Última vontade de Francisco às suas senhoras
Frei Almir Ribeiro Guimarães, OFM
Temos sempre em mente a comemoração dos oitocentos anos do começo da vida das Irmãs Pobres de São Damião que se dará em 2012. Temos acompanhado, neste site, as reflexões sólidas e bem fundamentadas de Irmã Chiara Giovanna Cremaschi em seu livro Chiara di Assisi. Un silenzio che grida (Ed. Porziuncula). A autora, à pagina 99, inaugura um novo capítulo ao qual dá o título de: Chiara nell’oscurità mentre s’avvicina il passagio di Francesco ( Clara na escuridão enquanto se aproxima a passagem de Francisco). Não estamos mais nos começos, talvez mais leves de São Damião. Clara carrega a cruz. Mas não desanima. Ela precisará aceitar uma regra diferente de seu espírito e pensa muito na eventual partida de Francisco para a terra dos vivos.
1. São Damião aceita a Forma vivendi de Hugolino – A fraternidade (ou a sororidade) de São Damião vivia muito simplesmente com umas poucas orientações dadas às irmãs por Francisco. Aos poucos vão surgindo mosteiros femininos novos em todos os cantos da Europa e a Santa Sé achou por bem dar uma certa unidade a todos esses novos espaços de contemplação. Vão se multiplicando os mosteiros pobres que aceitam a Forma vivendi de Hugolino. Cada vez mais aumenta a pressão para que a mãe das irmãs pobres também dê sua adesão a ela. A partir de documentos analisados nos últimos anos ficou claro que São Damião é contado entre os mosteiros que adotam a nova Forma, no final de 1225, ainda durante a vida de Francisco. Espontaneamente perguntamo-nos se Francisco estava de acordo com esta decisão. Lendo uma carta que, posteriormente, o cardial Hugolino escreveu a Inês de Praga pode-se dizer que sim (p. 99 do livro de C. Cremaschi). Nesse momento Clara acolhe formalmente a Regra de São Bento. Sem dúvida ela vai aprofundar-se no seu conhecimento, como demonstra o fato de que ela inserirá alguns de seus tópicos em sua Forma de vida. Deve-se ter presente, no entanto, o conteúdo desse grande documento espiritual que é a Regra de São Bento, não corresponde ao carisma de Clara, sobretudo no tocante à pobreza. Ora, para Clara o habitar corporalmente reclusa é uma dimensão inerente à escolha da vida contemplativa na qual Deus é o centro e seu único sentido de viver e à suprema pobreza abraçada como seguimento de Jesus Cristo. Relacionando-se com o Cristo pobre ela lhe dedica longas horas de dia e de noite além do tempo consagrado à oração litúrgica, Da oração ela haure riquezas espirituais. Clara não precisa de normas jurídicas para “permanecer no mesmo lugar” Ela sabe que esse “afastar-se” favorece a intimidade com o Amado, O estilo de vida radical abraçado por Clara na força do Amor vai além de qualquer dimensão jurídica. Sua obediência à Igreja faz com que aceite normas pormenorizadas que contrastam com seu espírito aberto, cheio de amor pelo Senhor e na correspondência das irmãs. A adesão à Forma vivendi hugoliniana exigirá que se faça algumas adaptações em São Damião, o que levou um certo tempo. Parece evidente que Clara seguiu a Forma vivendi à luz da Forma de vida que lhe tinha sido dada por Francisco, deixando-se guiar pelo espírito do Senhor.
2. A leitura da terceira carta a Inês de Praga nos faz saber que em São Damião, também a propósito do jejum, eram seguidas as determinações de Francisco e na as do bispo de Óstia. Estamos diante de personalidades muito diferentes: o Cardeal está preocupado em precisar tudo, dar indicações que, em grande parte – no tocante ao jejum e ao silêncio – se inspiram na tradição cisterciense da qual ele está muito próximo; Clara é contrária a minúcias, tem um espirito aberto e deixa espaço à ação do Espírito. Para viver a contemplação, numa entrega total nas mãos do Deus único, não se fazem necessárias tantas pequenas prescrições. A altíssima pobreza é a estrada que leva à comunhão vital com Cristo e com as irmãs. Quem ama cumpre a lei, lembra São Paulo (Rm 13,10). A resposta de Amor de Clara é muito maior do que aquilo que está contido nas prescrições jurídicas. Clara pode observar as normas que lhes são consignadas. Isto não impede de viver o que está em seu coração: o seguimento apaixonado e ardoroso do Cristo pobre. Encontramos novamente o equilíbrio que sempre a caracterizou: de um lado um grande respeito e veneração pelos ministros de Cristo e de outro lado a consciência indestrutível de seu particular chamamento no seio da Igreja. Clara encara a intervenções da Sé Apostólica com esses sentimentos, o que não exclui sofrimento interior e suplica ao Espirito Santo a luz que possa clarear um caminho muitas vezes cheio de trevas e de escuridão.
