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Entrevista: Frei Samuel, uma década de missão em Angola

12/12/2006

Entrevistas

Por Moacir Beggo

São Pauo (SP) – Depois de sobreviver à guerra civil angolana e encontrar uma linha de formação mais próxima da realidade dos jovens angolanos que se apresentavam à Missão de Angola pedindo ingresso na Ordem dos Frades Menores, o carioca Frei Samuel  Ferreira de Lima, de 39 anos, está de volta ao Brasil e pronto para assumir um novo desafio em sua vida: ser guardião da Fraternidade São José e Seminário Frei Galvão, a casa de formação da Província da Imaculada, onde se faz a experiência de um ano de Postulantado.

Segundo Frei Samuel, trata-se de um desafio para ele porque quando foi ordenado, em 27 de janeiro de 1996, no mesmo ano foi enviado como missionário para Angola. Toda a sua experiência de vida religiosa e sacerdotal se formou no contexto da Igreja africana, especialmente na Fraternidade de Malange, onde era o mestre dos aspirantes. Essa experiência, contudo, foi tão profunda e enriquecedora para ele que, agora, mesmo tendo de conhecer “uma nova realidade”,  está preparado, pois conseguiu se “diplomar” num curso que nenhuma universidade possui: o da vida.         

Nesta entrevista, Frei Samuel avalia uma década como missionário, fala da situação de Angola no pós-guerra, do trabalho na formação dos jovens angolanos e da Missão dos Franciscanos neste país-irmão.

Site Franciscanos – Como foi chegar em meio à guerra na Missão de Angola?

Frei Samuel –Em janeiro de 1996, fui ordenado sacerdote e, em junho, foi transferido para a Missão de Angola, onde cheguei no dia 28. Fui para lá com a imagem da nossa Província: fraternidades grandes e convivência com muitas pessoas. Mas ao chegar  num país saindo da guerra – em 96 houve um momento de paz – fui morar na hospedaria das irmãs clarissas. Isso, no início, foi difícil porque fui pensando que iríamos morar numa casa nossa. De repente, era hóspede e dependente. O trabalho, quando a gente chegou na capital, era em função das duas fraternidades que estavam no Interior do país: Malange e Kibala. A gente corria atrás de documentos, alimentos, enfim, das necessidades básicas que tínhamos. Éramos a base de apoio – eu e o Frei Dílson (Fr. Dílson Adão Geremia). Depois, aos poucos, fomos nos envolvendo com a comunidade: celebrava, visitava os doentes e me chamaram para dar aulas no seminário diocesano. E ali também houve a integração com a família franciscana, através das Irmãs Catequistas, Missionárias de Maria, Franciscanas de São José. Mas não foi uma adaptação fácil. Afinal, você sai de uma realidade de paz, de tranqüilidade familiar, onde as comunidades te acolhem e chega num país como estrangeiro, numa realidade conflitiva, de medo, de suspeita e de intransigência. O comunismo era muito forte neste tempo. Para você fazer uma viagem, tinha passar por muitos controles. A gente nunca sabia se chegaria ou se voltaria. Então, criava-se dentro de você uma insegurança muito grande. E essa insegurança nos levou à experiência com Deus, porque é Deus que vai te dar forças, dar garantias e dar possibilidades de enfrentar todas as coisas. Não são os lugares, as pessoas que vão te dar sustentação. É Deus. Tem que ser por Deus! Isso nos fez crescer na experiência do Crucificado, no sofrimento. A gente via as pessoas que comiam uma vez por dia, que lutavam todo dia e estavam sempre alegres. Querendo ou não, a gente vai bebendo dessa fonte aos poucos.

Site Franciscanos – Quando foi a transferência para Malange?

