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Frei Alvaci fala do resgate histórico da Irmandade de São Benedito no livro “Um Preto no Altar”

03/04/2023

Entrevistas, Notícias

Ao contrário das Irmandades de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos ou de outras Irmandades católicas no Brasil, em São Paulo a Irmandade de São Benedito ganhou espaço e projeção por mais de 80 anos quando o Convento São Francisco esteve sob os seus cuidados. Não havia os Frades Menores no local. Para o historiador, Frei Alvaci Mendes da Luz, frade da Província Franciscana da Imaculada Conceição, que foi transferido para São Paulo quando se ordenou presbítero em 2010, esse espaço de tempo não estava bem explicado na história franciscana.

Foi então que ele mergulhou na pesquisa documental, buscando fontes no século XIX e os primeiros anos do século XX, para conhecer melhor esse período. “Surgiu, então, o interesse de ir mais a fundo para conhecer mais esse grupo social, essa irmandade católica, a Irmandade de São Benedito. Fui me dedicando às pesquisas que depois geraram um projeto de mestrado, que foi aceito e aprovado pela PUC-SP e que gerou uma pesquisa mais aprofundada durante o tempo do mestrado e, por fim, uma dissertação e um livro sobre esse grupo social que administrou a igreja do Convento”, explicou Frei Alvaci, que atua no Centro de Documentação e Apoio à Pesquisa em História da Educação (CDAPH) da USF.

Com este trabalho, Frei Alvaci resgata o  debate historiográfico sobre a atuação dos “irmãos beneditos” nos lugares de sociabilidade negra da capital paulista: “Dentro da religião oficial instituída, os grupos negros puderam reivindicar direitos, se ajudar, manter tradições, continuar muito daquilo que traziam de África nas suas memórias, nas suas veias, nas suas histórias”, esclareceu o frade, que lançou o livro  “Um Preto no Altar” neste sábado, no Convento São Francisco, o principal “palco” desta história.

Catarinense de Tubarão, Frei Alvaci nasceu no dia 29 de outubro de 1981. Assim que se ordenou presbítero, no dia 1º de maio de 2010, veio trabalhar em São Paulo no Pró-Vocações e Missões Franciscanas. Foi pároco e reitor deste Convento no centro de São Paulo e atualmente reside em Itatiba (SP), onde está a serviço da Educação na Universidade São Francisco.

Site Franciscanos – Há quanto tempo está se dedicando a este trabalho? Fale sobre ele.

 Frei Alvaci – As pesquisas sobre a Irmandade de São Benedito ou a presença franciscana em São Paulo, começaram há uns 10 anos, quando me mudei para São Paulo. Fui transferido em 2010 e, a partir daí meu interesse pela cidade, pela sua história e depois, de modo particular, pela presença dos franciscanos na cidade. Descobri então que um grupo católico organizado por homens e mulheres negras administrou a igreja do Convento de São Francisco por um período de mais de 80 anos. Surgiu, então, o interesse de ir mais a fundo para conhecer mais esse grupo social, essa irmandade católica, a Irmandade de São Benedito. Fui me dedicando às pesquisas que depois geraram um projeto de mestrado, aceito e aprovado pela PUC-SP e que gerou uma pesquisa mais aprofundada durante o tempo do mestrado e, por fim, uma dissertação e um livro sobre esse grupo social que administrou a igreja do Convento.

Site Franciscanos – Que motivação o levou a escolher este tema para sua tese de mestrado? Que atrativo você viu nele para fazer esta longa pesquisa?

