Carisma - Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil - OFM

São Francisco e o Sultão – V

O que Francisco pensava realmente da Cruzada?

Estamos sempre sendo conduzidos por André Vauchez, grande historiador medievalista, para compreender o alcance da visita de Francisco ao Sultão.


♦ O modo de Francisco ver o Sultão, pelo que se percebe das fontes contemporâneas, é um convite a que reconsideremos o seu modo de ver a Cruzada. Nesses últimos anos, muitas vezes mostrou-se a oposição que existia entre a atitude violenta e intransigente do Papado que, com Inocêncio III e seus sucessores, via o Islã, antes de tudo, uma ameaça para a cristandade – e não havia outro objetivo senão o de quebrar seu poderio pelo recurso à Cruzada – e a postura do Pobre de Assis, partidário da missão e do diálogo pacífico com os muçulmanos.

♦ Esta tese se fundamenta, de modo particular, na “Vida segunda” de Celano, onde Francisco se esforça por dissuadir os critãos do ataque contra Damieta que aconteceu em 29 de agosto de 1219 e que se constituiu num sangrento fracasso. No relato do hagiógrafo, este exemplo visava, antes de tudo, ilustrar o espírito de profecia do santo que havia previsto a derrota se partissem para o ataque naquele dia e nada mais do que isso. Seria incongruente ver aí uma oposição de princípio de sua parte quanto ao uso das armas contra os infiéis. “Foi tal o desastre, que o exército perdeu seis mil homens, entre mortos e prisioneiros. Confrangeu-se o santo com tão triste sorte, e eles não menos arrependidos de não o terem ouvido. Lamentava, sobretudo, os espanhóis que poucos haviam escapado, por terem se dado à luta com maior denodo”.(2Cel 30). Francisco não era, a priori, um adversário da Cruzada não fosse ao menos pelo fato de que ela era uma iniciativa da Igreja, promovida pelo Papado ao qual os Frades Menores se sentiam intimamente unidos desde sua origem. Não podemos esquecer que ele não hesitava em exaltar diante de seus companheiros a lembrança mítica do “imperador Carlos, Rolando e Olivério, santos mártires que morreram combatendo pela fé” (Legenda Perusina 72).

♦ Não se há de esquecer por fim que, no espírito dos cristãos daquele tempo, a Cruzada não era como se imagina muitas vezes em nossos dias – uma guerra de religião ou algo como uma expedição “colonialista”, mas antes de tudo uma peregrinação armada cuja finalidade era a defesa ou reconquista dos lugares santos, um novo êxodo do Povo de Deus em marcha rumo à Terra prometida e à cidade santa de Jerusalém, onde deveria acontecer a conversão dos infiéis e a reconciliação com gênero humano na aproximação do reino de paz do Messias. Francisco não recusava a Cruzada. Foi descobrindo seu sentido profundo que era uma busca de fraternidade entre os cristãos do ocidente e do oriente, na qual muçulmanos e judeus poderiam encontrar seu lugar. O judaísmo e mesmo o Islã aparecem aos clérigos do começo do século XIII não tanto como religiões concorrentes, com revelações imperfeitas e específicas, mas etapas rumo à religião universal que era o cristianismo. Longe de tentarem simplesmente combater os “infiéis”, procuravam antes convertê-los para o que, segundo eles era verdadeira fé, como atestam muitas bulas pontifícias do começo do século XIII, onde pela primeira vez aparece uma orientação que aponta para um proselitismo que converte. Esse mesmo tom encontramos na carta dirigida a Al-Kamil por Olivier de Paderborn, depois do fracasso da Cruzada, onde este clérigo alemão acentua os pontos do acordo que existia entre o Islã e o cristianismo e pede ao Sultão que ao menos conceda o livre acesso dos peregrinos cristãos a Jerusalém. Nesta perspectiva, a Cruzada era, antes de tudo, um meio de obrigar o Islã a ouvir a mensagem dos cristãos em lugar de eliminar imediatamente os que contestavam seus fundamentos.

♦ A pregação missionária de Francisco não se apresenta como uma alternativa à empreitada militar lançada pela Papado contra o Islã, mas se desenvolve em lógica paralela. Indiscutivelmente, o fundador dos Menores pertence à coalisão dos cruzados e participa do grupo em nível emocional dos sucessos e insucessos do exército cristão. Mas sem nenhum angelismo, ele parece ter procurado compensar, por seu testemunho pessoal, a imagem negativa do cristianismo que o recurso à violência podia dar aos muçulmanos. A um relacionamento de força que podia ser inevitável a um dado momento em caso limite procurou substituir um testemunho de fraqueza e de submissão – quem sabe levado, talvez, até o martírio – que se dirigia tanto aos pagãos quanto aos cristãos convidando que voltassem para o Deus todo poderoso que era reinvindicação dos dois campos que se hostilizavam. A seu modo de ver não havia contradição entre a busca do martírio e o desejo de converter os infiéis, como entre Cruzada e missão. Como bem se deu conta G. K. Chesterton, o Pobre de Assis “abordou a questão de maneira muito pessoal e peculiar, mas era essa a maneira com que ele lidava com quase tudo. Era de certo modo uma ideia simples, assim como a maioria de suas ideias eram simples. Mas não era um ideia tola; havia muita coisa a dizer a favor dela e ela podia ter dado certo. Era simplesmente a ideia de que era melhor ser cristãos do que destruir muçulmanos”.

♦ Parece ter se produzido uma evolução em Francisco depois de seu encontro com o Sultão Al-Kamil. Damieta fora finalmente tomada pelos cruzados a 5 de novembro de 1219. Uma conquista tão esperada foi acompanhada de massacres e atos de extrema violência. Dando crédito ao autor do Heraclito, que foi testemunha dos fatos, Francisco “viu o mal e o pecado que começavam a crescer entre as pessoas das tropas, o que lhe desagradou. Partiu e foi diretamente para a Síria antes voltar para seu país”.

♦ Profundamente contrariado com o comportamento de seus correligionários, distante daquilo que deveria ser a seus olhos o comportamento de “cavaleiro de Cristo”, ele preferiu tomar distância do que evoluía numa ideia diferente daquilo que considerava a finalidade de Cruzada. É mesmo provável que depois dos acontecimentos não tenha ido a Jerusalém – o Papa havia proibido aos cristãos de propiciar recursos financeiros aos sarracenos já que cobravam taxas dos peregrinos – mas de ter passado algum tempo com os seus confrades no que restava dos Estados latinos. Sem dúvida, esta permanência na Terra Santa e as boas recordações que Francisco havia deixado aos muçulmanos explicam o fato de que os Frades Menores foram, em 1333 – os primeiros, e por longo tempo – os únicos religiosos latinos autorizados pelo Sultão a voltar a Jerusalém e aos quais foi confiado, a pedido do rei de Nápoles, Roberto d’Anjou, a guarda de alguns lugares cristãos e que conservam até nossos dias.

(Fim)

Frei Almir Guimarães

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