Carisma - Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil - OFM

São Francisco e o Sultão – II

II. O sonho de Francisco se realiza

Continuamos a transcrever, em tradução e adaptação, as reflexões de André Vauchez, a respeito da estadia de Francisco nas terras muçulmanas e junto ao Sultão, em sua obra “François d’Assise”, Fayard, Paris, p. 135-154.

>> Em 1219, finalmente Francisco consegue realizar seu sonho: partindo de Ancona no mês de junho com Pedro Cattani aporta em São João d’Acre onde encontra Frei Elias e seus companheiros que Já se encontravam lá. A partir daí, fim de julho ou começo de agosto, chega a Damieta, porto importante, situado no delta do Nilo que estava ocupado pelas tropas dos cruzados. No dia 12 de abril, com efeito, Inocêncio III, edita a bula Quia maior por meio da qual convidava os prelados da Igreja a se reunirem em Concílio em Roma. No ano de 1215, havia lançado forte apelo aos cristãos do Ocidente pela Cruzada. Depois de ter traçado um perfil bastante sombrio do fundador do Islã, anunciava a derrota definitiva e última dos sarracenos:

Um filho da perdição, o pseudo-profeta Maomé se levantou. Por meio de incitações terrestres e prazeres carnais, fez com que muitos se desviassem da verdade. Sua perfídia durou até nossos dias. Temos fé em Deus de que o fim da Besta está próximo. O número (da Besta) segundo o Apocalipse de João, é 666 sendo que já se transcorreram certa de seiscentos anos (citação do autor Tolan).

>> A iniciativa da nova Cruzada – a quinta segundo a lista tradicional – deve-se ao sucesso da grande vitória dos reis de Castela e Aragão expulsando de suas terras os adversários muçulmanos do sul da Espanha, com exceção da parte extrema que iria se constituir no reino de Granada.

>> Diante do clima de exaltação e de euforia, criado por este sucesso, o Papa, sem dúvida, teve a impressão que era o momento de dar o golpe mortal e decisivo. Tomou, então, todas as providências para que o empreendimento fosse bem sucedido: organização de uma Cruzada para reconquistar Jerusalém tomada dos cristãos por Saladino em 1187; restrições legais atingindo os muçulmanos e judeus vivendo em terra cristã para melhor distingui-los dos fiéis e colocar este últimos ao abrigo de sua influência; estrita limitação de relacionamentos, a começar pelo campo sexual, com os “blasfemadores de Cristo”, etc. Parte desse programa foi implementada por ocasião do Concilio do Latrão IV, em particular por meio do cânon Ad liberandum que previa uma mobilização de três anos, acompanhada de uma trégua de Deus colocando fim às guerras no interior da cristandade, tudo para preparar a nova Cruzada e que ela tivesse êxito. A Igreja convocou todos os cristãos em idade de portar armas a participarem da Cruzada em razão da fidelidade que deviam ao Cristo humilhado e ultrajado pela perda da Terra Santa. Depois da morte de Inocêncio III este projeto foi retomado por seu sucessor Honório III (1216-1227) e um frota transportando alguns milhares de cruzados deixou a Itália rumo ao Egito, na primavera de 1218. A finalidade prevista para a expedição era tomada de Damieta, principal porto de escoamento econômico do Egito no Mediterrâneo. As tropas desembarcaram na cidade a 29 de maio, quando o sultão “ayyûbide” Al-Malik Al-Kamil (o rei perfeito), sobrinho de Saladino, acabava de suceder seu pai Al-Adil. A tomada da cidade, feita sem as previsões e medidas necessárias, não se concluía. Os combates se arrastavam. O novo Sultão, por sua vez, inexperiente, não soube aproveitar a falta de habilidade dos Cruzados. Os participantes da Cruzada ignoravam tudo a respeito do país e viviam se desgastando em vãs querelas, de modo particular depois da chegada de um legado pontifício, o cardeal espanhol Pelágio que interferia em tudo, semeando a cizânia no campo cristão.

