“Nas Igrejas de alguns países se vê que falta o frescor”
29/10/2016
Cidade do Vaticano – O Papa Francisco concedeu uma entrevista sobre sua viagem apostólica à Suécia, que se realizará de 31 deste mês a 1° de novembro, ao sacerdote jesuíta Pe. Ulf Jonsson, diretor da revista jesuíta sueca “Signum”, junto com o diretor da revista jesuíta italiana “La Civiltà Cattolica”, Pe. Antonio Spadaro.
“Não se pode ser católico e sectários” disse o Pontífice na entrevista concedida na véspera da visita à Suécia para a comemoração ecumênica dos 500 anos da Reforma Luterana.
“Na entrevista, o Papa falou, entre vários assuntos, sobre sua amizade com os luteranos desde quando era garoto e depois nos tempos de seu ministério episcopal. Além de explicar as modalidades da visita e seu significado, Francisco falou sobre o desafio espiritual para as Igrejas “envelhecidas” e sobre a importância da inquietude na sociedade marcada pelo bem-estar. A propósito do diálogo ecumênico sublinhou a importância de “caminhar juntos” para não permanecer fechados em perspectivas rígidas, porque nelas não há possibilidade de reforma.
Introdução do Pe. Jonsson
“Durante um encontro dos diretores das revistas culturais europeias da Companhia de Jesus, na metade de junho, manifestei ao Pe. Antonio Spadaro, diretor de La Civiltà Cattolica, um desejo que eu tinha no coração há muito tempo: entrevistar o Papa Francisco na véspera de sua viagem apostólica à Suécia, 31 de outubro de 2016, para participar da comemoração ecumênica dos 500 anos da Reforma Luterana. Pensei que uma entrevista fosse a melhor maneira de preparar o país para a mensagem que o Pontífice teria endereçado às pessoas durante sua visita. Como diretor da revista cultural dos jesuítas suecos “Signum”, pensei que este objetivo entrasse plenamente em nossa missão.
O ecumenismo, assim como o diálogo entre as religiões e também com os não fiéis, está muito no coração do Papa. Ele fez entender isso de muitas maneiras. Ele é um homem de reconciliação. Francisco está profundamente convencido de que os homens devem superar barreiras e cercas de qualquer tipo. Acredita no que define “cultura do encontro”. Isso para que todos possam colaborar para o bem comum da humanidade. Queria que esta visão de Francisco pudesse tocar a mente e o coração de muitos antes de sua chegada à Suécia: a entrevista teria sido o meio melhor para alcançar tal objetivo. Disse isso ao Pe. Spadaro com o qual prossegui a reflexão até agosto, quando juntos chegamos à conclusão de que era realmente oportuno apresentar ao Pontífice este pedido a fim de que pudesse decidir se realizá-la ou não. O Papa tomou tempo para refletir sua oportunidade. No final, a resposta foi positiva e nos deu um encontro na Santa Marta na tarde do sábado, 24 de setembro passado.
Foi um dia realmente agradável por causa da temperatura e luminosidade do céu. Atravessando o trânsito de Roma de carro com Pe. Spadaro, estava ansioso, mas feliz. Chegamos a Santa Marta 15 minutos antes do previsto. Pensei que devíamos esperar e ao invés fomos logo convidados a subir ao andar onde o Papa tem o seus aposentos. Quando o elevador se abriu, vi um guarda-suíço que nos saudou com cortesia. Ouvi a voz do Papa falar cordialmente com outras pessoas em espanhol, mas não o vi. A um certo ponto ele apareceu com duas pessoas, conversando amigavelmente. Nos saudou com um sorriso indicando-nos de entrar em seus aposentos: ele voltaria logo.
Fiquei surpreso com esta simples e calorosa familiaridade e acolhimento. Foi-nos dito na portaria que o Papa teve um dia intenso, e eu pensei que estivesse cansado no final do dia. Ao invés disso, fiquei surpreso em vê-lo tão cheio de energia e relaxado.
