Frei Almir comenta a Regra para os eremitérios
Frei Almir Guimarães
De religiosa habitatione in eremo
Diante de meus olhos, um espesso volume com o título de Storia e teologia dell’esperienza spirituale di Franceso d’Assisi (504 páginas) de Cesare Vaiani, frade menor, professor de teologia espiritual e de história da espiritualidade medieval em faculdades da Itália Setentrional, autor de sólidas e numerosas obras de cunho cientifico a respeito de São Francisco, autoridade inquestionável na compreensão das Fontes Franciscanas. Era (ou continua sendo) animador espiritual de duas fraternidades franciscanas em Milão. Apoiamo-nos fortemente em seu estudo para fazer estas reflexões sobre a Regra para os Eremitérios de São Francisco.
A vida da Fraternitas, em suas origens, fora marcada por intensa prática de oração, que se alternava com tempos de trabalho. Seria expressão desse ficar nas igrejas de boa vontade de que fala o Testamento. Ao lado do ritmo ordinário de oração foram sendo acrescentados, provavelmente desde as origens, momentos de isolamento ou períodos dedicados a uma oração mais intensa em lugares caracterizados pelo silêncio e propícios para a contemplação. A Regra não bulada alude aos eremitérios e outros lugares que podiam ser frequentados pelos irmãos, nunca porém como proprietários (Rnb 7,13). Na Carta ao um Ministro encontramos também menção ao eremitério. O ministro em questão deverá antepor a uma eventual vida no eremitério o cuidado com o irmão de temperamento difícil. Importante é administrar as dificuldades com o frade que lhe causava dificuldade e não buscar o eremitério.
Segundo Esser e Paolazzi, a elaboração desse texto que Francisco consagra à vida eremítica situa-se entre os anos 1217/18 e 1221, levando-se em consideração que, no período de 1219/1220, o Poverello esteve nas terras do Oriente. O pequeno escrito deve ter sido composto pouco antes ou pouco depois destas datas. Pode-se supor que já no período precedente a experiência eremítica tenha sido vivida por Francisco e pela primitiva Fraternitas. Em 1211, em São Damião, Clara e suas irmãs viviam uma forma de vida retirada, parecida, em certos aspectos, com a Regra para os Eremitérios. Há uma semelhança entre a vida das irmãs e as determinações da Regra em questão: uma vida vivida em fraternidade, marcada pela recitação das horas litúrgicas num espaço de “clausura” limitando o contato com o mundo circunstante. Na ausência de argumentos externos que possibilitem colocar em paralelo os dois textos, fica valendo a autoridade do argumento interno. Assim talvez se pudesse antecipar a datação da Regra para aos Eremitérios. Não se pode esquecer, no entanto, o destaque dado ao ministros. Esse termo ganha força pelos anos 1217. Assim, o texto que estudamos pode ser anterior à viagem de Francisco ao Oriente e codificar uma experiência que já era vivida e conhecida. Todos esses dados devem ser levados em consideração quando se busca uma datação.
O escrito é apresentado pelos editores (tanto Esser, quanto Paolazzi) com o título de Regula pro eremitoriis data. Necessário dizer que tal título não é o que aparece nos códices e sim De religiosa habitatione in eremo. Esser justifica o título que deu pela leitura de seu conteúdo. A indicação de Regra, porém, nos parece equivocada e certamente inadequada porque Regulae, nos Escritos de São Francisco, são textos de caráter normativo a que certamente nosso texto não aspira. O lugar que ocupa em alguns códices, ou seja, no final das Admoestações, leva-nos a considerar o texto como uma exortação para os irmãos que vivem no eremitério.
Se não é correta a designação de Regula, equivocados também são os termos eremo e eremitério (eremus et eremitorium) que se encontram no título de alguns códices e no próprio texto porque fácil e erroneamente pensamos em eremitérios posteriores: “conventini” que reproduzem, em pequena escala, a vida dos conventos grandes, com acentuação na dimensão da oração. Necessitamos compreender a originalidade da descrição proposta por Francisco em tal estilo de vida. Observemos imediatamente que se trata de uma comunidade anômala que não tem um guardião estável, diferente do que aconteceria posteriormente com os conventos. No eremo há rodizio das funções. Enquanto de uma parte parece não existir uma igreja ou capela, de outra há presença de um vocabulário monástico, ausente em outros textos de Francisco. Necessário não pensar na modalidade de eremitérios que conhecemos.