Frei Samuel –Depois de um ano, fui transferido como formador do Aspirantado. E foi outro baque. Ser formador no Brasil já é difícil. Ser formador em outra realidade, em outra cultura, é muito mais ainda. Nos seis primeiros meses de trabalho, fiquei com estafa. Não conseguia levantar da cama de tão desgastado que estava, porque não conseguia compreender o modo de lidar com eles. Muitas vezes, propunha as coisas e eles faziam tudo ao contrário. Isso causava um desgaste muito grande. Lá é assim: você programa o dia, mas as coisas vão para além daquilo. É um que chega para você levar ao hospital, outro que tem outra situação, é uma coisa que quebrou e que você precisa ajudar. Tudo acontece independente daquilo que você planejou. Em 98, estourou novamente a guerra. A gente ficou cercado em meio àquela tensão, pois queriam raptar os formandos. Veja bem: as famílias confiaram o filho deles à gente, dando aquela responsabilidade de salvaguardar a vida e a integridade deles. Por isso, enfrentava a polícia e discutia com a tropa. Depois, em Malange, não havia bens de consumo e uma vez por mês tinha de viajar à capital para comprá-los. Então, era mais um desgaste. Vai e não-vai;  chega e não-chega. No caminho, pediam mil documentos. Então, só agüentava as pressões trabalhando a interioridade. Lembro-me de Frei Hilário que foi missionário e dizia: “Meu filho, na vida, tudo é por amor de Deus”. Então, a gente vai entendendo que tem de colocar Deus em tudo, para você dar sentido à todas as dificuldades, senão a gente sucumbe. Começa a entrar em pânico, depressão e desespero. Para você levar as coisas na esportiva, com serenidade, você precisa trabalhar muito a espiritualidade. Tem mesmo que fazer a experiência franciscana do Crucificado, da Paixão, da Perfeita Alegria, porque você planeja as coisas e elas não saem como você quer. Eu era uma pessoa muito agitada, mas pouco a pouco fui aprendendo a ser paciente. Não adianta ser nervoso, não adianta querer tudo rápido, porque a vida não é assim. Ou você se dobra ou você quebra. É como numa tempestade: uma vara de bambu se inclina totalmente e permanece inteira, mas uma árvore rígida se parte. Então, a gente vai aprendendo a ser maleável e a entendê-los.  Eles têm muita dificuldade de confiar devido ao processo de colonização, onde o estrangeiro só veio para dominá-los. Eu sempre dizia para eles. Por mais que a gente esteja junto, sei que vocês têm dificuldade de confiar. Porque somos diferentes, estrangeiros, com outra mentalidade, outro jeito e outros parâmetros. Temos que ser mais compreensivos com eles do que eles conosco, porque tivemos mais possibilidades. Aos poucos, fui aprendendo que a gente tem de dialogar muito, principalmente para entender e fazê-los se envolverem com o nosso trabalho. A conquista é pouco a pouco e de uma maneira familiar. Na cultura deles, o mais velho é o pai, é o irmão. Então, você tem que criar essa relação, onde realmente é o pai que se preocupa e está sempre junto. A formação é personalizada. Eu procurava visitar as famílias e conhecer suas realidades. Por que se tem muita inveja e egoísmo? Por causa dos conflitos tribais, por causa da realidade que viveram e vivem. Veja só, numa família onde predomina a poligamia, se o marido tem cinco ou seis mulheres, querendo ou não vai haver competição para conquistar o marido. Se essas mulheres têm cada uma, três ou quatro filhos, vai haver competição entre eles para atrair a atenção do pai. Então, vai se gerando uma cultura da inveja, da disputa, da rivalidade, que não é um desejo deles, mas está dentro de um contexto. Por exemplo, lá não se pode fazer um elogio em público. Aqui, no Brasil, quando se faz um elogio é um incentivo para outros: “olha, ele está melhorando naquilo, então vamos copiar o que ele tem de melhor”. Lá não, se eu elogiar um formando, os outros vão fazer de tudo para destruí-lo. Aconteceu várias vezes de o melhor se tornar o pior para suportar a pressão que outros faziam.

Site Franciscanos – Ou seja, você teve de se despojar de tudo para começar do zero na formação da Missão?