O Papa entrou na sala e nos convidou a sentar onde preferíamos. Sentei-me numa poltrona e Pe. Spadaro diante de mim. O Papa se sentou no sofá no meio das duas poltronas. Apresentei-me no meu italiano pobre, mas suficiente para entender e dialogar com simplicidade. Depois de algumas brincadeiras do Papa acendemos os gravadores e iniciamos a conversa.
Pe. Spadaro traduziu do inglês algumas perguntas que eu queria fazer ao Papa e que eu tinha preparado, mas depois da conversa entre nós três fluiu naturalmente, numa atmosfera amigável e sem distâncias artificiais. Sobretudo porque foi claro e direto, sem rodeios e sem que a atmosfera típica dos encontros com os grandes líderes ou pessoas a respeito. Não tenho nenhuma dúvida de que o Papa Francisco ama conversar, comunicar com os outros. Às vezes toma tempo para refletir antes de responder, e suas respostas sempre transmitem uma sensação de envolvimento sério, mas não pesada ou triste. Na verdade, durante a nossa visita, ele deu várias vezes sinais de seu humorismo.
Entrevista
Santo Padre, em 31 de outubro o senhor visitará Lund e Malmö para participar da Comemoração Ecumênica dos 500 anos da Reforma, organizada pela Federação Luterana Mundial e pelo Pontifício Conselho para a Promoção da Unidade dos Cristãos. Quais são as suas esperanças e suas expectativas para este evento histórico?
“Digo somente uma palavra: aproximar-se. A minha esperança e expectativa são as de me aproximar mais de meus irmãos e irmãs. A proximidade faz bem a todos. A distância, ao invés, nos faz adoecer. Quando nos distanciamos, nos fechamos dentro de nós mesmos e nos tornamos nômades, incapazes de nos encontrar. Nos deixamos levar pelo medo. É preciso aprender a se transcender para encontrar os outros. Se não o fazemos nós cristãos nos adoecemos de divisão. A minha expectativa é a de conseguir fazer um passo de proximidade, de estar próximo aos meus irmãos e irmãs que vivem na Suécia.”
Na Argentina, os luteranos formam uma comunidade restrita. O senhor teve modo de se encontrar com eles no passado?
“Sim, bastante. Lembro-me da primeira vez que fui a uma igreja luterana: foi precisamente em sua sede na Argentina, na Calle Esmeralda, Buenos Aires. Eu tinha 17 anos. Lembro-me bem daquele dia. Casou-se um amigo meu de trabalho, Axel Bachmann. Ele era o tio da teóloga luterana Mercedes Garcia Bachmann. E a mãe da Mercedes, Ingrid, trabalhava no laboratório onde eu trabalhava. Esta foi a primeira vez que participei de uma celebração luterana. A segunda vez, foi uma experiência mais forte. Nós jesuítas temos a Faculdade de Teologia em San Miguel, onde ensinei. Ali perto, a menos de 10 km de distância, havia a Faculdade de Teologia Luterana. O reitor era um húngaro, Leskó Béla, realmente um bom homem. Com ele tinha contatos muito cordiais. Eu era professor e tinha a cátedra de Teologia espiritual. Convidei o professor de Teologia espiritual daquela Faculdade, um sueco, Anders Ruuth, para dar junto comigo aulas de espiritualidade. Lembro-me que aquele era um momento muito difícil para a minha alma. Eu tinha muita confiança nele e abri o meu coração. Ele me ajudou muito naquele momento. Depois foi enviado ao Brasil, conhecia bem também o português, e depois voltou para a Suécia. Ali publicou as suas teses de habilitação sobre “A Igreja universal do Reino de Deus”, que surgiu no Brasil no final dos anos setenta. Era uma tese crítica. Ele a escreveu em sueco, mas tinha um capítulo em inglês. Ele me enviou e eu li aquele capítulo em inglês: era uma pérola. Depois, passou o tempo. Enquanto isso, me tornei bispo auxiliar de Buenos Aires. Um dia foi me visitar na casa episcopal o então arcebispo primaz de Uppsala. O Cardeal Quarracino não estava. Ele me convidou para ir à missa deles na Calle Azopardo, na Iglesia Nórdica de Buenos Aires, que antes era chamada de «Igreja sueca». A ele eu falei sobre Anders Ruuth, que depois voltou mais uma vez a Argentina para celebrar um matrimônio. Naquela ocasião nos revimos, e foi a última: um de seus dois filhos, o músico, o outro era médico, um dia me telefonou para dizer que ele tinha morrido.
