Obediência à alma e à forma de vida de Santa Clara de Assis
Frei João Mannes
O capítulo X da Forma de Vida de Santa Clara – A admoestação e a correção das Irmãs – segue, em linhas gerais, o capítulo X da Regra Bulada de São Francisco. Tendo por base o referido texto, seguem algumas considerações sobre a exortação que Clara faz às Irmãs acerca do “amor mútuo” (RSC X, 7), da responsabilidade da abadessa de zelar pela Forma de Vida na vida das Irmãs (cf. RSC X, 1,4) e, sobretudo, acerca da obediência das Irmãs à abadessa em tudo que “não é contra sua alma e a forma de nossa profissão” (RSC X, 1,3).
Antes de tudo convém ter presente que é “por inspiração divina” (RSC II, 1) que a abadessa e as Irmãs convivem enclausuradas num mesmo mosteiro e professam uma mesma Forma de Vida. Isto quer dizer que elas são Irmãs porque todas são filhas do “altíssimo Pai Celeste” (RSC VI, 1) que as iluminou e as chamou a viver segundo a forma do Evangelho de Jesus Cristo.
O fruto mais precioso da vivência do Evangelho é a comunhão de vida ou o “amor mútuo”. Por isso, Clara pede às Irmãs que “se guardem de toda soberba, vanglória, inveja, avareza (cf. Lc 12, 15), cuidado e solicitude deste mundo, da detração e da murmuração, da dissensão e da divisão” (RSC X, 6). Antes, “sejam sempre solícitas em conservar, umas com as outras, a unidade do amor mútuo, que é o vínculo da perfeição” (RSC X, 7). Em outras palavras, Clara pede às Irmãs que sejam boas e compassivas umas para com as outras, perdoem-se mutuamente e, enfim, vivam no amor, a exemplo de Jesus Cristo que nos amou e se entregou a si mesmo a Deus por nós (cf. Ef 5, 1-2).
A construção da vida em comunhão, ou a “dileção mútua”, requer o esforço contínuo de abnegação de cada membro da comunidade. Todavia, entre as Irmãs, a abadessa tem a responsabilidade maior de zelar pela vocação e missão de cada uma delas. Por isso, Clara exorta-a para que “visite suas Irmãs e as corrija” (RSC X, 1), caso tenham se desviado do apelo do próprio Senhor: “sede perfeitos como vosso Pai celeste é perfeito” (Mt 5, 48). Porém, que as corrija com “humildade e caridade” (RSC X, 1) e à luz da Forma de Vida que todas as Irmãs livremente “prometeram ao Senhor observar” (RSC X, 3).
Portanto, a obediência, como abertura e acolhida do Mistério do Deus de Jesus Cristo que se fez servo (Fl 2, 6-8), diz primeiramente respeito à abadessa. Por isso, sua primordial vocação e missão é revestir-se da autoridade do servo Jesus Cristo: “Pois, assim deve ser, que a abadessa seja servidora de todas as Irmãs” (RSC X, 5). E “as Irmãs súditas lembrem-se de que, por Deus, renunciaram à sua própria vontade” (RSC X, 2) a fim de “obedecer firmemente a suas abadessas em tudo que prometeram ao Senhor observar” (cf. RSC X, 3).
No entanto, acrescenta Clara, a obediência das Irmãs em tudo não pode contrastar com a alma e a Regra. Devem, então, obedecer em tudo, “que não é contrário à sua alma e à nossa profissão” (RSC X, 3). Assim, a abadessa não pode ordenar nada que seja contrário à sua alma e as Irmãs não devem obedecer ao que se opõe à sua alma. Essa exortação de Clara está em sintonia com a admoestação que Francisco faz aos ministros de não poderem “ordenar nada que seja contra sua alma e a nossa Regra” (RB, X, 2). E aos irmãos súditos exorta que obedeçam aos seus ministros em todas as coisas que prometeram ao Senhor observar e que não são contrárias à alma e contra a Regra que professaram (cf. RB, X, 4).
Clara e Francisco destacam que não se pode ordenar nada que se contrapõe aos princípios da alma, nem obedecer em coisas contrárias à alma. Isto quer dizer que, para o Pobre de Assis e a Dama pobre, obedecer ou não é decidido na interioridade da alma e em sintonia com a natureza da alma. A alma não assinala o mundinho do “pequeno eu”, subjetivo, intimista e individualista. Pois, sabe-se que os Irmãos e Irmãs renunciaram às suas próprias vontades. A alma humana é mens, é spiritus porque, ao ser amorosamente criada, Deus insuflou nela a capacidade de amar e conhecer à semelhança do Filho de Deus que, em Jesus de Nazaré, renunciou à sua condição divina e assumiu a condição de Servo. Assim, por natureza, a alma quer amar e conhecer a Deus, no seguimento de Jesus Cristo.
A alma humana experimenta-se a si mesma como mistério insondável de liberdade. Nem mesmo Deus viola o “espaço interior” de liberdade de cada pessoa. Então, exigir algo contra a alma ou não poder obedecer em coisas contrárias à alma, significa que tudo o que se faz deve ser feito livremente, por amor. Todas as coisas devem ser feitas de acordo com a natureza da alma e com alma, isto é, com a liberdade e o amor de Deus, que nada quis para si mesmo para que totalmente nos receba aquele que totalmente se nos oferece (cf. Ord 29). Talvez por isso, Clara, ao revelar a origem divina de sua Forma de Vida, ressalta que foi voluntariamente (não contra a alma) que ela decidiu corresponder à iluminação do Altíssimo (cf. RSC VI, 1).
Enfim, é da vontade de Deus que cada pessoa se decida livremente a obedecer à inspiração do Altíssimo. No entanto, depois que se optou por professar a Forma de Vida de Clara ou a Regra de Francisco, deve-se corresponder a todas as exigências inerentes à forma da profissão. Trata-se de uma obediência necessária que, porém, não se opõe à alma porque foi livremente querida e porque é da vontade de Deus que não se professe esse gênero de vida senão livremente e por necessidade de natureza. Transcender a própria vontade e voluntariamente colocar-se no seguimento de Jesus Cristo, a exemplo de Clara e Francisco, sempre foi e continuará sendo o maior desafio da Vida Religiosa Franciscana.
Portanto, ter de obedecer a todas as coisas da Regra de Francisco ou da Forma de Vida de Clara não é contra a alma, pois supõe-se que livremente os Irmãos e as Irmãs se dispuseram a professar esse gênero de vida, de modo que todas as exigências contidas nas Regras estão em sintonia com a alma e devem ser observadas. Por exemplo, na Forma de Vida clariana prescreve-se que as Irmãs não devem procurar aprender letras (cf. RSC X, 8). Não se trata de um apelo que se contrapõe à alma, mas é uma exigência inerente à Forma de Vida que as Irmãs livremente professaram. Ao dar essa ordem, Clara reprova, sim, uma mentalidade e atitude de busca do saber em vista de seu próprio engrandecimento e utilidade. O estudo acadêmico das Fontes Franciscanas e Clarianas, bem como da filosofia e da teologia, movido pelo “espírito do Senhor” e em vista de uma melhor qualidade de vida evangélica e evangelizadora, são e serão sempre exigências inerentes à forma de nossa profissão (cf. RB, X, 4).