>> É nesse contexto que se situa a chegada de Francisco de Assis em Damieta, ao longo do verão de 1019. Sua presença nesse lugar, durante vários meses e sua tentativa de converter o Sultão à fé cristã são fatos solidamente atestados. Todos os hagiógrafos, desde Tomás de Celano que escreveu sua Vida em 1228-1229, pouco depois de sua morte, até Boaventura de Bagnoregio, autor, no começo dos anos 1260, da Legenda Maior, o atestam. Há também outros testemunhos exteriores à Ordem franciscana: o mais antigo é do prelado francês Tiago de Vitry, bispo de São João d’Acre, desde 1216 e que participou da Cruzada e menciona a presença de Francisco em Damieta, em dois de seus escritos: uma carta que endereçou do Egito, em 1220, a Honório III e uma passagem de sua História ocidental, redigida em Acre, na qual demoradamente escreve sobre os primórdios dos Frades Menores. Mencionemos ainda, duas crônicas de origem leiga que, redigidas na Terra Santa pouco depois dos acontecimentos, aportam complementos importantes: crônica de Ernoul, escudeiro de Belian II de Ibelin, que deixou um relato em francês da terceira à quinta Cruzada e continuando a crônica latina de Guilherme de Tyr. Este texto nos chegou com o trabalho e resumo de Bernardo, o Tesoureiro ( 1227-1229); um pouco mais tarde, em torno de 1229-1231, o autor anônimo da Legenda de Heráclio fornece informações preciosas sobre o encontro de Francisco com o Sultão. Atribui o fracasso final da quinta Cruzada aos pecados do cruzados. O testemunho desses cronistas, que pertenciam ao círculo de João de Brienne, rei de Jerusalém, presente em Damieta, em 1219, é extremamente precioso já que estavam muito bem informados em questões relativas ao além mar e às Cruzadas e que consideraram o gesto de Francisco uma loucura, porque a seus olhos não era possível acordo entre a Cristandade e o Islã. Por isso tudo, mesmo havendo contradições entre os documentos não se pode negar que Francisco lá esteve.

>> Quais os objetivos de Francisco quando desembarcou em Damieta e o que fez ele durante os meses em que passou diante da cidade sitiada entre julho-agosto e novembro de 1219? Certamente nunca passou por sua cabeça associar-se à Cruzada na qualidade de combatente. Seu estado de vida de religioso o impedia de pegar em armas e nada estava tão longe de seu estilo de vida, avesso a toda forma de violência, nem como capelão militar. Pode-se dizer que naquele contexto ele via uma ocasião de colocar à prova o ideal evangélico dos Frades Menores. De fato, Tiago de Vitry lamenta amargamente, em sua carta de 1220 ao Papa que vários membros de seu relacionamento, tanto clérigos como leigos, fascinados pela personalidade e exemplo de Francisco, o abandonaram durante o cerco de Damieta para seguir o Poverello e entrar em sua Ordem. Logo que chegou, Francisco se deu conta que a situação estava bloqueada no plano militar e que as armas não levariam a nada. O cerco da cidade já durava mais de um ano sem grandes resultados e uma ofensiva lançada pelos cruzados em 29 de agosto de 1219 contra as tropas do Sultão redundaram num fracasso sanguinolento. Foi neste momento que Francisco, aproveitando-se de uma trégua deixou o acampamento cristão e foi para o campo adversário com um único companheiro, Frei Iluminado de Rieti depois de ter comunicado ao legado Pelágio que lhe recusou todo salvo-conduto e não deixou de manifestar a desaprovação pelo que estava pretendendo fazer.

>> Francisco teria gritado: “Sudam, sudam” (sultão, sultão) ao aproximar-se das fileiras dos inimigos. Foi preso pelos soldados egípcios que o conduziram a seu mestre. Nenhuma das fontes da época afirma que tenha sido objeto de violências. Na realidade o fato em si não tem nada tão incrível porque este cristão por ser alguém que estivesse renegando sua fé e quisesse mudar de campo de batalha ou de religião, ou um emissário dos cruzados encarregado de uma mensagem diplomáticas.

(continua)

FREI ALMIR GUIMARÃES 


Imagem: Cornelis Claesz, Assalto a Damieta; óleo sobre tela, c. 1625; foto Wikimedia Commons

Leia também:

Francisco e o Sultão – I

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