Outro capítulo da minha relação com os luteranos diz respeito à Igreja da Dinamarca. Tive um bom relacionamento com o pastor de então, Albert Andersen, que agora se encontra nos Estados Unidos. Ele me convidou duas vezes para fazer uma pregação. A primeira era num contexto litúrgico. Naquela ocasião foi muito delicado: para evitar recriar constrangimento acerca da participação na comunhão, naquele dia não celebrou a missa, mas um batizado. Sucessivamente, me convidou para fazer uma conferência para os jovens. Lembro-me que com ele tive uma discussão muito forte à distância, quando ele estava já nos Estados Unidos. O pastor me repreendeu muito por causa do que eu disse sobre uma lei relativa aos problemas religiosos na Argentina. Mas digo que me repreendeu com honestidade e sinceridade, como um amigo verdadeiro. Quando voltou a Buenos Aires, fui pedir-lhe desculpas porque de fato a maneira como eu me expressei naquele caso foi um pouco ofensiva. Depois, eu tive uma grande proximidade com o Pastor David Calvo, argentino, da Igreja Evangélica Luterana Unida. Ele também era uma pessoa boa.
Lembro-me também que para o “Dia da Bíblia” que em Buenos Aires se celebrava no final de setembro, voltei à primeira igreja em que fui quando jovem, na Calle Esmeralda. Ali eu encontrei Mercedes García Bachmann. Tivemos uma conversa. Aquele foi o último encontro institucional que tive com os luteranos quando era arcebispo de Buenos Aires. Depois, eu continuei a me relacionar com amigos luteranos no âmbito pessoal. Mas o homem que fez muito bem à minha vida foi Anders Ruuth: penso nele com muito afeto e reconhecimento. Quando veio me encontrar aqui a Arcebispa primaz da Igreja da Suécia, falamos sobre aquela amizade entre nós dois. Recordo-me bem quando a Arcebispa Antje Jackelén veio aqui ao Vaticano, em maio de 2015, em visita oficial: fez um grande discurso. Eu a encontrei sucessivamente também por ocasião da canonização de Maria Elisabeth Hesselblad. Então eu pude saudar também o marido: são pessoas realmente amáveis. Depois, como Papa fui pregar na Igreja Luterana de Roma. Fiquei muito impressionado com as perguntas que me foram feitas então: a do menino e de uma senhora sobre a intercomunhão. Perguntas bonitas e profundas. O pastor daquela igreja é realmente bom!
Nos diálogos ecumênicos as diferentes comunidades deveriam tentar se enriquecer reciprocamente com o melhor de suas tradições. O que a Igreja Católica poderia aprender da tradição luterana?
Penso em duas palavras: «reforma» e «Escritura». Vou me explicar. A primeira é a palavra «reforma». No início, o de Lutero foi um gesto de reforma num momento difícil para a Igreja. Lutero queria curar uma situação complexa. Depois, este gesto, também por causa de situações políticas, pensemos também na cuius regio eius religio, se tornou um “estado” de separação, e não um processo de reforma de toda a Igreja, que era fundamental, porque a Igreja é semper reformanda. A segunda palavra é “Escritura”, a Palavra de Deus. Lutero fez um grande passo para colocar a Palavra de Deus nas mãos do povo. Reforma e Escritura são as duas coisas fundamentais que podemos aprofundar, olhando a tradição luterana. Penso nas Congregações Gerais antes do Conclave e quanto o pedido de uma reforma tenha sido vivo e presente em nossas discussões.”
