a modernidade de ser um tempo de, pelo menos, criar condições para que toda a humanidade vivesse com dignidade e felicidade.
Por quê? Porque o capitalismo se apropriou da ciência e da tecnologia. Por exemplo, o setor da medicina. Me lembro que vi o vice-presidente na televisão, José Alencar, falando que foi um aparelho – sei que agora tem uns dez no Brasil, mas naquela época só tinha um em São Paulo – que detectou todos os meus pontos cancerígenos. Quem dera que todo brasileiro pudesse passar por esse aparelho! Chama-se Petscan. Pensei que fosse scanner de cachorro. Parece?!
Os avanços existem, mas quem tem acesso? No caso do Brasil, mesmo quem tem plano privado de saúde, cuide-se para não ficar doente. Uma coisa é o plano, outra coisa é quando você precisa dele.
Enfim, o ser humano colocou os pés na face da lua. Mas não colocou ainda nutrientes essenciais na barriga de milhões de crianças na América Latina, na África e na Ásia. Então, a modernidade fracassou. A razão instrumental fracassou, principalmente porque criou um processo civilizatório que é radicalmente contrário ao do Evangelho como o Papa Francisco tem enfatizado e que não tem nem vergonha de dizer o nome: capitalismo. Ou seja, os interesses do dinheiro estão acima dos direitos humanos. E, se no Evangelho o valor número um é a solidariedade, nesse sistema é a competitividade.
E o mundo que vivemos, como é hoje? Suponhamos que ele fosse reduzido a uma aldeia de 100 pessoas. Nessa aldeia haveria 57 asiáticos, 21 europeus, 8 africanos e 4 americanos (do Alasca à Patagônia), 52 mulheres e 48 homens, 70 não seriam brancos. E veja a hegemonia dos brancos no Planeta: 30 seriam brancos, 70 não seriam cristãos. Detalhe: as maiores – isso é para a gente pôr a mão na consciência mesmo – atrocidades cometidas ao longo da modernidade foram cometidas por países majoritariamente cristãos. As duas grandes guerras, as bombas de Hiroshima e Nagazaki, a Inquisição, as guerras hoje no Oriente Médio, a escravidão, o colonialismo, o tráfico de escravos, e a gente tem que se perguntar como isso foi possível em países que expressavam o nome de Jesus? Seis pessoas nessa aldeia de 100 habitantes teriam em mãos 59% de toda a riqueza e seis delas seriam estadunidenses. Das 100, 80 viveriam em condições sub-humanas, 70 não saberiam ler, 50 sofreriam desnutrição, uma estaria a ponto de morrer, só uma pessoa teria educação universitária e também só uma teria computador.
Agora, pense: se você acordou hoje com mais saúde, tem mais sorte que milhões de pessoas que não vão sobreviver até o próximo domingo, se você nunca experimentou os perigos da guerra, a solidão de estar preso, a agonia de ser torturado, a aflição de sentir fome, você é mais feliz que 500 milhões de pessoas que já passaram por alguma coisa dessa. Se você pode ir à sua igreja sem medo de ser torturado, morto, você é mais afortunado que 3 bilhões de pessoas, mais da metade da população do planeta que não tem liberdade religiosa. Se você tem comida na geladeira, teto para proteger a cabeça, um lugar para dormir, você é mais feliz que 75% que a população mundial. Se você guarda dinheiro no banco, você está entre 8% mais ricos do mundo. E se seus pais estão vivos e unidos, você é uma pessoa raríssima.
Pois bem, isso na nossa cabeça não deveria significa um privilégio, mas uma dívida social, por quê? Porque nenhum de nós escolheu a família social que nasceu. E se nós não nascemos entre os três bilhões de pessoas, que segundo a ONU vive em condições sub-humanas, foi por mero acaso da loteria biológica. Injusto é existir a loteria biológica. Todos nós deveríamos nascer com direito à dignidade e à felicidade. Isso infelizmente não ocorre.