Frei Alvaci – A motivação foi justamente preencher uma lacuna historiográfica sobre a igreja de São Francisco, no Largo São Francisco, em São Paulo. Por quê? Durante muitos anos, morando em São Paulo, recebia pessoas que vinham visitar o complexo arquitetônico franciscano do Largo – a faculdade de Direito, a igreja da Ordem Terceira e a igreja de São Francisco – e parecia que faltava uma parte dessa história. De fato, nesse período do século XIX, enquanto os frades não estiveram à frente da administração da igreja do Convento, tínhamos pouco conhecimento sobre o lugar e quem viveu ali. Mas nas pesquisas descobrimos que existia um grupo social muito bem organizado, estruturado, que havia, inclusive, nascido com o apoio dos frades. Tínhamos ali, portanto, a Ordem Terceira e a Irmandade de São Benedito. Quando percebi que esse segundo grupo era um forte e estruturado, com todas as questões muito bem delimitadas no Largo São Francisco, fui atrás de aprofundar e conhecer mais. Depois, o que me atraía nas pesquisas era o fato de ser muito escasso esse tema na história da cidade, pois sabíamos que as irmandades foram muito fortes no Brasil durante um período e elas existiram com muita força em Minas Gerais, no Nordeste Brasileiro, na Bahia e em tantos outros lugares. Em São Paulo são bem escassas as informações em relação às Irmandades católicas. Existe uma pesquisa mais antiga sobre a Irmandade do Rosário dos Homens Pretos, que está hoje no largo do Paissandu, e algumas mais recentes. Mas não temos quase nada sobre a Irmandade que nasceu no Convento São Francisco com o apoio dos frades e que depois acabou sendo a cuidadora da igreja do Convento. Então, isso me empolgou mais para continuar as pesquisas. E mesmo porque também era um tema inédito.

Site Franciscanos – Que novidades e curiosidades você descobriu neste estudo?

Frei Alvaci – Em primeiro lugar, descobri a existência desse grupo negro. Tinha dúvidas no início se ele era de maioria negra, de mulheres e homens, escravizados ou ex-escravizados. Mesmo porque nos textos escritos sobre eles não ficava claro se era um grupo “de homens pretos” ou não. Com o acesso ao arquivo da Cúria Metropolitana de São Paulo, aos livros de registros, onde estavam os nomes desses homens e mulheres encontramos referências como: crioulo, preto da Guiné, Cabinda, de regiões da África de onde vieram. Ficou claro, então, que se tratava de um grupo majoritariamente negro e essa foi uma das primeiras descobertas. Depois, o quanto eles foram fortes e protagonistas num período histórico, num tempo em que as Irmandades católicas já vinham enfraquecendo, mas um período em que tiveram autonomia administrativa sobre uma igreja particular, que é a igreja do Convento, que estava sem frades, sem a presença franciscana. Eles viram um momento ideal para administrar uma igreja própria e foi ali que eles mostraram de fato todo cuidado, manutenção, festas, enterros. Uma outra descoberta interessante: mantiveram por séculos um cemitério particular no largo de São Francisco. Não na frente da igreja, mas na parte de trás, onde hoje está construído o atual convento, que foi edificado na década de 1940 por Frei Dâmaso Venker. Enfim, a maior de todas as descobertas foi que aquele altar chamado de altar-mor, que até agora se replicava a informação, repassada por Frei Basílio Rower, de que havia sido comprado pela Faculdade de Direito, mas nos documentos ficou claro que quem pagou por aquele altar-mor foi a Irmandade São Benedito. Então, ela tem uma participação muito ativa na história da igreja. Ela comprou o altar, os novos sinos que estão lá até hoje, fez reformas e melhorias na igreja. Essas descobertas me fazem acreditar naquele espaço como um lugar de luta e de resistência da comunidade negra de São Paulo.

 Site Franciscanos – Como nasceu a Irmandade de São Benedito? Em que época? Como o padroeiro é franciscano, teve participação dos frades?