Frei Samuel – Exatamente. E ir gradativamente percebendo, conhecendo e entendendo. As pessoas querem muito da gente. Só querem, querem, querem… Você tem de aprender a gratuidade de fazer e Deus que vai colher. Muitas vezes você aposta na pessoa, incentiva-a. É exatamente aquela que depois vai ser ingrata, que vai dar o contrário daquilo que você deu. Então, a gente tem de se despojado. Se eu for esperando sucesso, se for esperando resultados, vou me frustrar. Então, à medida que a gente vai se despojando, sendo gratuito, você faz bem-feito, com gosto. Deus é que vai colher os frutos. O importante é saber que fez o melhor que podia e deu o máximo. Depois a gente percebe que muitos compreenderam isso. Eu vi isso agora na minha despedida da Missão. De certa forma, vieram agradecer pelo empenho da gente. Então, tudo isso é a graça de Deus, porque é Ele que possibilita fazer tudo. 

Site Franciscanos – Foi um grande aprendizado?

Frei Samuel – Sim. Além disso, numa situação de guerra, você encontra muitas pessoas de outras nações: europeus, indianos, americanos, russos, muçulmanos. É um universo tão grande que mostra o quanto o ser humano é bonito pela sua diversidade, pela sua complexidade, pelos valores das diversas culturas. Dou graças a Deus por ter feito esta experiência universal. Por exemplo, tive um aluno muçulmano que mostrava o Islã fora da mentalidade que conhecemos através da mídia. A Jihad, a guerra santa, segundo ele, é a luta interior com você mesmo e significa a busca pela perfeição. Você conhece o outro e não cria preconceitos. Essa partilha com as organizações não-governamentais, com pessoas de outras religiões e outras culturas foi algo muito rico para mim. Percebi que muita gente está trabalhando pelo bem e pela vida. Mesmo os militares, muitas vezes, nos ajudaram muito, principalmente em dar garantias para viajarmos em segurança. Então, o lado da fé, da solidariedade, das comunidades e das ongs é muito forte. O povo é muito solidário. Quando as irmãs ganhavam um saco de arroz, elas dividiam. Se a gente conseguia alguma coisa, também dividia.  Quando a gente colhia, na nossa lavra, levava um pouco para cada fraternidade. Existe essa partilha de forma muito natural. As irmãs fazem um bolo e repartem. Ou convidam para comer em suas casas. Eu me lembro que quando a gente fazia uma coisa em casa, meu pai sempre levava um pouco para o vizinho. Lá tem muito disso. A tâmbula que o povo dá, divide-se um tanto para cada comunidade. Se a gente fica doente, as irmãs vêm cuidar ou leva para a casa delas para fazer repouso. Tem uma lâmpada para consertar, a gente vai lá. Existe uma cooperação muito grande. Não é só a produtividade, não é só fazer as coisas dentro do que está determinado, mas ter liberdade. Faz aquilo que é necessário naquele momento. As vezes você está planejando uma coisa e sai outra totalmente diferente. E esse é o aprendizado.

Site Franciscanos – Ser missionário também é ser presença, não?

Frei Sanuel –  Sim. Fazer aquilo que é necessário no momento. Às vezes é levar um doente, buscar um corpo, às vezes é fazer uma visita. Então, são outros parâmetros totalmente diferentes de nosso país ou de outros países. O tempo para eles é uma eternidade. Diferente para nós, que tudo tem de ser no horário. Se a pessoa pede “frei senta aqui um pouco, quero conversar com o frei”, pode saber que ele vai contar toda a história desde o início até chegar ao ponto que ele quer. Você tem de ter a paciência de escutar. Demore uma hora ou duas. O nosso jeito de ser, assim gentil, acolhedor, simples, encanta muito a eles. O clero é muito hierárquico em Angola. As pessoas dizem “o padre”, numa atitude distanciada. Já o nosso modo de ser, nossa espiritualidade, é muito mais jovial, muito simples, mais próxima. Eles nos chamam de frei fulano, sicrano  e têm a liberdade de entrar em casa. Mesmo os formandos, que sentam à mesma mesa para comer, porque em outras congregações comem todos separados. Às vezes fazia enquetes perguntando a eles o que mais eles admiravam na nossa vida. Eles falavam: a simplicidade e a igualdade, porque podiam sentar na mesma mesa e falar de forma natural com o f rei, sem ter medo.

