Frei Valmir Ramos: A pandemia ensina que as pessoas são mais importantes que as coisas
03/04/2020
Vivendo em Roma desde 2015, quando passou a fazer parte do Governo Geral da Ordem dos Frades Menores, o brasileiro Frei Valmir Ramos falou ao site Franciscanos sobre a pandemia do novo coronavírus que assola a Itália desde o mês de março e informou que, na Ordem, apenas um frade norte-americano veio a óbito. Desde que começou a crise na Itália, mais de 30 sacerdotes morreram, sendo 16 vítimas da diocese de Bérgamo.
Paulista, natural de Franca (SP), Frei Valmir foi eleito Definidor Geral para a América Latina no Capítulo Geral de 2015. Segundo ele, é grande a tristeza ao ver o número de mortos crescendo, especialmente no Norte da Itália e na Espanha. “Parece que, mais uma vez, o ser humano é impotente e sua vida muito fugaz diante de certas situações”, observa.
Desde o dia 23 de fevereiro, quando a Itália assumiu a liderança de casos na Europa, um cordão sanitário foi feito em torno de 11 cidades da região de Lombardia, a mais afetada, determinando as primeiras medidas de distanciamento social. Contudo, a Itália entrou em completo “lockdown” em 8 de março. Hoje, o drama italiano se repete na Espanha, França, Inglaterra, EUA e espalha medo em todo o mundo.
“Esta situação de crise aponta para a necessidade de parar, pensar, discernir e tomar decisões que projetem um futuro melhor para todos”, ensina Frei Valmir. Todos os frades da Cúria Geral estão trabalhando nos vários escritórios e as reuniões, assembleias, congressos até setembro deste ano foram todos cancelados.
Acompanhe a entrevista a Moacir Beggo!
Site Franciscanos – Como foi para o sr. ver todo o processo da chegada do vírus à Itália até este dramático momento que vive o país?
Frei Valmir – A primeira sensação foi a de que existia muito alarmismo e pouca informação objetiva. Falava-se do Covid-19 lá na China, mas poucos sabiam ou acreditavam na gravidade do problema. Quando começaram a morrer muitas pessoas contagiadas, então muitos ficaram com medo. Aí vimos o que não deveria acontecer, isto é, as autoridades pediram para a população não circularem de um lugar para outro, mas muitos “fugiram” da recomendação, como se fossem expertos, e ajudaram a espalhar o vírus. O sentimento, naquele momento, era o de que se deveria ter cuidado, atender às recomendações de quem entendia de infectologia e ficar em casa. Durante esse tempo, vimos muita ignorância, muito preconceito, muitas acusações infundadas e, ao mesmo tempo, tantos gestos de solidariedade, de compreensão, de apoio e reconhecimento àqueles que estavam na linha de frente cuidando dos doentes. Nos últimos dias de março, vimos, com grande tristeza, o número de mortos crescendo, especialmente no Norte da Itália e na Espanha. Parece que, mais uma vez, o ser humano é impotente e sua vida muito fugaz diante de certas situações.
Site Franciscanos – Que reflexão o sr. faz para este momento que atravessa a humanidade?
Frei Valmir – Existem muitas teorias, muitas “teses”, muitos pontos de vista sobre o atual momento e o futuro da humanidade. Muitos pensadores e escritores falam de um momento de crise. Talvez seja mesmo um momento de crise, no sentido de processo de purificação.
Se olharmos para o Ocidente, orgulhoso de sua sabedoria, de sua cultura, de seu trabalho que produziu muita riqueza material, de sua tradição que foi capaz de “produzir” muitos ramos da ciência, vamos notar que está em crise. O mesmo Ocidente, especialmente os países que saíram para o Sul e para o Oriente com a finalidade de conquistar, colonizar e explorar as suas riquezas, hoje está tentando manter sua soberania com o poder econômico. No entanto, em crise, pois não consegue se manter sem a mão de obra do Sul e sem os produtos do Oriente. Parece que existe um mal-estar de quem está passando por uma doença e não tem perspectiva de encontrar uma fórmula mágica para se curar. As sociedades envelhecidas da Europa alcançaram um alto nível de bem-estar, mas as pessoas não estão felizes e muitas não conseguem libertar-se do estresse, da correria sem objetivos transcendentes, e estão sempre em busca de compensações que não levam a nada ou que levam à morte.
Se olharmos para outras partes do mundo vemos muitas situações semelhantes e até o desejo de imitar o modelo europeu e norte-americano. De qualquer modo, vemos o Oriente despontando com ciência, tecnologia, sabedorias milenares, reação às investidas neocolonialistas e, em parte da grandíssima maioria das pessoas, vontade de mudanças para melhor. A globalização defendida nos anos 80 do século passado, pensava apenas na economia e no fortalecimento do comércio. Sem dúvida, este direcionamento da globalização atingiu a grandíssima maioria das pessoas do Sul e do Oriente. Nisto caíram alguns paradigmas e modelos de países ricos, mesmo que a cobiça continue sempre uma das tentações mais fortes sobre o ser humano.
