Silêncio e contemplação em Clara de Assis
Na esteira da comemoração dos oitocentos anos do carisma clariano, continuamos a refletir sobre a figura ímpar desta notável fundadora de um estilo original de vida evangélica e contemplativa na Igreja. Apoiados no texto da Irmã Angela Emmanuela Scandella, OSC, Chiara ‘Alta donna di contemplazione’, Sette parole per il nostro ‘oggi’, in Italia Francescana 2012/1, p. 17ss, vamos refletir sobre o silêncio e a contemplação. Limitar-nos-emos a citar os elementos evidenciados pela autora.
Silêncio
Pensar em Clara é pensar numa mulher envolvida pelo silêncio, não um silêncio ritual e forçado, mas buscado, cultivado, alimentado. Pode-se dizer que ela foi “habitada pelo silêncio”. Não podemos deixar de pensar, é claro, no silêncio exterior amplamente documentado pelas Fontes, mas, sobretudo, pensamos naquele silêncio interior, feito de solidão e de escuta, tecido do harmonioso equilíbrio entre o silêncio e a palavra. Bento XVI em sua Mensagem para a Jornada Mundial da Comunicação Social (2012), recordando uma homilia sua de 2006, dizia: “Na loquacidade de nosso tempo, na inflação das palavras, urge tornar presente a Palavra, a Palavra que vem de Deus, a Palavra que é Deus”. Isto só é possível com uma purificação de nosso pensar. Será urgente um trabalho de burilar nossas palavras. Necessitamos de um silêncio que se torne contemplação. Ora, a vida de silêncio das Irmãs Pobres de São Damião tinha, e tem, essa finalidade: permitir que o Deus-Palavra possa dirigir-se ao fundo do coração dos que o ouvem. Não se trata, como foi dito, de um mero silêncio exterior, mas desta organização existencial de tal sorte que as antenas mais profundas da pessoa não estejam ligadas a coisas, por vezes, tão desnecessárias, tão “desarrumadoras” da paz interior. O silêncio exterior ajuda à amada do Amado a não se “distrair”. Respirando em casa um clima de recolhimento exterior, o coração começa a viver harmonia que é terra mais propícia para a contemplação.
Michel Hubaut, refletindo sobre o tema do silêncio interior, lembra que quem quer fazer silêncio para ouvir a Deus e unificar sua existência, aprende a descer até o deserto interior de seu coração, onde o Espírito marca encontro. Aos poucos, o ouvinte do silêncio vai se dessolidarizando do que é fugaz e sem valor verdadeiro. Não despreza nada, mas tudo relativiza. Os santos “profundamente presentes à vida de seus contemporâneos são cidadãos de uma pátria invisível, mais real, no entanto, que qualquer realidade humana. A experiência nos leva a dizer que somente a graça de Deus pode fazer da solidão um espaço de silêncio interior que abre a fechadura da vida íntima do homem onde o Espírito murmura e Deus fala”.
Contemplação
Mais uma palavra de Clara para os tempos de ontem e de hoje: vida contemplativa como vigília, uma longa vigília que dura a vida inteira, esperando aquele que está para vir, esse alguém que feito de desejo, deixando ressoar em nós o desejo por ele como eco de seu desejo por nós.
Entrelaçam-se aqui os temas da vigília, do desejo que desemboca num estado de vida contemplativo. As Fontes fazem alusão às vigílias noturnas de Clara, longas vigílias, longas e solitárias “vigilante e incansável” segundo a Legenda (n. 19), para recolher o veio do sussurro furtivo (cf Jó 4, 12) que Gregório Magno interpreta como o falar do Espírito. “É a experiência da presença e da ação do Espírito que, em nós, nada mais faz do que repetir, desde o dia de nosso Batismo, aquele Verbum absconditum, para mencionar ainda aquele versículo de Jó, Verbum que é Jesus Cristo”. Silêncio, Verbum e contemplação. A Legenda continua: Clara “parecia sempre ter o seu Jesus entre as mãos”, porque o Senhor é Espírito, recorda São Paulo (2Cor 3,17). Trata-se do tema dos esponsórios que Francisco aborda na Carta aos Fieis (1, 5-8). A experiência espiritual de Clara é uma viva exegese de Francisco. Deus em nós pela presença e ação do Espírito. Não se trata de uma atualíssima palavra para nós que vivemos derramados nas coisas como que vivendo exilados de Deus? Irmã Angela escreve: “Nossos mosteiros, com sua pobreza e fragilidade, continuam sendo aquelas casas (domus), mesmo deterioradas, mas consagradas à interioridade. Lugares em que restaurando o coração se restaura, tenaz e humildemente, a Igreja, a Domus Dei em ruína”. Bento XVI, em visita às clarissas por ocasião de sua visita a Assis, em 17 de junho de 2007, dizia: “Vós nos precedeis no caminho da conversão”. Quando a conversão é verdadeira, não faz barulho. Muitas vezes faz sorrir que certamente é mais proveitoso do que ficar choramingando pelas contrariedades de cada dia. A ação do Espírito do Senhor purifica, ilumina, transforma e aponta os passos a serem seguidos para que seja bem percorrido o caminho da conversão. Aqui ainda uma palavra atual e para o hoje: uma vida que se enfrenta o risco de expor-se a Deus numa cultura que não quer correr risco.
Frei Almir Ribeiro Guimarães