3. O momento da provação – Na vida da mãe das irmãs pobres é difícil descobrir momentos de escuridão nos quais a fé se mostra nua o horizonte parece escurecer a ponto de esconder o contorno das coisas e tornar impossível o caminhar. Em Clara tudo é tão luminoso, marcado continuamente com a presença do Esposo Jesus Cristo. Parecia que ela que estava antevendo o momento da mais dura provação em 1226 com a morte de Francisco. Alguns dados colhidos das biografias do Poverello e do Testamento de Clara permitem que imaginemos um grande sofrimento não somente físico, mas também moral e interior. De resto, a doença do corpo debilita também o espirito e o torna mesmos capaz de enfrentar as dificuldades Sem dúvida Clara não constitui exceção . Também para ela a eventualidade da perda de Francisco, ele que é nosso único consolo e sustento depois de Deus, é fonte de perturbação profunda, bem como de uma indizível dor. Os santos são criaturas de carne e osso que carregam em si a marca das limitações: fraqueza e grandeza ao mesmo tempo. O caminho dos santos não é diferente dos nossos, ou seja, marcado pela incerteza, dúvida e medo. O que os caracteriza é a plena aceitação da própria realidade na sua concretude, entregando-se ao Pai mesmo não compreendendo nada, certos de que não são onipotentes, de tudo podermos naquele que nos dá força (cf. Fl 4.,13), como disse São Paulo.
4. A mãe das irmãs pobres, sozinha em seu pobre leito, num momento em que a doença se agravava se dá conta que alguma coisa vai se perdendo. Ela espera que as linhas do projeto de vida traçado por Francisco para elas seja claramente definido e que os responsáveis pela Igreja o aceitem. Além disse a possível perda do pai, irmão e amigo perturba o coração para além de tudo o que se possa pensar. Uma outra eventualidade, nada hipotética, assalta Clara: ela pode morrer antes de Francisco sem poder revê-lo ainda uma vez. Os pensamentos desta mulher de pouco mais de trinta anos vive na plenitude de sua feminilidade, são límpidos e transparentes. Ela estima profundamente a Francisco e não esconde esse bem querer.
5. Podemos dizer que a plantinha de São Francisco vive a sua sexta-feira santa da maneira mais crua. Encontra-se sob a cruz. Experimenta o abandono e a solidão, a incerteza com respeito ao amanhã, a possiblidade de deixar as irmãs que Des lhe havia dado privadas de sua presença e também da presença do Poverello. Que havermos de dizer mais? Acrescentemos somente que a filha dos Favarone tem medo de sua própria fragilidade. Não estamos diante de um problema de linguagem, ou a esse costume de ver na mulher o sexo frágil, mas diante da experiência i concreta de falta de forças físicas, a tal ponto que coloca a nu a pequenez da criatura. Pensamos não nos enganar ao afirmar que a consciência da gratuidade dos dons de Deus, o sentir-se amada pelo Pai celeste com a ternura de uma mãe, o estar como uma criança nas mãos desse mesmo Pai foram amadurecendo em Clara através da morte a si mesma e de todo apoio humano. Nos meses dolorosos deste longo calvário, Clara recebe notícias de Francisco através dos frades. que por sua vez contam ao Pai os sofrimentos de Clara e das irmãs. Estamos diante de uma teia de relacionamentos humaníssimos em que a dor e o amor têm seu semblante mais autêntico. Os dois não temem manifestar-se, porque o Filho de Deus vindo à nossa terra quis tudo assumir em si, vivendo tudo no seu coração e no seu corpo de carne. A vida em Cristo comporta a plena acolhida do mistério da encarnação que reveste de grandeza e dignidade tudo aquilo que é plenamente humano. Assim, na última semana de vida do Poverello, a sua plantinha chorava com alma amarga e não tinha consolação porque não podia ver antes de sua morte o seu único Pai depois de Deus… E através de um frade comunicou esta sua ansiedade. Belíssimo ver sua reação de Francisco: como a amasse com paternal afeto – a ela e suas irmãs – pelo santo modo de vida delas moveu-se de piedade, mormente porque com a cooperação do Senhor haviam se convertido ao Senhor pelas suas admoestações. (Compilação de Assis, 13). O Amor pelo seu Deus que o plenifica totalmente não distancia esse homem até o fim de seus dias dos irmãos e das irmãs. No Amor os ama mais intensa e livremente