“Aqueles que querem viver religiosamente nos eremitérios sejam três irmãos ou no máximo quatro, dois deles sejam as mães e tenham dois filhos ou um pelo menos. Esses dois, que são as mães, levem a vida de Marta, e os dois filhos levem a vida de Maria (cf Lc 10, 38-42) e tenham um claustro em que cada um tenha sua pequena cela para rezar e dormir” (1-2).
A primeira singularidade com respeito a uma concepção genérica de eremo consiste no fato de que se fala de três ou quatro irmãos, enquanto que o eremita, por definição, deveria estar sozinho. Trata- de uma forma original de eremitério fraterno, experiência comunitária de vida eremítica que funde numa única síntese a dimensão fraterna com a solitária ou de isolamento.
A referência às figuras de Marta e Maria é aventada tradicionalmente para designar a vida ativa e a vida contemplativa e está bastante presente nos Padres da Igreja. Limitando-nos ao âmbito monástico pode-se, por exemplo, comparar nosso texto com o teor da Regra de Grandmont (aprovada em 1189, uns trinta anos antes de nosso texto). Dela se depreende a convicção da superioridade da escolha de Maria com relação à de Marta e a diferença de ocupações entre clérigos e conversos é motivada com relação aos papéis diferentes de Marta e Maria. Nessa Regra os papéis não se intercambiam. Os clérigos são sempre Maria e o conversos, sempre Marta.
À distinção entre Marta e Maria acrescenta-se a outra, mais própria a Francisco, de mães e filhos: no linguajar de Francisco a referência retorna em outros momentos, seja como convite para sermos mães de Cristo, seja sobretudo como modelo do relacionamento fraterno. Com a imagem da mãe, Francisco aponta para um delicado e materno serviço prestado ao irmão, fraterno sim, mas também maternal.
A menção do claustro (claustrum) ocorre, somente neste texto, por duas vezes, em todo o corpus dos Escritos de Francisco como mera referência à cela (cellula). Trata-se de um vocabulário de inspiração monástica que bem se encaixa no tema tratado. De acordo com tais indicações, no espaço do claustro encontram-se as celas nas quais se reza e se dorme. Não há menção de capela ou igreja e a oração é feita na própria cela. Para comer deixa-se a cela e os irmãos se dirigem ao claustro. Afirma-se que ali se pode procurar as mães e a elas pedir a comida em esmola.
“E rezem sempre as completas do dia logo após pôr-do-sol; esforcem-se por manter silêncio e rezem suas horas canônicas; e levantem-se na hora das Matinas e procurem primeiro o Reino de Deus e sua justiça (Mt 6,33). E rezem a Prima na hora conveniente e, depois da Terça, podem romper o silêncio e falar e dirigir-se às suas mãe. E quando lhes aprouver podem pedir-lhes esmola, como os pobrezinhos, por amor do Senhor Deus. E depois rezem sexta e noa; e rezem as vésperas na hora conveniente”.
Enquanto que nas duas Regras de Francisco nada se diz a respeito do horário da jornada, nosso texto tem a preocupação de detalhar com certas minúcias a ordem de todo o dia por meio das recitação das horas litúrgicas. Esta característica se explica pelo caráter sedentário da vida eremítica que se passa sempre no mesmo lugar e que desta forma é bem diferente no tipo de vida descrito nas Regras, ou seja, vida itinerante nos caminhos do mundo sem possibilidade de organização do horário diário.
Que se atente para a recomendação do manter silêncio (retinere silentium), indicação importante para garantir o clima contemplativo na vida do eremo. A mesma expressão vamos encontrar na Regra não bulada XI, 1-2 : “E cuidem os irmãos para não se caluniarem nem porfiarem com palavras, muito pelo contrário, esforcem-se por manter silêncio, sempre que Deus lhes conceder a graça”. Neste caso específico o manter silêncio é pedido, em primeiro lugar, para que o irmão não seja caluniado com a fala inconsequente.