Portanto, a modernidade agoniza. Os famosos valores da modernidade são todos questionados hoje. Que valores são esses que promoveram tantas guerras? Que valores são esses com uma acumulação absurda de riquezas nas mãos de poucas, em que o dinheiro tem livre circulação no planeta e as pessoas não? Que valores são esses se a democracia é uma farsa, porque nós votamos mas é o poder econômico que elege? Que valores são esses se o Planeta agoniza, como disse o Papa nesse documento, que segundo Edgard Morin, é o mais importante da história de toda a história da humanidade sobre a questão eco-social, o “Louvado Sejas”, em homenagem a São Francisco merecidamente, e que a gente espera que agora, na Conferência de Paris, pelo menos pela primeira vez, os chefes de estado aceitem que salvar a Terra significa prejudicar minimamente o grande capital. Não se concilia projeto de civilização nesse sistema tão desigual com a preservação do planeta. E, portanto, a modernidade faliu. Nós estamos entrando na pós-modernidade. E os sintomas estão aí, crise de valores, principalmente nas quatro instituições pilares da modernidade: a família, a igreja, a escola e o estado. Quatro entidades em busca da sua nova identidade.
E a gente fica se perguntando: qual será o paradigma da pós-modernidade se na medieval foi a religião, se no moderno foi a razão? O Papa João Paulo II fez uma proposta, e queira Deus que ela vingue: a globalização da solidariedade. O que existe aí é globocolonização. É a imposição ao Planeta de um modelo hedonista, consumista de sociedade. Essa proposta de João Paulo II é reforçada hoje por Francisco. Mas o que o sistema neoliberal quer impor é exatamente um antivalor e o meu medo é que ele venha prevalecer: o mercado, a mercantilização de todos os aspectos da natureza e da vida humana.
A EDUCAÇÃO TEM TUDO A VER COM ISSO….
A educação na família, na escola e na igreja, em tese, pretende formar cidadãos. O sistema que nós vivemos, que tem um aparato deseducativo poderosíssimo – a internet, a TV, a publicidade etc – pretende formar consumistas. Esse é o choque, o conflito. Por quê? Porque o cidadão é alguém que é dotado de valores enraizados na subjetividade. Nessa subjetividade, a pessoa encontra a sua autoestima, mas isso não interessa ao sistema porque só existe consumismo se a pessoa se move pelos valores “objetivos”. Em outras palavras: se eu chego na sua casa a pé, eu tenho valor z; se eu chego no último modelo de Mercedes Benz, eu tenho valor a. Eu sou a mesma pessoa, mas é a mercadoria que me reveste, que agrega mais ou menos valor aos olhos dos demais. E como é que você vai querer que a televisão – que é a única coisa socialista no Brasil -, que o dia inteiro fica dizendo na propaganda – e também na propaganda embutida nos programas -, que se você não veste essa roupa, não usa esse tênis, não tem esse carro, não faz essa viagem, não toma essa bebida, não usa esse perfume, você é um MERDA.
E a autoestima do sujeito vai, cada vez mais, lá embaixo… Você só será feliz se tiver esses bens. Como é que você vai segurar o garoto da favela que vê o pai desempregado, que vê a mãe saindo cedo para cozinhar na casa de alguém, lavar roupa? Como é que você resolve a autoestima desse garoto? E como é que a gente vai condená-lo se ele quer resolver através da violência, porque ele também está sendo massacrado pela publicidade para ter aquele tênis, aquela roupa, para poder entrar no shopping etc.
A publicidade não faz distinção de classe. E aí, como é que faz? Basta reduzir a maioridade penal? Se isso desse resultado, os países que fizeram estariam comemorando. Não deu resultado! O país mais rico do mundo, os Estados Unidos, é o que tem mais gente na cadeia. Tem 2 milhões de detentos. A china, que tem uma população cinco vezes maior que os Estados Unidos, tem 1 milhão de presos; a Rússia tem quase 1 milhão e o Brasil é o quarto, com 750 mil prisioneiros.