Site Franciscanos – Quanto tempo ficou no trabalho com a formação?

Frei Samuel – Foram nove anos. No começo, durante a guerra, vivi aquele clima de tensão, debaixo de ataques. Vivia naquela incerteza: o que vai ser amanhã? Depois, com a morte do Savimbi (Jonas Savimbi, criador da Unita), teve início um processo de pacificação e havia o desejo de que tudo mudasse muito depressa. Mas não era tão fácil assim, pois foram trinta anos de guerra. Não se podia andar nas estradas, pois estavam muito minadas. Ainda havia muita dificuldade de comunicação, de alimentação. A expectativa era maior do que a realidade concreta. Só de dois anos para cá que as coisas começaram a dar uma guinada. O governo Angola sempre queria uma Conferência Internacional de ajuda financeira para reconstruir o país, mas todo mundo sabe que Angola é rica em diamantes, petróleo e tem muita corrupção. Não havia interesse devido a isso e logo depois estourou a guerra na Afeganistão, em seguida, veio a do Iraque, e Angola deixou de ser o foco. Pouco a pouco, o governo foi se convencendo disso e começou a procurar outras parcerias. O presidente Lula esteve lá duas vezes e a parceria com o Brasil aumentou muito, tanto que muitos produtos brasileiros são vendidos em Angola. A China é a grande parceira: muito dinheiro a um preço bem baixo. Os indianos também estão em Angola.  Hoje, todo o país é um grande canteiro em obras. O problema é que não se vê grande resultados devido à lentidão. Falta planejamento e coordenação. Mas a gente vê que o povo tem mais possibilidades, há mais chances de empregos, o povo começa a construir casas definitivas, começam a aumentar as lavras, comprar bens de consumo – panela, colchão, eletrônicos, mesas, cadeiras –  e a vida está ganhando uma estabilidade e segurança maiores. Planta-se mais, cria-se animais. Diminuiu-se mais a burocracia e os postos de controle se limitam a dois ou três. Muitas coisas estão mais fáceis, inclusive para nós, missionários. Para sair do país, antes, você tinha de pedir visto de saída. Agora, não precisa mais. O processo de cadastramento eleitoral foi iniciado, tudo de forma muito profissional, com computação. O documento fica pronto na hora. Muitos países têm ajudado – Brasil, Estados Unidos, China, Comunidade Européia – no sentido de democratizar. Mas falta muito investimento na área de produção. Angola importa quase tudo. Não existe indústrias lá. Os chineses estão fazendo muita coisa, mas a maioria dos trabalhadores é da China. A mão-de-obra vem de fora. Um brasileiro que conheci lá, que até é da minha cidade, Duque de Caxias (RJ),  me dizia, que, por não envolver os angolanos nestas obras, não se cria vínculos, levando a muita depredação. Todos os canteiros de obras têm de ser muito cercados e guardados a sete chaves, para não roubarem os materiais. Muitas escolas são reformadas, mas depois de um ano parecem que ficaram 10 anos sem reformas. Hoje, o caminho é investir muito na formação e educação, principalmente de quadros. Os portugueses deixaram esta lacuna porque só se podia estudar até a quarta série. Hoje, Angola não tem engenheiros, eletricistas, encanadores, mecânicos, médicos. A maioria dos médicos é da Rússia, Vietnã, Coréia e Cuba. Em Malange só havia quatro médicos angolanos. 

Site Franciscanos – É um investimento para recuperar trinta anos de guerra?