Somente uma vez ante do senhor, um Papa visitou a Suécia, Joao Paulo II, em 1989. Aquele era um tempo de entusiasmo ecumênico e desejo profundo de unidade entre católicos e luteranos. Desde então, o movimento ecumênico parece ter perdido o vigor e novos obstáculos surgiram. Como deveria ser geridos estes obstáculos? Quais são, a seu ver, os meios melhores para promover a unidade dos cristãos?
Claramente cabe aos teólogos continuar a dialogar e estudar os problemas: sobre isso não tenho dúvidas. O diálogo teológico deve prosseguir, porque é um caminho a ser percorrido. Penso nos resultados que nesta estrada foram alcançados com o grande documento ecumênico sobre a justificação: foi um grande passo positivo. Certo, depois deste passo imagino que não será fácil ir adiante por causa das várias capacidades de compreender algumas questões teológicas. Perguntei ao Patriarca Bartolomeu se era verdade aquilo que se fala do Patriarca Atenágoras, ou seja, que teria dito a Paulo VI: “Nós vamos em frente e coloquemos os teólogos numa ilha para discutirem entre eles”. Me disse que é uma piada verdadeira. Mas sim, o diálogo teológico deve continuar, mesmo se não será fácil.
Pessoalmente, acredito que se deve mover o entusiasmo para a oração comum e as obras de misericórdia, ou seja, o trabalho feito em conjunto no sentido de ajudar os doentes, os pobres, os encarcerados. Fazer algo juntos é uma forma elevada e eficaz de diálogo. Penso também na educação. É importante trabalhar juntos e não de maneira sectária. Devemos ter claro um critério em qualquer caso: fazer proselitismo no campo eclesial é pecado. Bento XVI nos disse que a Igreja não cresce por proselitismo, mas por atração. O proselitismo é um comportamento pecaminoso. Seria como transformar a Igreja numa organização. Falar, rezar e trabalhar juntos: este é o caminho que devemos fazer. Veja, na unidade aquele que não erra nunca é o inimigo, o demônio. Quando os cristãos são perseguidos e mortos, são por serem cristãos e não porque são luteranos, calvinistas, anglicanos, católicos ou ortodoxos. Existe um ecumenismo de sangue.
Recordo-me de um episódio que vivi com o pároco da paróquia de Sankt Joseph em Wandsbek, Hamburgo. Ele levava adiante a causa dos mártires guilhotinados por Hitler, porque ensinavam o catecismo. Foram guilhotinados um atrás do outro. Depois dos dois primeiros, que eram católicos, foi morto um pastor luterano condenado pelo mesmo motivo. O sangue dos três se misturou. O pároco me disse que para ele era impossível continuar a causa de beatificação dos dois católicos sem inserir o luterano; o sangue deles foi misturado! Mas lembro-me também da homilia do Papa Paulo VI em Uganda, em 1964, que mencionava juntos, unidos, os mártires católicos e anglicanos.
Tive este pensamento quando eu também visitei Uganda. Isto acontece também em nossos dias: os ortodoxos, os mártires coptas mortos na Líbia. É o ecumenismo de sangue. Portanto, rezar juntos, trabalhar juntos e compreender o ecumenismo de sangue.
Uma das causas maiores de inquietude de nosso tempo é a difusão do terrorismo revestido de termos religiosos. O encontro de Assis acentuou também a importância do diálogo inter-religioso. Como o senhor viveu isso?
Havia todas as religiões que têm contato com Santo Egídio. Encontrei aqueles que Santo Egídio contatou: eu não escolhi quem encontrar. Mas eram muitos, e o encontro foi muito respeitoso e sem sincretismo. Todos juntos falamos de paz e pedimos a paz. Dissemos juntos palavras fortes para a paz que as religiões realmente querem. Não se pode fazer guerra em nome da religião, de Deus: é uma blasfêmia, é satânico. Hoje, recebi cerca de 400 pessoas que estavam em Nice e saudei as vítimas, os feridos, pessoas que perderam esposas ou maridos ou filhos. Aquele louco que cometeu a tragédia, a fez pensando de fazer em nome de Deus. Pobre homem! Era um desiquilibrado! Com caridade podemos dizer que era um desiquilibrado que procurou usar uma justificação em nome de Deus. Por isso, o encontro em Assis é muito importante”.