Ora, se esse sistema faz esse tipo de deseducação, criando conflito, a gente precisa pensar: qual é o projeto político-pedagógico da escola? A escola é sim, aristotelicamente, um espaço político. A questão é saber se ela tem uma proposta político-pedagógica. Ela quer formar o quê? Ou cada professor tem a sua cabeça e dane-se confundir nas cabeças dos alunos….
Eu tenho dois colégios vizinhos em São Paulo: o Judaico e o Batista. Quando você entra lá, vai matricular o filho, a regra do jogo é colocada claramente:”Ah, mas isso eu não quero que meu filho participe!” – “Busque outra escola!” Se sua família é católica, seu filho é católico, vai ter de participar de dois, três retiros por ano. “Ah, mas eu não gosto! Procure outra escola”. Vai ter que participar da catequese, vai ter que participar disso e daquilo…
Nós não podemos ter vergonha da fé que professamos, dos valores que encarnamos. Aqui não temos preconceitos de homofobia, de racismo, disso ou daquilo. Aqui não ensinamos que muçulmano é terrorista. Porque nós, cristãos, que carregamos também a mesma culpa por ter feito a Inquisição, não gostamos de ser confundido com ela. Aliás, o que o Estado Islâmico está fazendo, a Inquisição não deixou de fazer e até fez muito mais durante muito tempo, diga-se de passagem, pois espero que isso acabe logo.
Então, nós temos que pensar, diante desse sistema, o que fazer. Vamos pegar o exemplo da criança. Eu participo de um projeto, o Instituto Alana (www.alana.org.br ), que tem uma luta difícil, mas a gente não desistiu. Proibir qualquer publicidade destinada ao público infantil ou uso de uma criança numa publicidade destinada a adultos. Atualmente, a maioria das publicidades de carro é um produto adulto e tem uma criança na peça publicitária. O que acontece hoje com as crianças? Elas ficam demasiadamente expostas à televisão e à internet. O problema já começa pela obesidade precoce. Eles não se movem, não brincam, não andam. Só no sofá e na cama. E essas crianças transferem a fantasia – que é algo fundamental para uma infância sadia – para o filminho da televisão, para o filminho da internet. Não sou eu que brinco de casinha, que brinco de guerra, que brinco de palácio, que brinco de princesa. Não, eu vejo alguém brincar por mim no monitor da TV ou do computador.
E essa criança, muitas vezes, é induzida pelo consumismo, porque o sistema quer raptar a criança desde cedo. A criança como consumista tem duas vantagens. Não tem discernimento de valor. Um papel e um carro é a mesma coisa. Quando ela quer alguma coisa, apela para o choro. Ela tem uma capacidade e tanto para induzir o adulto à compra. Então, por isso que se usa tanta criança na publicidade. E essa criança demasiadamente exposta à publicidade e sem formação de discernimento político, vai virando um ser esquizofrênico. Ela passa a ter vocabulário de adulto, trejeito de adulto, roupa de adulto, e tem mãe que acha uma gracinha levar a filha no cabeleireiro, pintar as unhas. É uma miniadulta. Ela não curtiu o seu universo onírico na idade adequada, porque ela fez a transferência pela mídia, ela não curtiu o afeto familiar, porque os pais ou estavam ligados na mídia ou no celular. Hoje já é uma doença diagnosticada pela medicina, chama-se nomofobia, dependência excessiva do celular. Então, deixa-se de dialogar para ficar no celular e a criança fica de escanteio.
