Santa Clara em quatro tempos – III
Continuamos a nos encantar com a biografia viva e poética de Clara feita por Felix Timmermans.
Terceiro tempo:
Clara foge de casa e se entrega ao Senhor
Num vestido de seda branco, Clara velava na escuridão de seu quarto, ajoelhada no genuflexório. Ela não rezava, estava ansiosa e atenta à noite, mas não se ouvia ruído algum. Na ponta dos pés ela se aproximou da janela. Jamais tinha visto tantas estrelas. Depois de um longo tempo surgiu uma meia-lua sobre o vale. Na densa escuridão, ela procurava distinguir o bosque, mas nada conseguia ver. Então uma luzinha movimentava-se lá embaixo: devia ser no bosque. Seu coração começou a palpitar fortemente. Pôs-se à escuta. Ela percebeu que, mesmo sem corrente de ar a porta se abriu. Às apalpadelas, ela se aproximou e pegou na mão estendida que a procurava. Era a mão tremula de sua tia.
No meio da escuridão, elas desceram os degraus das escadas de pedra e chegaram ao jardim. A tia envolveu Clara num manto e a conduziu lá para baixo, pelo gramado, chegando até onde havia um pequeno portão, que muitos anos não era usado. Na tênue luz das estrelas podia-se vislumbrar o bosque, pedras cobertas de musgo e uma estátua de Vênus quebrada misturada com a herva. A tia prudentemente se apressou a preparar o caminho.
“Se o portão não se abrir”, sussurrou Clara, “eu pulo o muro”! De repente, apoderou-se dela grande ansiedade. Parecia que todos de sua casa e toda Assis vinham atrás dela para trazê-la de volta.
Contudo, a tia, arrastando para o lado mais algumas pedras, com um empurrão abriu o portão. O vale estava a seus pés, iluminado pela tênue luz da lua. Caminharam por uma trilha estreita semeada de grandes pedras e então chegaram a uma estrada larga. Nesse momento, a tia sentiu-se perturbada. “E seu pai?”, sussurrou ela angustiada. “Ele vai me matar!” “Vamos rezar”, disse Clara.
Foram caminhando ao lado de um riacho e no alto viram mover-se uma luz, mais uma, e mais outra, enfim uma dezena.
“Os irmãos”, disse Clara.
Eles foram se aproximando cada vez mais e, no meio deles, o pequeno Francisco. Clara se deteve e inclinou a cabeça.
“Deus seja louvado que você chegou, Irmã”, disse Francisco. Juntas, e ladeadas pelos irmãos, elas foram caminhando silenciosamente pela mata adentro.
Felix Timmermans
A harpa de São Francisco
Vozes, p. 168-171
(continua)