Mas o senhor recentemente falou também de outra forma de terrorismo, o das fofocas. Em que sentido e como ele pode ser vencido?
Sim, existe o terrorismo interno e subterrâneo que é um vício difícil de extirpar. Descrevo o vício das murmurações e das fofocas como uma forma de terrorismo: é uma forma de violência profunda que todos temos à disposição na alma e que requer uma conversão profunda. O problema desse terrorismo é que todos podemos colocá-lo em prática. Toda pessoa é capaz de se tornar terrorista usando simplesmente a língua. Não falo de brigas que se fazem abertamente, como as guerras. Falo de um terrorismo furtivo, escondido, que se faz jogando as palavras como “bombas” e que faz muito mal. A raiz desse terrorismo está no pecado original, e é uma forma de crime. É uma forma de ganhar espaço para si destruindo o outro. É necessário, portanto, uma profunda conversão do coração para vencer esta tentação, e é preciso se examinar muito neste ponto de vista. A espada mata muitas pessoas, porém mata muito mais a língua, diz o apóstolo Tiago no terceiro capítulo de sua carta. A língua é um pequeno membro, mas pode desenvolver um fogo do mal e incendiar toda a nossa vida. A língua pode se encher de veneno mortal. Este terrorismo é difícil de domar.
A religião pode ser uma bênção, mas também uma maldição. Os meios de comunicação muitas vezes trazem notícias de conflitos entre grupos religiosos no mundo. Algumas afirmam que o mundo seria mais pacífico se não houvesse religião. O que responde a esta crítica?
As idolatrias que estão na base de uma religião, não a religião! Existem idolatrias ligadas à religião: a idolatria do dinheiro, das inimizades, do espaço superior ao tempo, da concupiscência da territorialidade do espaço. Existe uma idolatria da conquista do espaço, do domínio, que ataca as religiões como um vírus maligno. A idolatria é uma religião falsa, é uma religiosidade errada. Eu a chamo “uma transcendência imanente”, ou seja, uma contradição. Ao invés, as religiões verdadeiras são o desenvolvimento da capacidade que tem um homem de se transcender rumo ao absoluto. O fenômeno religioso é transcendente e tem a ver com a verdade, a beleza, a bondade e a unidade. Se não há esta abertura, não há transcendência, não há religião verdadeira, existe idolatria. A abertura à transcendência não pode absolutamente ser causa de terrorismo, porque esta abertura está sempre unida à busca da verdade, da beleza, da bondade e da unidade.
O senhor muitas vezes falou em termos muito claros sobre situação terrível dos cristãos em algumas áreas do Oriente Médio. Existe ainda esperança por um desenvolvimento mais pacífico e humano para os cristãos naquela área?
Acredito que o Senhor não deixará o seu povo a si mesmo, não o abandonará. Quando lemos sobres as provações duras do povo de Israel na Bíblia fazemos memória as provações dos mártires, constatamos como o Senhor sempre veio em auxílio ao seu povo. Recordamos no Antigo Testamento a morte dos sete filhos com a sua mãe no Livro dos Macabeus ou o martírio de Eleazar. Certamente, o martírio é uma das formas da vida cristã. Recordamos São Policarpo e a carta à Igreja de Esmirna que nos fala sobre as circunstâncias de sua prisão e sua morte. Sim, neste momento o Oriente Médio é a terra dos mártires. Podemos sem dúvida falar de uma Síria mártir e martirizada. Quero citar uma recordação pessoa que ficou no coração: em Lesbos encontrei um pai com duas crianças. Ele me disse que era muito apaixonado por sua esposa. Ele era muçulmano e ela cristã. Quando chegaram os terroristas, quiseram que ela tirasse a cruz, mas ela não quis e eles a degolaram diante de seu marido e seus filhos. Ele me continuou dizendo: “Eu a amo tanto, a amo tanto”. Sim, ela é uma mártir, mas o cristão sabe que existe esperança. O sangue dos mártires é a semente dos cristãos: sabemos desde sempre.