Hoje, quando as crianças passam para a adolescência, sentem mais insegurança que a minha geração. Portanto, são mais vulneráveis a um perverso profissional exatamente nesse momento, que percebem o medo do real desta criança, e lhe oferece droga. Como quem diz: voltar para a infância, não dá, mas a fantasia agora vem pela química. Você vai poder flutuar numa boa. Eu estou convencido disso. A incidência de drogas hoje se deve a fatores como: a excessiva exposição à publicidade, autoestima lá embaixo, ambições desmedidas de consumismo, frustração por não poder fazê-lo. Na minha geração havia droga, mas não havia drogado. Sabe por quê? Porque éramos viciados em utopia. A gente não queria mudar o cabelo, a gente queria mudar o mundo. A gente queria mudar o Brasil. Sabe, a gente foi lutar contra a ditadura, foi lutar por um mundo novo. A gente realmente era viciado em utopia. Quanto menos utopia mais drogas, quanto mais utopia menos droga. O que não dá é viver sem um sentido de vida.
Agora, para ter um sentido de vida, é preciso a gente estabelecer vínculos sociais que permitam aos educandos descobrir o mundo do outro. Vou dar dois exemplos. Uma escola em São Paulo que trabalha o discernimento diante das mídias. Numa escola de classe média alta, os alunos gravam peças publicitárias, capítulos de novela, depois debatem em sala de aula. Tinha um anúncio – não tem mais – em que as crianças brincavam no quintal da casa, muito sujas, e a mãe prepara o lanche na copa-cozinha e chama as crianças. Quando elas entram, tem uma porção de copinhos de iogurtes e quando elas tomam os iogurtes, imediatamente ficam limpinhas, maravilhosas e saudáveis. Compraram o produto, tiraram de dentro do pote e mandaram para o laboratório para análise. Na volta constataram que o dizia o rótulo não conferia com o resultado do laboratório. Nesse dia, essas crianças aprenderam o que é propaganda enganosa. A diretora depois ligou para a empresa – que tem lá o Serviço de Atendimento ao Consumidor- dizendo que eles tinham feito essa medição e a empresa mandou um ônibus para levar os alunos à fábrica e pediu desculpas pelo erro que houve naquele lote. Sabe aquela conversa… Assim como a Samarco, Vale do Rio Doce, que falavam que eram muito ecológicas… Triste do Rio Doce, que agora virou rio amargo. Eu falei para a diretora: o erro de vocês foi não ter ligado para a imprensa, porque isso é um fato para ser denunciado.
Outro exemplo: a escola tem que estar associada ao contexto. Como é que uma escola, mesmo uma escola católica, nunca chama um sheik para falar o que é muçulmano, um rabino para falar do que é judaísmo, um pai-de-santo, uma mãe-de-santo, para falar o que é candomblé, por mais que uma religiosa queira explicar isso, passa uma coisa de preconceito e nós vivemos num país de pluralismo religioso e é preciso que as pessoas conheçam isso.
Na escola pública, eu defendo que não pode ter ensino religioso, porque ela é laica. Mas tem que ter ensino das religiões. Ninguém pode ser educado no Brasil sem saber o que é Bíblia, Alcorão, Torá, espiritismo, candomblé, umbanda; isso faz parte da cultura.
Agora, muitas vezes quando estava no Fome Zero, chegava nas escolas e perguntava: “Como é que é a educação nutricional aqui?” Aí, ficava aquele silêncio. “O que os alunos comem aqui?” Respondiam: “Ah, tem uma cantina aqui”. Disse: “Vamos lá…” A mesma porcariada que o camelô vende na esquina, a cantina vende lá dentro. Eles não sabem como mastigar, não sabem para que servem os dentes. Excesso de gordura saturada, excesso de açúcares. Muitos têm horror à verdura e, às vezes, a escola tem espaço para ensinar a criança a plantar uma horta. E isso é uma experiência que tive em família. Criança que planta uma horta, a hora que colhe uma alface, tem a autoestima lá no teto. Ela nunca mais vai ter preconceito contra a verdura.