Frei Alvaci – Olha, as Irmandades nascem já na alta Idade Média como associações de ofício, ou seja, grupos que se organizavam por afinidades profissionais: Sapateiros, Marceneiros de São José, São Miguel dos Militares, entre outros. Esses grupos congregados por afinidades profissionais, nasceram na Europa e, pouco a pouco, foram se identificando também por questões raciais, questões de cor da pele. Com intensificação do tráfico negreiro, essas separações por cor, vão ficar muito mais fortes nos séculos XVI e XVII, e aí surgem as Irmandades “de homens de cor”, as Irmandades voltadas a homens e mulheres negros e negras. Na Europa, em Portugal por exemplo, começa a divisão das primeiras Irmandades de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos e, logo em seguida, intensificadas pelos franciscanos com o desejo da canonização de um santo preto: São Benedito. Aliás, vários homens negros da Ordem Franciscana vão ser elevados à categoria de santidade: Antônio de Categeró, o próprio Benedito de Palermo, Antônio de Noto, são homens negros na sua maioria iletrados, escravizados, ex-escravizados, que vão entrar na Ordem Franciscana e vão ter fama de santidade, alguns serão beatificados e canonizados. Os franciscanos chegam ao Brasil e com eles a devoção a São Benedito e, consequentemente, as Irmandades de São Benedito dos Homens Pretos. Primeiramente, as irmandades de São Benedito nascem nos conventos franciscanos voltadas aos escravizados do próprio Convento, ou seja, homens e mulheres que estão trabalhando como escravos para os frades. As Ordens possuíam escravizados e os frades então procuravam a devoção a São Benedito para incentivar uma catequese direcionada aos homens e mulheres de cor como uma devoção própria de um santo próprio, no caso é Benedito. Os frades são os grandes incentivadores da devoção no Brasil e em toda a América Latina, do Sul do atual Estados Unidos até a Argentina. Há, sim, uma relação entre São Benedito, que era franciscano, nascido na Sicília, filho de pais escravizados, com a devoção voltada aos homens e mulheres que são escravizados no Brasil e nos países da América Latina.

Site Franciscanos – Qual o nome correto: Irmandade de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito dos Homens Pretos ou apenas Irmandade de São Benedito? Quem podia participar da Irmandade?

 Frei Alvaci – As primeiras Irmandades que nascem voltadas aos homens e mulheres de cor são as irmandades de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos. Essa é uma irmandade muito específica, de um modo particular quem participava delas no Brasil, por exemplo, eram os negros Angolas. Logo em seguida, nasciam as Irmandades de São Benedito, que é uma outra Irmandade que aceitava muito mais uma mistura de raças, não só Angolas, Congo-Angolas, mas vários povos ou etnias africanas que se congregavam sob a devoção a São Benedito. Existiam ainda as Irmandades de Santo Elesbão e Santa Efigênia, Santo Antônio de Categeró, São Baltazar. Tratam-se de irmandades distintas. O que acontecia era que em alguns lugares, para autonomia, para conseguirem construir uma igreja própria, essas Irmandades se juntavam. Então, o que aconteceu no Rio de Janeiro, por exemplo, foi a junção da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário com a Irmandade de São Benedito e aí temos hoje lá a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito dos Homens Pretos. Isso aconteceu em algumas cidades brasileiras. Em outras, como São Paulo, onde tiveram condições de construir sua igreja própria – que era o grande sonho de toda Irmandade para organizarem suas festas, procissões e enterros-, essa união não precisou acontecer. Os que podiam participar nas de brancos eram apenas homens brancos, nas de pretos haviam exceções para a participação de alguns brancos principalmente nos cargos de secretário (sabendo-se que muitos pretos eram iletrados), alguns cargos porém eram reservados apenas a pretos como os de rei e rainha.

Site Franciscanos – Que benefícios tinham os associados? A Irmandade só existia em função da parte religiosa ou atuava no social, como na consolidação da liberdade de seus associados (escravizados e ex-escravizados)? 

