Tema do amor seráfico
Nossa reflexão continua se apoiando no texto sólido de Philip Blaine, OFMConv. Santa Chiara: Guida spirituale alla vita francecana (Miscellanea Francecana, 1992, I-II, p. 376-426). Teceremos considerações a respeito do tema do amor seráfico na espiritualidade de Clara.
1. Um aspecto particular do tema do desejo de união com Cristo Esposo é o do amor seráfico. O amor de Francisco por Cristo, devido à sua particular intensidade, foi qualificado de seráfico no Prólogo da Legenda Maior de Boaventura, e mais no capítulo XIII, 3. Francisco exprimiu sua experiência mística numa linguagem de intenso amor, apaixonado e por meio do desejo de união com Cristo. Clara toma de Francisco várias expressões para significar esse amor semelhante ao dos serafins que adoram ardorosamente o Senhor. Amor ardente, abrasado. Pensamos nas brasas do profeta Isaías no templo. O amor seráfico para Francisco pode ser descrito como um grito ardente, ou melhor, um desejo gritado de união com Cristo, único objeto de seu desejo. Clara é Mestra perita que orienta na linha da conversão do desejo, rumo à pureza do coração que, em outras palavras, não quer dizer outra coisa senão ganhar distância de tudo para amar Cristo sobre todas as coisas. O amor seráfico se reveste de um cunho de inteireza e de ardor.
2. “Fez um pacto tão forte com a santa pobreza, tanto amor lhe consagrou que nada queria possuir nem permitiu que suas filhas possuíssem, senão o Cristo Senhor. Achava que a preciosíssima pérola do desejo do céu, que comprara depois de vender tudo, não podia coexistir com a preocupação devoradora dos bens temporais” (Legenda de Santa Clara, 13).
3. Pobreza e humildade, nesse contexto do amor seráfico, são vistas como meios que libertam para o voo na direção do amor seráfico. São os meios necessários para que Inês, desprendida de tudo o que poderia impedir esta união, venha a se tornar “leve” e, desta forma, parecida com os anjos, em condições assim de voar para a união esponsal, união sempre mais íntima e profunda com Cristo.
4. Tema comum na literatura da Idade Média nessa época era o da comparação entre a vida monástica e a vida angélica. Nos textos medievais encontra-se com frequência o simbolismo do voo que normalmente se apoia no salmo 55: “Quem me dará asas como a pomba para voar e encontrar repouso?” Estas imagens eram comuns na literatura monástica da Idade Média, principalmente devido à importância dada por São Gregório e São Bernardo às imagens do peso e do voo que vence qualquer peso.
5. Com um linguajar típico da mística, Clara exprime a urgência do amor seráfico: “Em rápida corrida, com passo ligeiro e pé seguro, de modo que seus passos nem recolham a poeira, confiante e alegre, avance com cuidado pelo caminho da bem-aventurança. Não confie em ninguém, não consinta em nada que queira afastá-la desse propósito, nada que seja tropeço no caminho para não cumprir seus votos ao Altíssimo na perfeição em que o Espírito Santo a chamou” (2Carta,12-14).
6. A urgência apaixonada do amor seráfico de Clara e o desejo da união com o Cristo são talvez explicitados mais claramente nas exortações a Inês, inspiradas no Cântico dos Cânticos. Clara cita o livro bíblico ao menos três vezes, nesse trecho: “Tomara que você se inflame cada vez mais no ardor da caridade, ó Rainha do rei celeste! Além disso, contemplando suas indizíveis delícias, riquezas e honras perpétuas, proclame suspirando com tamanho desejo do coração e tanto amor; Arrasta-me atrás de ti! Corramos no ardor de teus bálsamos (Ct 1,3), ó esposo celeste! Vou correr sem desfalecer, até me introduzires na tua adega (Ct 2,4), até que a tua esquerda esteja sob a minha cabeça, sua direita me abrace (Ct 2,6) toda feliz e me dês o beijo mais feliz de tua boca (Ct 1,1)” (4Carta 27,32). Deve-se dizer que o livro do Cântico dos Cânticos foi o mais comentado nos mosteiros medievais. O comentário monástico tem como característica mostrar o relacionamento de Deus com cada alma, a presença de Cristo na alma, a união espiritual que se realiza na caridade. Por que essa preferência pelo Cântico do Cânticos nos mosteiros medievais? Basta mencionar o fato de que aqueles que se consagram à vida monástica são pessoas dedicadas à vida de oração e isso bastaria para explicar a preferência. O que encontramos de especial no Cântico é a expressão do desejo de Deus. O Cântico é um poema desse empenho que constitui o programa da vida monástica: quaerere Deum; buscar a Deus, uma busca que se realizará totalmente na eternidade mas que já se realiza no aqui e no agora na esfera do desejo. O Cântico é diálogo do esposo com a esposa que se aproximam, se buscam… pensam estar próximos… mas sabem que somente na eternidade estarão completamente unidos e por isso vivem do desejo. O Cântico é um texto contemplativo: theoricus sermo, como dirá São Bernardo. Não tem caráter pastoral, não ensina moral, não prescreve obras a serem realizadas, nem preceitos a serem observados, nem dá conselhos de sabedoria. Esse diálogo inflamado, diálogo que exprime admiração, faz com que ele, mais do que outro livro da Sagrada Escritura, ajude na contemplação amorosa e desinteressada. Podemos dizer que o Cântico é o livro da contemplação e do amor seráfico.
Frei Almir Ribeiro Guimarães