Como é que a gente quer formar uma sociedade sadia sem o que tem de mais básico numa sociedade, que é ato de alimentar-se. A gente pode viver sem tudo, sem casa, sem emprego, sem roupa, sem pai, mas ainda não dá para viver sem comida e bebida. Eu conheço um faquir amigo meu que faltavam três dias para conseguir o seu objetivo, mas morreu antes. Não dá para ninguém viver sem comida. Acho que não foi à toa que Jesus pegou o que há de mais básico na vida humana, a comida e a bebida, e transformou isso em sacramento. Acho maravilhoso isso. Gostaria muito que o símbolo do cristianismo fosse o pão e não a cruz. Porque a cruz é instrumento de morte, e Jesus disse: “Eu sou o pão da vida. Eu vim partilhar o pão”. O pão é oração que Jesus nos ensina em dois refrãos: o Pai Nosso e o Pão Nosso. O pão simboliza todos os bens da vida. Eu só tenho direito de chamar o Pai Nosso se eu luto para que os bens da vida, para que o pão não seja só meu, seja de todos. Fora disso, a oração é vazia.
E a segunda pergunta que eu fazia nas escolas: “E como é que é a educação sexual?” A resposta: “Ah tem um professor aqui que é ótimo. Vou chamá-lo”. Aí, ele vinha e fazia toda uma descrição. “Você vai me desculpar. Pelo que disse, isso não é aula de educação sexual. Isso é aula de higiene corporal para evitar doenças sexualmente transmissíveis”. O que eu mais estranhei é que não falou duas palavrinhas que para mim são essenciais: afeto e amor. A educação tem que ser para o amor.
E por isso que hoje, no Brasil, a durabilidade conjugal é de sete anos. Aliás, quem é casado aqui e já passou disso, pode abrir um vinhozinho hoje à noite e comemorar: está no lucro! O Brasil está quase no limite de ter mais separações por ano do que casamentos. Falo de casamentos oficiais, porque tem muita gente que se junta aí e a estatística não fica sabendo.
Então, o nosso desafio diante da pós-modernidade é como evitar a mercantilização da vida e da natureza. É um desafio político. Agora, nós vamos entrar num ano eleitoral, a escola não pode ficar indiferente. Não que a escola vai partidarizar. Mas no dia da matrícula você diga para os pais que em época de eleição a gente manda convites para todos os partidos enviarem representantes para apresentarem suas propostas, debater com os alunos. Se veio só um partido, que ninguém acuse, porque existe a prova de que todos os partidos foram convidados.
Assim se faz educação. Professores falam: “Eu ensino química, mas os alunos não se interessam”. Eu digo: “Você já experimentou usar o grafite de rua?”. “Ah, eu ensino física…”. Você já experimentou colocar corrida de fórmula 1 como gancho na sua aula de física? “Ah, ensino matemática…”, Usou em aula o preço da feira, do supermercado. Enfim, a gente tem que pôr o pé no chão, na conjuntura dessas realidades.
O ensino não pode ser uma coisa abstrata. O ensino não pode ser algo cartesiano, no mal sentido da palavra. Às vezes eu imagino que a escola é algo que a gente só tem necessidade do pescoço para cima. O resto pode ficar em casa. Até porque incomoda levantar para ir ao banheiro, fazer a merenda… O ideal seria que só as cabeças fossem para as escolas. Isso é a proposta cartesiana. Por quê? Porque escola, como eu escrevo na minha autobiografia escolar, ignorava o corpo, era uma escola que não dançava, não ensinava pintura, música, era uma escola que achava que trabalho manual era para quem não foi à escola. Eu passei 22 anos nos bancos escolares e sai sem saber fazer um reparo simples na eletricidade de casa. Entendi minimamente de mecânica, cozinhar, costurar um botão na camisa, lavar um banheiro. Por quê? Porque é uma escola maneta. Você não precisa levar as mãos. Basta ir de cabeça. Até pensei num cineminha de charges assim: Um ônibus escolar para na rua para pegar os alunos, saem as cabecinhas todas clicando, entram no ônibus e seguem… O resto do corpo fica em casa, dormindo etc. Eles não sabem o que fazer com o corpo.
