Frei Carlos: o guardião da Fraternidade Acolhedora
20/10/2020
Moacir Beggo
A voz grave e o inconfundível sotaque revelam com certa facilidade a origem missionária alemã de Frei Carlos Körber, o atual responsável por zelar e cuidar do principal patrimônio da Província: seus frades idosos.
Nesta entrevista, o guardião da Fraternidade de Bragança Paulista conta que foram muitas as dificuldades na sua adaptação neste país quando ainda era um jovem missionário, afinal são duas culturas bem distintas. Mas isso não impediu que, em 50 anos de Brasil, Frei Carlos tivesse uma extensa e marcante vida pastoral e missionária. “Todos os trabalhos e lugares deixaram a sua marca na minha vida. Toda a transferência deixou saudade, mas também alegrias porque se pode ser ainda útil e comunicar as riquezas da vida evangélica em outras situações e ambientes”, revela.
Frei Carlos chegou ao Brasil no dia 28 de janeiro de 1969 e vestiu o hábito franciscano no Noviciado de Rodeio no dia 20 de janeiro de 1970. Natural de Bochum, na Alemanha, onde nasceu no dia 6 de maio de 1946, Frei Carlos fez a profissão solene no dia 2 de agosto de 1974 e foi ordenado presbítero no dia 13 de dezembro de 1975.
Nesta série “Nossos Frades”, conheça um pouco mais Frei Carlos, que gentilmente deu esta entrevista a Moacir Beggo.
Site Franciscanos – Fale um pouco de sua família e sua vida antes de morar no Brasil.
Frei Carlos – Um ano depois do término da 2ª Guerra Mundial eu, Karl Josef Körber, nasci, como primeiro de sete filhos do casal Karl Körber e Maria Lissner Körber. A guerra ainda mostrava os seus vestígios e influenciou visivelmente a minha infância. Meus pais nos deram uma educação católica. Naquele tempo existia ainda, na minha região, a escola primária católica e escola primária luterana. Fui matriculado na escola católica. Em casa havia o costume de os pais, juntos com os filhos, rezarem e participarem da Missa dominical. Havia, sim, de vez em quando, um questionamento a respeito da celebração dominical porque nós, como jovens, observávamos os colegas que não participavam das celebrações. Graças à firmeza de meus pais, cultivamos a vida católica e nos engajamos sempre mais nos serviços da paróquia. Fui coroinha e, mais tarde, participei também do grupo dos jovens. De vez em quando sonhava também em me tornar padre.
Depois dos anos da formação básica decidi abraçar a profissão de agrimensor (profissional responsável por medir campos ou propriedades rurais). A formação teórica e prática, até receber o diploma de agrimensor, durou dois anos e meio. Durante um meio ano trabalhei na minha profissão, até o momento em que fui convocado para o serviço militar. No quartel, depois da formação básica, podia gozar dos meus conhecimentos de agrimensor. Recebi uma posição para exercer a minha profissão. Era o único no batalhão.
Site Franciscanos – Como foi seu discernimento vocacional?
Frei Carlos – Nesse tempo, também ficou mais claro o desejo de ser padre religioso. Escrevi para várias congregações e ordens pedindo informações sobre a vida religiosa. Recebi respostas de várias instituições. Senti-me tocado por uma mensagem de Frei Bruno Fuchs, do Seminário de Garnstock, na Bélgica, que me despertou para a vida franciscana. Ele me convidou para fazer uma visita a Garnstock e, aceitando o convite, fui para lá. Conversei longamente com ele e com os estudantes que lá se encontravam. A vocação amadureceu e, no dia 3 de outubro de 1967, entrei para o seminário, onde no convívio com os outros, pude descobrir a riqueza da vida franciscana e o vigor de assumir esta forma de vida. No início de 1968, Frei Bruno foi transferido e Frei Adalberto Gaszczak assumiu a tarefa de prefeito. Conversando com ele, descobri que tínhamos pontos em comum no passado. Como se constatou depois, ele, Frei Adalberto, já havia celebrado uma Missa solene na minha paróquia. Um amigo dele, conhecido meu, morava na paróquia e havia preparado tudo para esta missa. Ele também foi colega de trabalho do meu pai nas minas de carvão.