Frei Samuel –  Hoje vejo que o mais difícil da missão não foi viver durante a guerra, principalmente com a carência de material. Isso se supria. O mais difícil é agora o pós-guerra. As pessoas perderam valores, são mais egoístas, desconfiadas, há violência, desconfiança. Um exemplo, na semana retrasada, o carro em que eu estava enguiçou e para me ajudar a empurrá-lo, um rapaz me cobrou mil quanzas, equivalente a 25 dólares. No Brasil, isso se faz gratuitamente. Lá, tudo é em troca do dinheiro. A guerra descaracterizou, nos grandes centros, esse lado solidário, acolhedor, que felizmente se mantém nas aldeias. Na capital, é uma selva: quem pode mais chora menos. 

Site Franciscanos – Mas não tem violência urbana?

Frei Samuel – Tem. Os meios de comunicação começaram a influenciar muito. Esse filme “Cidade de Deus” passou lá e os jovens começaram a criar gangues para fazer assaltos, para matar. O governo proibiu o seriado “Malhação” na TV estatal porque estava gerando uma influência negativa. Os filhos desafiavam os pais e batiam neles quando lhes chamavam a atenção. Como o país ficou muito tempo fechado, sem informações, com a abertura, esses jovens começaram a copiar tudo o que viam sem o menor senso crítico e em detrimento dos valores que tinham. O grande problema é esse: o jovem se sente frustrado, não tem acesso às escolas, não tem emprego. Eu admiro os rapazes que ficam nas ruas vendendo o dia todo naquele sol quente, fugindo da Polícia de um lado a outro para conseguir sobreviver.

Site Franciscanos – Angola acolheu a todos os que fugiam da guerra sem ter estruturas?

Frei Samuel – A capital, do jeito que está, não tem conserto (segundo dados estatísticos há 4 milhões de pessoas desalojadas pelo conflito). É uma grande favela, sem a menor estrutura básica de saneamento. Para você ter uma idéia, as empresas de lixo trabalham dia e noite e não conseguem tirar o lixo. As pessoas jogam o lixo pelas janelas. Então, é preciso investir pesado na formação e educação. O peso cultural é muito forte e os próprios catequistas nos mostram que há muito por fazer em termos de evangelização. Por exemplo, um catequista que enterra o próprio filho, vivo, porque foi dito que ele é feiticeiro. E ele acredita nisso. Para ele, ir a outra aldeia e arrumar uma mulher é natural, não é adultério porque o “homem não pode viver sem mulher”. Então, você vê que o Evangelho não penetrou fundo nas pessoas. Os próprios bispos dizem que a evangelização ainda é superficial. O trabalho é muito mais exigente agora para se criar um espírito novo de fraternidade e cooperação.

Site Franciscanos – Como é o trabalho das lavras que os frades ajudam?

Frei Samuel – A gente prepara as terras para as famílias, divide as vivandas – cinco para cada um – e todos trabalham comunitariamente. Um tanto do que se colhe tem que ser para o banco de sementes para outro ano. Mas não é fácil para eles esse trabalho em cooperativa. Há muita desconfiança entre eles por não terem uma visão de conjunto. Os frades têm um trator e dividia-se o custo para o seu uso: as entidades de fora financiavam um tanto e eles entravam com outro tanto. Agora, com o final da situação de emergência, as entidades estão diminuindo as ajudas, então eles têm que dividir entre eles esse custo. Só que é um preço muito mais abaixo dos tratores do governo, que cobram 170 dólares por hectare e nós cobramos 100.

Site Franciscanos – Depois de dez anos na Missão, como você se sente ao assumir uma nova atividade, já que será guardião do Postulantado de Guará?

Frei Samuel – A gente fica dividido. Primeiro, porque você sabe das lutas, dos sofrimentos, angústias, do que ficou em Angola. Ao mesmo tempo, é um desafio novo  voltar pra cá. Eu não trabalhei ainda como presbítero no Brasil e vou ter de reaprender tudo e conhecer a realidade da formação da Província.  Quando fui para Angola, o povo dizia que eu era um “miúdo” – eles diziam quando você é pequeno – e agora saio enriquecido e amadurecido: na própria fé, no mistério, na visão como franciscano, no aprendizado de ser humilde. A chave para abrir todas as portas tem de ser a humildade. Se você não se dobrar diante das coisas, você não vai conseguir. E vai entendendo por que São Francisco era humilde. Nada vai ser tão difícil a partir de agora diante da experiência que vivi em Angola, mesmo que a gente sempre tenha medo do desconhecido.