Significativa também a expressão procurem em primeiro lugar o reino de Deus e sua justiça citada nesse contexto. Não seria dar um cunho profundamente evangélico e não apenas ascético à reza das matinas?
Observemos ainda o pormenor dos filhos que pedem esmola às mães Os filhos vivem na precariedade e na dependência de outros, mesmo no isolamento e protegidos pelo eremo. Os irmãos descritos por Francisco não são “eremitas privilegiados”, eventualmente cuidados por terceiras pessoas, mas “frades menores” que, também na condição de homens de vida reclusa, reconhecem que tudo recebem do grande Esmoler através dos irmãos/mães.
“E não permitam que alguma pessoa entre nos claustro onde moram nem coma aí. Os irmãos que são mães esforcem-se por ficar longe de qualquer pessoa; e por obediência a seu ministro guardem seus filhos de toda pessoa, para que ninguém possa falar com eles. E os filhos não falem com ninguém, a não ser com suas mães e com seu ministro e custódio, quando lhe aprouver visita-los com as bênçãos do Senhor Deus”.
As prescrições do versículo 7 fornecem informações a respeito do conceito de claustro: trata-se de verdadeira e própria clausura onde ninguém pode entrar e onde, como já foi dito, não se come porque a refeição é momento de encontro entre mães e filhos e onde se quebra o rigoroso isolamento destes. Os irmãos/mães são convidados a terem um conveniente distanciamento do mundo, mas sobretudo a velarem que os filhos não tenham contatos com ninguém. A única exceção prevista é dos ministros e custódios. Encontramos aí os dois títulos, mas é provável que se trate de uma só encargo, porque posteriormente é que se haveria de se distinguir os dois ministérios. Essa alusão aos ministros e custódios leva-nos a datar este escrito em tempo posterior ao Capítulo de 1217.
“Os filhos, no entanto, assumam de vez em quando o ofício de mães, em revezamento (rodízio) pelo tempo que lhes parecer melhor estabelecer; e esforcem-se por observar com solicitude todas as referidas coisas”.
A última norma prescreve o revezamento recíproco nos papéis de mães e filhos com uma característica que bem ilustra o conceito de fraternidade de Francisco: a reciprocidade em todos os níveis, que se manifesta no rodizio.
Observações em forma de síntese – Da leitura do texto emerge um liame entre Francisco e a tradição eremítivo-monástica precedente que precisamente no começo do século XIII conhece extraordinário florescimento. O vocabulário deste texto, fora algumas poucas palavras de Francico que ocorrem poucas vezes como chiostro e celletta mostra dependência e ligação com o vocabulário da tradição monástica.
Significativa a conotação fraterna com que é vivida a experiência eremítica (são três ou quatro irmãos),como também a imagem materna que marca os relacionamentos dentro do grupo e o revezamento dos papéis: trata-se de característica tipicamente franciscana que não parece depender de uma tradição anterior e que mostra como Francisco, embora inserindo no sulco da tradição eremítica colore tudo com sua novidade específica. Não é mero acaso que estas características girem em torno da dimensão da fraternidade.
O texto documenta certamente a importância que desempenhou a dimensão eremítica na primeira fraternidade e na própria experiência de Francisco. Nesse sentido pense-se nas quaresmas dedicadas à oração (2Cel 197; 3Com73;LM 9,2) durante as quais encontramos a presença de ao menos um companheiro ao lado de Francisco com é documentado , por exemplo, durante o período passado no Alverne.
Pensamos que este texto pode ser lido também como expressão da vivência pessoal de Francisco, testemunho de sua experiência eremítica. Nesse sentido as reflexões sobre o texto não são palavras abstratas a respeito de um ideal de vida proposto, mas testemunho de sua vivência pessoal
A dimensão contemplativa, também na sua forma eremítica, é vivida por Francisco como o que se vivia na veneranda tradição monástica, mas também com uma clara conotação fraterna e materna.
Cesare Vaiani
Storia e teologia dell’ esperienza spirituale di Francisco d’Assisi
Edizioni Biblioteca Francescana
Milano, 2013, p. 166-171.