O serafim de Assis
Estigmatização de Francisco de Assis
♦ Setembro e outubro são meses em que nós, franciscanos e amigos de São Francisco, nos abeiramos do mistério da vida e da trajetória desse que é nossa inspiração e nosso guia para melhor vivermos o Evangelho nesse curto tempo que chamamos de nossa vida. Sempre me lembro de um pensamento de Georges Duby: “De parceria com Cristo, foi Francisco o grande herói da história cristã. Pode-se afirmar, sem exagero que aquilo que hoje resta do cristianismo vivo, provém diretamente dele” (Le temps des cathédrales, Gallimard, 1976, p. 170). A 17 de setembro lembramo-nos da estigmatização no Alverne, normalmente cantamos a passagem, o “trânsito” de Francisco à noitinha de 3 de outubro e no dia 4 celebramos as maravilhas que Deus operou no Poverello. Julien Green no seu São Francisco de Assis, falando do tema escreve: “A visão dos serafins de seis asas de fogo que apareceram a Isaías deve ter causado uma impressão que não podemos negligenciar. Lembranças oníricas da Escritura deviam acompanha-lo de sua conversão até à morte. Para toda a Idade Média, o mundo interior tinha tendência a se exteriorizar sob forma de imagens. Irmão Leão, a mais séria das testemunhas da estigmatização, poderíamos dizer a única, está na origem de tudo o que se sabe e ele via pelos olhos do amor. Francisco não queria que se falasse disso e escondia ciumentamente a marca dos estigmas, porque esses ferimentos eram bocas que falavam demais (Julien Green, São Francisco de Assis, Ed. Francisco Alves, Rio, 1988, p. 209).
♦ O que realmente se passava no coração e na alma de Francisco? Qual teria sido o assunto de suas meditações? Podemos levantar a hipótese de que refletia sobre a Cruz. Ocorria a festa da exaltação da Cruz. Essa Cruz vitoriosa invadia o coração de Francisco e o iluminava. Limitamo-nos a transcrever a sucinta e sóbria dissertação do “evento” feita por Éloi Leclerc:
>> “Certa manhã, muito cedinho, enquanto rezava diante da montanha, percebeu vir até ele um ser alado, um ser de fogo e de luz: um serafim com seis asas reluzentes. Como na visão do profeta Ezequiel, duas asas se elevam acima da cabeça, duas outras se desdobravam para o voo e duas outras cobriam todo o corpo. Era um desses espíritos que se postam diante do trono de Deus, e que são irradiação de sua glória e de sua imortalidade. Mas desconcertante era ver esse espírito glorioso e luminoso que sofria: suas as cobriam o corpo de um homem crucificado. Mãos e pés estavam presos a uma cruz”.
>> Diante deste espetáculo a alma de Francisco se rasgava e sentimentos contraditórios se debatiam dentro dele. A inefável beleza do Serafim e seu olha benevolente e cheio de graça o fascinavam e o enchiam de alegria. Ao mesmo tempo, no entanto, o sofrimento do crucificado o aterrorizava. Pergunta-se então: Como um espírito glorioso, imortal e tão belo podia sofrer a mais cruel agonia? Não sabia o que pensar. A agonia estava junto com o êxtase. A Paixão e a Glória, associadas de maneira estranha, pareciam cair sobre ele como um pássaro de rapina.
>> Aos poucos a visão se diluiu e a angustia se acalmou. Abaixando os olhos para a terra, viu em suas mãos as marcas dos cravos. A Glória de Deus acabava de tocá-lo, de transpassá-lo. Era um ser ferido. E como Jacó, depois do combate com o anjo, caminhava com muita dificuldade” (E.Leclerc, Francisco de Assis.O retorno ao Evangelho, Vozes, p. 108).
• Nada mais a acrescentar. “Esses ferimentos eram bocas que falavam demais”. Por isso, o Poverello os escondia. Eram os segredos do Rei. Os serafins da Glória se encontravam com o serafim de Assis.
Frei Almir Ribeiro Guimarães