Site Franciscanos – Como você disse,  Deus sabe como prover.

Frei Samuel – A gente sabe que não depende de nós. Você pode até fazer muita coisa, ter muitos recursos. E pode não dar nada certo. Me lembro que no tempo da guerra a gente se protegia num bunker. Mas isso só não é segurança. Se você não tem Deus que o protege,  não adianta você estar num bunker. Você começa a confiar mais em Deus e a se colocar nas mãos Dele..

Site Franciscanos – É uma volta ao Seminário de Guaratinguetá?

Frei Samuel – Depois de vinte anos, eu volto para lá. Eu fiz o Postulantado no Sevoa – Seminário de Vocações Adultas – em 86. Vai ser uma experiência nova.

Site Franciscanos – Há um plano de fazer um livro?

Frei Samuel – Não (risos). Lá em Angola,  esse tempo todo fui cronista da casa. Se fosse para escrever um livro, material não ia faltar, pois existem quatro livros tombo escritos. Lá, cada dia, tem uma coisa nova. É como se fosse um capítulo de novela. 

Site Franciscanos – O que você diria aos novos missionários que estão partindo para a Missão e para aqueles que querem ir?

Frei Samuel –  Que tenham vontade de servir, porque lá tem de estar disposto a fazer qualquer coisa. Conforme a necessidade. “Ah, mas não sei fazer isso!”. A gente aprende. Eu aprendi mecânica, aprendi a dirigir caminhão, trator etc. Então, quando a gente vai nessa disposição, para servir e por amor de Deus, as coisas que pareciam ser difíceis, como São Francisco dizia, “se tornam doce”. A primeira prioridade é isso: ir na disposição de servir. Depois, a  gente percebe que precisa muito trabalhar a questão da fraternidade. A vida exterior é tão desafiadora, que o nosso reduto, a nossa fonte de sustentação é a fraternidade. Se a gente não conseguir trabalhar a dimensão fraterna, a gente não consegue ficar. É preciso se ajudar mutuamente, escutar o outro, perceber os sonhos, as dificuldades de cada um. Se a gente consegue conviver, amar, criar gosto pelo outro, forma-se uma família melhor, que dá base para esta vida. Essa experiência de fraternidade eu gostei muito de fazer em Angola. 

Site Franciscanos – Todos os formandos de Angola são suas “crias”. Em que estágio estão na formação? 

Frei Samuel – Os mais adiantados agora são três. Eles estão terminando a Filosofia esse ano e vão fazer Teologia. São eles: Frei João Serrote, Frei Afonso Kachekele, Frei Antônio Baza. Os três começaram o Aspirantado comigo, ainda no tempo da guerra. Têm quatro que vão para o Postulantado e vamos ter 11 aspirantes. Este ano não tem nenhum no Noviciado. Os dois que estavam para ir desistiram. Esse é um problema. A gente percebe, agora no pós-guerra, que se abriram muitas outras possibilidades – há mais universidades e emprego -,  então aquele encanto e desafio da vida religiosa diminuiu. As vocações diminuíram. O nosso definidor na África, que é um moçambicano, disse que é próprio do tempo. Vai haver uma queda das vocações agora, mas daqui a cinco anos isso se estabilizará e voltará a crescer. Mas o bonito ver que quem desistiu, tem a gente como uma família e mantém um vínculo. Teve dois que foram até o aeroporto quando souberam que eu estava voltando. Foram para lá para agradecer e se despedir. Eu falava para eles: mais importante é vocês lutarem pelo desenvolvimento humano. Angola está precisando muito disso. Que vocês apostem no curso que estão fazendo, seja o que for, nesse lado humano das pessoas, para que possa haver transformação.