A escola que conhece o contexto. Esse é um triângulo geométrico pedagógico: texto, contexto, pretexto. A escola é um quadrado. Tem quatro ângulos: professores, alunos, funcionários e pais. Mas é rodeada por um círculo: o contexto social e cultural em que ela está inserida. Uma escola que é vizinha de um acampamento de sem-terra não pode ignorá-lo, uma escola que é vizinha de um sindicato, não pode ignorá-lo, uma escola que é vizinha de alguma favela, não pode fazer de conta que ela não existe. A escola tem que trazer o contexto aí para dentro e saber como estabelecer vínculos de solidariedade.
Em São Paulo, uma escola – eu falo muito de São Paulo porque moro lá – no fim de semana, pais e alunos fazem oficinas para faxineiras, cozinheiras, porteiros de prédios aprenderem um pouco mais de português, matemática, culinária, corte e costura, uso de produtos químicos e por aí vai… Uma criança que participa disso, o valor dela, o olhar dela, é outro. Porque esse é um princípio pedagógico absoluto: a cabeça pensa onde os pés pisam. Se os meus pés nunca foram aos pobres, como é que eu vou ter sensibilidade para com eles? Como ser solidário a eles como Jesus era?
Mas o meu mundo é um mundo em que agradeço a Deus por não ser como eles. Sem nenhuma consciência disso é um enorme preconceito. Então, temos que nos perguntar isso: como é que a nossa educação se prepara para lidar com o tsunami hedonista e consumista da pós-modernidade? Como é que vamos formar cidadãos?
No nosso caso de escola católica, como é que nós vamos formar discípulos de Jesus? Não que tenham fé em Jesus. O Bush também tem fé em Jesus, o Hitler tinha fé em Jesus, o Pinochet tinha fé em Jesus. Não é isso que importa. É ter a fé de Jesus. Isso muda tudo. Que é uma fé onde descaradamente Deus tem uma opção preferencial pelos pobres. E não porque os pobres sejam melhores do que os ricos, porque ele criou uma humanidade onde não deveria haver pessoas privadas de bens essenciais da vida. Nós é que deturpamos o projeto inicial e nós temos que recuperá-lo, porque Deus é Pai mas não é paternalista. Se a gente estragou, a gente vai ter que consertar. Como? Jesus já veio ensinar o caminho.
Tem muita gente que me pergunta por que você se mete em política. Tem duas coisas que muita gente pensa a meu respeito, que não são verdadeiras, mas enfim….os boatos correm. Eu nunca fui filiado a partido nenhum e não sou padre. Eu sou frade sem ser padre. Aí me perguntam: qual a diferença? Eu sou que nem freira. Tudo que freira pode, eu posso, tudo que freira não pode, eu não posso. Aí me entendem. Por opção, o dominicano pode ser irmão ou sacerdote. Mas o que eu queria dizer é isso: nós estamos vivendo um momento em que o principal problema filosófico do neoliberalismo é a “desestorização” do tempo. Nós fomos educados na percepção do tempo como história.
E é curioso porque a primeira página da Bíblia revela que até antes do aparecimento do ser humano existe uma historicidade. Que são os cinco primeiros dias da criação. É por isso que São Paulo dizia que a nossa fé é escândalo para os gregos. Porque os gregos, quando olhavam a Torá, diziam que esses judeus eram malucos. Como é que a gente vai acreditar em Javé se para criar o mundo ele precisou de seis dias. Um verdadeiro Deus, é onipotente, cria que nem ‘nescafé’, instantâneo. O que os gregos não perceberam é que a nossa fé é visceralmente histórica. No mundo politeísta, como era o mundo da Bíblia, como é que se distinguia o Deus dos hebreus? Eu creio em Javé, no Deus de Abraão, de Isaac e de Jacó. Um deus que tem história. E o neoliberalismo percebeu que consciência histórica, percepção do tempo como história, é um fator filosófico que não me interessa, é seu inimigo. Aí vem um imbecil nipo-americano, Francis Fukuyama, que é um dos filósofos do neoliberalismo, dizer que a história acabou.