Enquanto muitas teorias vão aparecendo, as pessoas sofrem as consequências de certas “opções” de governantes inescrupulosos e aproveitadores em todo o mundo. Na prática, porém, parece que as pessoas buscam saídas para evitar qualquer sofrimento e cuidar de si mesmas. Às vezes, fogem; às vezes, aliam-se a situações perigosas e; às vezes, omitem-se. Muitos ainda defendem o sistema neoliberal globalizante como sinal de liberdade e de oportunidade para ter e para enriquecer-se, sem pensar no que acontece com o vizinho e nem “preocupar-se com a ruína de José” (cf Am). Contudo, alguns sinais indicam que muitos estão construindo o futuro, pois atuam neste momento com ações transformadoras e esperançosas.
Cito o exemplo da Encíclica Laudato Si’ do Papa Francisco. Ele, como responsável pela Igreja Católica Romana, lançou um documento que sinaliza a preocupação com o hoje e o amanhã. Este documento teve e tem mais repercussão fora nos âmbitos acadêmicos que nos meios eclesiásticos. Existem trabalhadores, estudiosos, pensadores e ativistas muito empenhados em cuidar da vida e cuidar para que as pessoas sejam felizes com a vida e não com as coisas que possui. Muitos estão conscientes de que todos têm direitos e precisam ser respeitados, e não podemos mais continuar defendendo os nossos sem respeitar os vossos, inclusive o direito da criação de viver e manter o planeta vivo.
Hoje, a humanidade tem informações imediatas de quase tudo e sobre quase todos. Um problema é que a maioria das pessoas não sabe o que fazer delas e, pior, não sabe distinguir uma informação verdadeira daquela falsa. Parece que a facilidade de acesso à informação e de comunicação veio com a pouca capacidade de administrar o tempo e cuidar do que é mais importante, do que é essencial.
Esta situação de crise aponta para a necessidade de parar, pensar, discernir e tomar decisões que projetem um futuro melhor para todos.
Site Franciscanos – Existe um panorama da situação da infecção nos conventos da Ordem?
Frei Valmir – Até agora sabemos que um frade morreu em Washington, nos Estados Unidos. Ele foi diagnosticado com Covid-19, mas infelizmente já tinha outros problemas que faziam baixar sua imunidade. Não sabemos de outros casos de contágio confirmado.
Site Franciscanos – Como estão os frades que trabalham na Cúria Geral?
Frei Almir – Em nossa Casa Geral estamos todos bem, graças a Deus. Desde o dia 09 de março, estamos rigorosamente em casa. Apenas um confrade está na Alemanha, também em casa. Aqui tem apenas um frei autorizado a sair para buscar remédio na farmácia, se necessário, e outro para fazer alguma compra no supermercado, se necessário. Todos estão trabalhando nos vários escritórios,nas suas funções e as reuniões, assembleias, congressos até setembro deste ano foram todos cancelados. Ao mesmo tempo, estamos fazendo contatos e realizando videoconferências em diversos momentos, evitando viagens e encontros físicos.
Site Franciscanos – Como consolar as pessoas neste momento de pandemia?
Frei Valmir – Eu penso que o maior consolo é garantir a presença espiritual, o carinho, o reconhecimento, a estima, todos os sentimentos que garantem às pessoas que elas não estão sós. A solidão imposta por determinadas situações é triste e, neste momento de isolamento social, é preciso responsabilidade. Nada de notícias ilusórias ou relativização.
Site Franciscanos – Quais são as lições dessa pandemia?
Frei Valmir – A primeira lição é que nós precisamos olhar para o essencial da vida. A pandemia provocada por um “inimigo” invisível pode provocar medo, insegurança, incertezas, angústia, ânsia e todos os sentimentos que o ser humano possa ter em uma situação dessas. Se pensarmos, porém, que o vírus “passeia” tranquila e rapidamente de uma pessoa para a outra, sem que ninguém saiba onde ele está, e que ele poderá causar uma infecção pulmonar a ponto de deixar-nos sem oxigênio e levar-nos à morte em poucos dias, então seremos cuidadosos e deixaremos para depois o que não é importante. A pandemia ensina que as pessoas são mais importantes que as coisas. Por isso mesmo, a humanidade que corre, há séculos, atrás de riquezas e coisas materiais pode aprender que é preciso cuidar da casa para que todos estejam bem, é preciso fazer crescer a solidariedade.
A segunda é que vivemos num sistema desumano e cruel. Os interesses pelos bens materiais e pelo poder de consumo criou este sistema excludente, que não permite que os pobres morram com dignidade. Os mais afetados por esta pandemia são e serão os pobres. Quando houve a necessidade do isolamento, os pobres começaram a passar mais fome que antes. Talvez muitos morrerão de fome antes de serem contagiados pelo Covid-19. Esta é a maior tristeza que esta pandemia está provocando. É a crueldade do sistema que não permite acesso à vida digna para todos.
A terceira lição é que podemos viver com menos poluição provocada pelos combustíveis fósseis. O poder econômico não admite e muitas pessoas não percebem que estamos destruindo e contaminando nossa “casa comum”. Os que pensam em investimentos financeiros e bem-estar econômico nem querem ouvir falar de mudança climática ou destruição do planeta. Ao contrário atacam as realidades onde surgem as mais terríveis doenças: os mercados de países pobres de clima quente úmido.