Éramos quatro candidatos que pretendiam viajar para ao Brasil no início de 1969. Dos quatro, somente três embarcaram. Viajamos de navio até Santos. Mas, no Porto do Rio, paramos para visitar a Cidade Maravilhosa. Que alegria quando fomos recebidos por Frei Bruno, que nos mostrou a cidade. À noite, embarcamos para Santos onde, no dia seguinte, fomos recebidos pelos frades do Convento São Francisco. Eles nos mostraram o convento Santo Antônio do Valongo e a cidade antes de subirmos para o Convento São Francisco.
Site Franciscanos – Como foi a chegada ao Brasil?
Frei Carlos – Chegamos à Terra da Santa Cruz. Tudo era novidade. Apesar de ter estudado um ano a língua portuguesa em Garnstock, não entendia nada. O ouvido ainda tinha que se adaptar a ouvir, assimilar e responder. A nossa sorte foi que no Convento existiam vários freis que dominavam o alemão e nos socorreram. Naquele tempo, a Província contava com mais de 700 religiosos e, se olharmos para a Província de hoje, temos apenas a metade. Naquele tempo, o número dos frades que chegou da Alemanha foi enorme e hoje somos menos do que dez frades alemães. A influência da vida alemã se percebia em todos os conventos. Quantas vezes se estruturou a vida conventual com costumes e maneiras de viver da Alemanha. Hoje, não podemos ficar parados no tempo e sonhar com o passado, mas encontrar o caminho para testemunhar as riquezas do Reino de Deus na nossa realidade atual. Isto significa realizar o apelo do Papa Francisco de “ser uma Igreja em saída” como nosso ideal. Acredito que a Província “vestiu” a camisa e busca concretizar este ideal. Acredito também que ainda existem frades que praticam a “manutenção” e não conseguem ver o outro lado.
Até o começo das aulas em Agudos restavam alguns dias. Aproveitamos para visitar Frei Bruno em Petrópolis e ficar com ele. Fomos de ônibus. Para nós, recém-chegados, foi uma novidade porque na Europa se faz todas as viagens distantes de trem. Até agora, a estrada é o meio mais usado para uma viagem no Brasil.
Site Franciscanos – Foi difícil aprender o português?
Frei Carlos – Chegou o momento de viajar para Agudos a fim de iniciar os estudos e a preparação para o Noviciado. Fomos bem recebidos pelos freis e estudantes que iam conviver conosco durante o ano de 1969. Adaptar-se e conviver com um grupo de mais de 300 alunos foi um desafio. Mas vencemos, apesar das exigências necessárias para se viver em grupo. Tivemos dificuldades para nos comunicar pois não conhecíamos bem a língua portuguesa. Então, trocar as palavras era comum e engraçado. Por exemplo, queria falar ‘onde estava a maturidade do 7º ano” e disse: “ Onde fica a maternidade do 7º ano”. Ou, numa noite de brincadeiras no dormitório, desmontaram a minha cama e, no momento em que me deitei, ela caiu. Gritei: “Derramaram minha cama!”. Até hoje aprendo a língua nacional porque, depois de 50 anos de vida no Brasil, não domino totalmente o idioma. Outra coisa que precisei me adaptar: a comida. Aqui não pode faltar na mesa arroz e feijão. Uma outra observação quanto à diferença de vida daqui e da Alemanha: A observância do horário. Aqui parece ser tudo um pouco mais flexível, enquanto na Alemanha se observa rigorosamente o horário. Ou ainda quanto aos relacionamentos: Enquanto o convívio com as pessoas na Alemanha é muito formal e “distante”, aqui percebe-se uma proximidade maior e um contato mais humano.
Site Franciscanos – Como foi sua caminhada formativa, sua vida pastoral e fraterna na Província?