O senhor é o primeiro Papa não europeu há mais de 1.200 anos, e muitas vezes salientou a vida da Igreja em regiões consideradas “periféricas” do mundo. Onde, segundo o senhor, a Igreja católica terá as suas comunidades mais vivas nos próximos 20 anos? E de que modo as Igrejas na Europa poderão contribuir para o catolicismo do futuro?
Esta é uma pergunta ligada ao espaço, à geografia. Eu tenho alergia de falar de espaços, mas digo sempre que das periferias se veem melhor as coisas do que do centro. A vivacidade das comunidades eclesiais não depende do espaço, da geografia, mas do espírito. É verdade que as Igrejas jovens têm um espírito mais fresco, e do outro lado, existem as Igrejas envelhecidas, Igrejas um pouco adormecidas, que parecem ser interessadas somente em conservar o seu espaço. Nestes casos, não digo que falta o espírito: existe sim, mas está fechado numa estrutura, numa maneira rígida, temorosa de perder o espaço. Nas Igrejas de alguns países se vê próprio que falta o frescor. Neste sentido, o frescor das periferias dá mais espaço ao espírito. É preciso evitar os efeitos de um mal envelhecimento das Igrejas. Faz bem reler o capítulo terceiro do Profeta Joel, ali onde diz que os idosos terão sonhos e que os jovens terão visões. Nos sonhos dos idosos existe a possibilidade de que os nossos jovens tenham novas visões, tenham novamente um futuro. Ao invés, as Igrejas às vezes são fechadas em programas, em programações. Eu admito: sei que são necessários, mas eu faço muita fadiga a colocar muita esperança nos organogramas. O espírito está pronto a impulsionar, a ir adiante. E o espírito se encontra na capacidade de sonhar e na capacidade de profetizar. Isto para mim é um desafio para toda a Igreja. E a união entre idosos e jovens é para mim o desafio do momento para a Igreja, o desafio para a sua capacidade de frescor. Por isso, em Cracóvia durante a Jornada Mundial da Juventude, recomendei aos jovens de conversar com os avós. A Igreja jovem rejuvenesce mais quando os jovens conversam com os idosos e quando os idosos sabem sonhar coisas grandes, porque isso faz com que os jovens profetizem. Se os jovens não profetizam falta respiro para a Igreja.
A sua visita à Suécia tocará um dos países mais secularizados no mundo. Boa parte de sua população não acredita em Deus, e a religião tem um papel um pouco modesto na vida pública e na sociedade. Segundo o Senhor, o que perde uma pessoa que não acredita em Deus?
“Não se trata de perder alguma coisa. Trata-se de não desenvolver adequadamente uma capacidade de transcendência. O caminho da transcendência dá lugar a Deus, e nisto são importantes também os pequenos passos, até mesmo o do ateu a ser agnóstico. O problema para mim é quando se fecha e se considera a própria vida perfeita em si mesma, portanto, fechada em si mesma, sem necessidade de uma transcendência radical. Mas para abrir aos outros a transcendência não é necessário fazer muitos discursos e palavras. Quem vive a transcendência é visível: é um testemunho vivo. No almoço que tive em Cracóvia com alguns jovens, um deles me perguntou: “O que deve dizer a um amigo meu que não acredita em Deus? Como faço para convertê-lo? Eu lhe respondi: “A última coisa que deve fazer é dizer alguma coisa. Aja! Viva! Depois, vendo a sua vida, o seu testemunho, talvez o outro irá perguntar por que você vive assim. Estou convencido de que quem não crer ou não procurar Deus talvez não sentiu a inquietude de um testemunho. Isso está muito ligado ao bem-estar. A inquietude se encontra dificilmente no bem-estar. Por isso, acredito que contra o ateísmo, ou seja, contra o fechamento à transcendência, valem realmente, somente a oração e o testemunho.”