Frei Alvaci – De fato a palavra correta é esta mesmo, associados, porque a Irmandade funcionava como uma espécie de associação. Seriam hoje os nossos grupos de associados: de bancos, de estudantes, etc. As Irmandades funcionavam também como grupos de ajuda mútua. Os benefícios principais dos associados, aqueles que se filiavam a uma Irmandade eram benefícios religiosos, como um enterro digno por exemplo. Cada Irmandade geralmente tinha o seu cemitério próprio e aí o associado tinha direito ao caixão, ao acompanhamento do funeral, ao lugar da sepultura, missas pela sua alma, etc. Ele também gozava de alguns outros privilégios como, estando em dificuldade financeira, ter alguma ajuda dos irmãos. No caso dos pretos, ajudavam inclusive na compra de alforria.  Além das funções religiosas que eram obrigatoriedade por ser uma associação religiosa, a manutenção do culto, as procissões, a festa dos santos, tinham também esse lado social. As Irmandades e as Ordens Terceiras são muitos parecidas nessas funções sociais e nas funções religiosas.

Site Franciscanos – As Irmandades estão em atividade ainda hoje? Quantas existem no país? 

Frei Alvaci – As irmandades ainda estão em atividade. Existem várias Irmandades pelo Brasil afora, muitas delas ainda funcionam. Posso citar um exemplo bem conhecido, que são as Irmandades da Santa Casa de Misericórdia. Em muitas cidades ainda existem as Irmandades da Santa Casa que nasceram para administrar em muitas cidades o cuidado dos doentes, os enterros, caixões, etc. Ainda hoje, muitos hospitais são ligados à Irmandade da Santa Casa de Misericórdia administradas por associações de leigos. Ainda existem também as Irmandades de pretos: de São Benedito, de Nossa Senhora do Rosário, de Nossa Senhora da Boa Morte, entre outras. Muitas delas ainda existem e estão em atividade pelo Brasil afora. Claro que muitas das funções desses grupos mudaram, o contexto eclesial é outro, a Igreja é outra, então muito daquilo que acontecia nas Irmandades no período colonial e imperial não é mais o mesmo que acontece hoje, mas elas continuam sendo associações com a administração própria de igrejas, com igrejas particulares e algumas com cemitérios próprios. Então, elas ainda exercem um papel social e ainda existem. Eu não saberia dizer quantas Irmandades temos no Brasil porque são muitas.

Site Franciscanos – A Irmandade só se reunia ou só se reúne na Igreja de Nossa Senhora do Rosário? 

Frei Alvaci –  A Irmandade Nossa Senhora do Rosário se reúne ainda na Igreja Nossa Senhora do Rosário, mas as outras Irmandades se reúnem nos lugares próprios dessas associações. Hoje, como citei, as Irmandades da Santa Casa se reúnem na Santa Casa. Certamente na Santa Casa hoje é uma associação de médicos, mas tem ainda essa característica de ser um grupo leigo administrando um espaço próprio. São pessoas que não são padres, freiras, mas que administram uma igreja ou um hospital particular. A Irmandade do Rosário, por exemplo, ainda se reúne na Igreja do Rosário do Paissandu. Ali é o lugar deles de atividades, de administração, de organizarem as suas festas. 

Site Franciscanos – Que conclusão você tirou deste trabalho? 

Frei Alvaci – Algumas conclusões eu pude tirar desse trabalho. A primeira delas é que nós conhecemos pouco da história do nosso país, pouco também das lutas, buscas e anseios de diversos grupos sociais na nossa história e o quanto esses grupos foram protagonistas da sua própria realização. A maior conclusão que eu tirei é de o quanto os grupos negros – e aí eu estou fazendo um recorte específico para as comunidades negras -, foram fortes, buscaram seus direitos, conseguiram reivindicar espaços e também o quanto as Irmandades católicas foram essenciais para a manutenção de um catolicismo negro, para a elaboração de um catolicismo das comunidades negras no Brasil. O espaço das Irmandades, como afirma a professora Quintão, era um “protesto dentro da Ordem”, ou seja, alguns direitos adquiridos dentro da religião oficial instituída. Os grupos negros puderam lutar, se ajudar, manter tradições, continuar vivenciando muito daquilo que traziam de África nas suas memórias, nas suas veias, nas suas histórias. Então, o que mais pude aprender com esse trabalho é o quanto esses grupos foram fortes, o quanto fizeram e marcaram a memória de tantas cidades e de tantos lugares do Brasil.


Entrevista a Moacir Beggo