Frei Carlos – Vencemos também esta etapa e, em 1970, fizemos o Noviciado. Foi uma vida totalmente diferente. Um grupo pequeno de jovens que fez a sua primeira experiência na vida franciscana. Tínhamos tempo bastante para nos confrontarmos conosco mesmos, viver em fraternidade o ideal da vida franciscana, discernir, amadurecer. No dia 21 de janeiro de 1971, emitirmos os votos temporários.
Nos anos de 1971 a 1976 estudei Filosofia e Teologia em Petrópolis. Que abundância de sabedoria e experiência de vida nos transmitiram nossos mestres e professores. Emiti os votos solenes em 2 de agosto de 1974 e, em 13 de dezembro de 1975, recebi na minha Diocese da Alemanha a ordenação sacerdotal. Como neopresbítero fiquei ainda, em 1976, na cidade de Petrópolis para completar os estudos.
A partir de 1977, trabalhei nos mais diversos campos: Na educação interna e externa, no Provincialado, em paróquias, fui assistente da OFS e atualmente estou em Bragança Paulista como guardião na Fraternidade São Francisco e assistente da OFS. Todos os trabalhos e lugares deixaram a sua marca na minha vida. Toda a transferência deixa saudades, mas também alegrias porque se pode ser ainda útil e comunicar as riquezas da vida evangélica em outras situações e ambientes. É sempre um estímulo para recomeçar e não ficar parado. Trabalhei com as mais diversas fases de idade, a começar com os seminaristas da 5ª a 8ª série; com as vocações tardias, com universitários, com pessoas em pleno vigor da vida e hoje com os confrades mais idosos, que precisam de uma atenção especial para viverem felizes e realizados nos últimos anos da sua vida. Eles precisam de uma atenção especial, uma dedicação constante para não se sentirem abandonados e desprezados. Além disso é importante que se cultive a vida comunitária. Caso contrário, pode acontecer que alguém se isole totalmente e se esqueça que a vida fraterna é o elemento que nos dá suporte para vivermos em paz e harmonia.
Site Franciscanos – O que mudou na Província nesses 50 anos?
Frei Carlos – Eu, pessoalmente, acredito que a Província precisa rever toda a sua caminhada. Vendo os frades, percebemos que um grande número está numa idade um pouco avançada. Não tem mais o vigor da juventude. Por isso, penso que a Província deva se distanciar um pouco mais das atividades para cultivar melhor uma vida interior e descobrir a importância do “ser franciscano”.
Site Franciscanos – O que o sr. acha do Pontificado do Papa Francisco?
Frei Carlos – Quanto ao Papa Francisco, posso dizer: Ele sabe orientar a Igreja. Brilha mais pelo exemplo da vida, pelo engajamento do que por seus escritos. A carta encíclica Laudato Si’ é o grande indicador do rumo que a Igreja deve caminhar. O Papa não se isola mas participa ativamente dos mais diversos encontros e atividades da Igreja.
Site Franciscanos – Qual a lição que fica para a humanidade desta pandemia?
Frei Carlos – Todos nós sofremos com a pandemia da Covid 19. Percebemos as mudanças que se impõem. Constatamos que somos limitados nas nossas ações, verificamos que os bens materiais são necessários, mas não são tudo. Vamos aprender, neste tempo de pandemia, a olhar positivamente para a situação e fazer a lição que a “Laudato Si” nos deixa: A harmonia e a ordem na natureza devem ser mantidas na posição que Deus nos confiou.
Site Franciscanos – Que mensagem o sr. daria para um jovem que quer ser frade menor?
Frei Carlos – Se um jovem me pergunta se vale a pena ainda hoje abraçar a vida franciscana, digo para ele: Coragem! Vale a pena, também nos dias de hoje, assumir esta forma de vida.
Eu, depois de 50 anos de vida franciscana, me sinto feliz de ter dado este passo. Foram 50 anos de alegrias e realizações e também 50 anos de lutas e vitórias. Agradeço a Província por tudo aquilo que me fez ao longo dos anos para viver, em cada tempo e etapa, a vida franciscana condizente com o momento. Muito obrigado.