Os católicos na Suécia são uma pequena minoria, e na maior parte composta por imigrantes de várias nações do mundo. O senhor se encontrará com alguns deles celebrando a Missa em Malmö em 1° de Novembro. Como vê o papel dos católicos numa cultura como a sueca?
“Vejo uma convivência saudável, onde cada um pode viver sua fé e expressar o seu testemunho, vivendo num espírito aberto e ecumênico. Não se pode ser católicos e sectários. Devemos nos esforçar para estar com os outros. “Católico” e “sectário” são duas palavras que se contradizem. É por isso que no início eu não previa celebrar uma missa para os católicos nesta viagem: Eu queria insistir num testemunho ecumênico. Depois eu refleti bem sobre o meu papel de pastor de um rebanho católico que chegará também dos países vizinhos, como a Noruega e a Dinamarca. Então, respondendo ao pedido fervoroso da comunidade católica, decidi celebrar uma missa, aumentando a viagem de um dia. Na verdade eu queria que a missa não fosse celebrada no mesmo dia e não no mesmo lugar do encontro ecumênico para evitar confundir os planos. O encontro ecumênico deve ser preservado em seu profundo significado, segundo um espírito de unidade, que é o meu. Isto criou problemas de organização, eu sei, porque eu estarei na Suécia também no Dia de Todos os Santos, que aqui em Roma é importante. Mas, a fim de evitar mal-entendidos, eu quis que fosse assim.”
O senhor é um jesuíta. Desde 1879, os jesuítas desempenharam suas atividades na Suécia nas paróquias, com exercícios espirituais, com a revista «Signum», e nos últimos 15 anos, graças ao Instituto universitário «Newman». Quais compromissos e quais valores deveria caracterizar o apostolado dos jesuítas hoje neste país?
Acredito que a primeira tarefa dos jesuítas na Suécia seja a de favorecer de toda forma o diálogo com aqueles que vivem na sociedade secularizada e com os não crentes: falar, partilhar, compreender e estar próximo. Depois, claramente é preciso favorecer o diálogo ecumênico. O modelo para os jesuítas suecos deve ser São Pedro Favre, que estava sempre a caminho e que foi guiado por um espírito bom, aberto. Os jesuítas não têm uma estrutura quieta. É preciso ter o coração inquieto e ter estruturas, sim, mas inquietas.
Quem é Jesus para Jorge Mario Bergoglio?
Jesus para mim é Aquele que me olhou com misericórdia e me salvou. A minha relação com Ele tem sempre este princípio e fundamento. Jesus deu sentido à minha vida aqui na terra, e esperança por uma vida futura. Com a misericórdia me olhou, me pegou, me colocou no caminho… E me deu uma graça importante: a vergonha. A minha vida espiritual está toda contida no capítulo 16 de Ezequiel. Especialmente nos versículos finais, quando o Senhor revela que iria estabelecer a sua aliança com Israel dizendo-lhe: “Saberás que eu sou o Senhor, a fim de que te lembres e te cubras de vergonha, e na tua humilhação já não tenhas disposição de falar, quando eu tiver perdoado tudo quanto fizeste”. A vergonha é positiva: nos faz agir, mas nos faz entender qual é o nosso lugar, quem somos, impedindo todo orgulho e vaidade.
Uma palavra final, Santo Padre, sobre esta viagem à Suécia
O que me vem naturalmente para acrescentar agora é simples: ir, caminhar juntos! Não permanecer fechados em perspectivas rígidas, porque nelas não há possibilidade de reforma.
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O Papa, Pe. Spadaro e eu passamos juntos cerca de uma hora e meia. No final, Francisco nos acompanhou até o elevador. Ele nos recomendou de rezar por ele. As portas se fecharam enquanto ele nos saudava com a mão e com um sorriso radiante que nunca me esquecerei.
Do lado de fora já estava escuro. A cúpula de São Pedro, iluminada, revelava o seu esplendor enquanto entrávamos no carro para voltar em tempo para o jantar na comunidade de La Civiltà Cattolica.
Fonte: Rádio Vaticano