O cristão que minimamente aceita as três virtudes teologais, entre elas a esperança, nunca pode aceitar isso: a história acabou. Mas isso entra cada vez mais na ideologia neoliberal através da mídia. Tudo aqui e agora. Sabe, tanto faz como tanto fez. Hoje, você pode achar que o Hitler é o máximo, amanhã você pode achar que é o Che Guevara, não importa. Daí, a dificuldade das pessoas terem debates políticos racionais. Logo resvala para o emocional, por falta de consciência histórica.
E quando a gente não tem a percepção do tempo como história, a gente não sabe fazer projetos. Nem na vida pessoal, nem na vida artística, nem na vida religiosa. E quem não tem projetos não consegue ter valores. E o projeto é o varal onde a gente dependura os valores. Eu me lembro meus pais, que até um deles morrer, viveram juntos 62 anos, não porque era um casal exemplar – passaram por todos problemas de qualquer casal -, mas porque tinham em família um projeto. E quando a gente tem um projeto, passa por dificuldades, sofrimentos, por exemplo, uma tese de doutorado, mas continua firme porque tem um projeto.
O neoliberalismo está tirando isso. Simplesmente estamos vivendo na ideologia da “desestorização” do tempo. Estamos voltando ao tempo cíclico dos gregos. Que é anti-bíblico, é anti-judaico, é anti-cristão, eu diria, que é anti-natural. Porque tudo tem história. A natureza tem história. Nós temos história. O universo tem uma história. As mulheres que não gostam de dizer a idade, podem dizer sem mentir: eu tenho 13,7 bilhões, porque é exatamente a idade de cada um de nós. O nossos átomos, as nossas moléculas foram recicladas ao longo de 13,7 bilhões de anos. Não pense que você é pouca coisa. Você é e já foi muita coisa. Nós somos agregação daquela primeira explosão que produziu apenas 92 ingredientes para fazer tudo que existe no universo. Desde a nossa pele, aos nossos óculos, a madeira desse púlpito, as estrelas, que é tabela periódica, os 92 átomos. Você vê que para criar o universo não é muito difícil, é só mensurar bem esses ingredientes. Mas para isso é preciso ter mãos divinas.
Termino com uma parábola.
A educação não é para formar mão de obra qualificada para o mercado; educação é para formar pessoas felizes. Esse deveria ser o propósito número 1 da educação. Pessoas felizes, capazes de amar e ser amadas.
Ora, havia na feira-livre de Calcutá, uma velhinha, no meio daquelas milhares de barracas, naquele chão imundo, olhando para o chão e procurando alguma coisa. Se você parar numa rua de Curitiba e começar a olhar para o chão, eu garanto que meia dúzia vai parar e achar que você perdeu dinheiro, joia etc. E as pessoas começaram a parar até que um rapaz perguntou: “O que a sra. está procurando?”. Ela respondeu: “Uma agulha”. Ele retrucou: “A sra. é doida. Tem quinhentas barracas aqui que vendem desde agulha para vestidos de noiva até agulha para lona que cobre navio, e a sra. está procurando nessa imundície essa agulha?”. As pessoas, então, começaram a sair. Aí, a sra respondeu: “Mas é uma agulha de ouro”. As pessoas, então, voltaram. E Voltaram a procurar, olhavam, olhavam, até que o rapaz novamente perguntou: “A sra. não tem mais ou menos ideia de onde perdeu a agulha?”. Ela respondeu: “Tenho, a cinco quarteirões daqui”. O rapaz respondeu: “A sra. é maluca mesmo! Perdeu uma agulha em casa e está procurando aqui?”. A velhinha simplesmente disse: “Exatamente como vocês fazem. A felicidade está dentro, mas vocês procuram fora”.