O que se diz a respeito de Francisco
Frei Almir Ribeiro Guimarães, OFM
1. Vivemos os dias de outubro de 2009, mês da festa solene de Francisco. Temos ainda alguns meses, uns poucos meses, deste ano de 2009, ano dos oito séculos do carisma franciscano. Ao celebrarmos a festa do carisma das origens pensamos em nossa vida com Francisco. Quando o encontramos pela primeira vez? Quem teve a delicadeza de nos apresentar a este que os séculos aprenderam a venerar? Que traços de Francisco temos em nosso semblante? Em que nossa Província se parece com Francisco? Estamos às portas do Capítulo Provincial. Dentro de pouco tempo nossas bolsas estarão prontas e percorreremos os caminhos que nos levarão a Agudos. Quantas belas coisas haveremos de viver! Bom seria se pudéssemos uma vez mais, no fundo de nosso coração, responder a esta pergunta tão simples: Por que as pessoas andavam atrás de Francisco? Conhecemos o diálogo entre Frei Francisco e Frei Masseo conservado nos Fioretti (n. 10).
Masseo quer saber os motivos pelos quais todo mundo andava atrás de Francisco. Por que a ti? Por que a ti? Por que a ti? Conhecemos a resposta que o autor coloca nos lábios de Francisco: “Isto recebi dos olhos do Deus altíssimo, os quais, em cada lugar contemplam os bons e os maus; porque aqueles olhos santíssimos não encontraram nenhum mais vil nem mais insuficiente, nem mais pecador do que eu; e assim, para realizar esta operação maravilhosa, a qual entendeu fazer, não achou outra criatura mais vil sobre a terra; e por isso me escolheu para confundir a nobreza e a grandeza e a força e a beleza e a sabedoria do mundo, para que se reconheça que todo bem é dele e não da criatura e para que ninguém se possa gloriar na presença dele; mas quem se gloriar que se glorie no Senhor, a quem pertence toda honra e glória na eternidade”. Francisco começa dizendo simplesmente que ele existe para dizer com palavras e gestos que todo o bem vem do Sumo Bem! Vamos dar a voz a alguns entre tantos que escreveram sobre Francisco. Eles tentam dizer os motivos pelos quais tantos andaram e andam ainda hoje atrás de Francisco e ajudam-nos, por nossa vez, nesse tempo refundação e de volta à graça das origens, a formular também a resposta a esta pergunta: Quem é Francisco para nós? Que a reflexão sobre estes pensamentos nos tornem mais leves, mais lépidos, mais alegres para começar a caminhada rumo a Agudos!!!
2. Omer Englebert escreve: “Francisco é dessas figuras das quais a humanidade sempre sentirá orgulho. Suas qualidades forçam a simpatia; seus defeitos, se os tem, são atraentes; sua santidade nada tem de esotérico, afetado ou ameaçador; seus dons naturais suscitam geral admiração; e seus ensinamentos exalam tal frescor, poesia e serenidade, que mesmo espíritos embotados podem encontrar neles razões para amar a vida e crer na bondade divina” (Vida de São Francisco de Assis, Omer Englebert. Trad. Frei Adelino G. Pilonetto. EST Edições, P. Alegre, 2004. p. 9).
3. Tomemos as observações feitas por Gérard Guitton na Introdução de seu Découvir Saint François d’Assise, Salvator, Paris 2004. O Autor elenca opiniões e vários autores e escritores: O agnóstico Ernest Renan diz: “Deve-se dizer que depois de Jesus, Francisco de Assis foi o único cristão perfeito”. Outro escritor agnóstico, André Malraux: “Será que se pode dizer que Francisco de Assis tenha sido, na história da Igreja, o último gigante da santidade? Sem dúvida, depois dele, houve outros, mas nenhum deles conseguiu, unicamente por sua força espiritual, revolucionar o mundo ocidental e transformar a civilização como ele fez e até mesmo inspirando uma arte completamente nova…”. Frei Gérard menciona ainda outros. Lenine afirmaria que ele não teria tido necessidade de fazer a revolução na Rússia se tivesse encontrado três ou quatro Franciscos de Assis. Clemenceau disse que gostaria de ter em seu sangue algumas gotas do sangue de São Francisco.
4. Dois depoimentos fora dos muros da Igreja. O primeiro do austríaco, Kurt Waldheim, antigo secretário geral da ONU: “São Francisco de Assis é o símbolo da paz, do respeito pela natureza e do amor pelos pobres que fazem parte do ideal seguido pela ONU cuja Carta foi assinada na cidade de São Francisco, que leva o nome do Pobre de Assis. M. Amadou Mahtar M’Bow lembra “ a universalidade, o altruísmo caracterizado por uma vontade de diálogo e defendidos por Francisco de Assis que deseja ser instrumento da paz”.
5. Francisco não está morto. Ele vive. Não se pode “clonar” Francisco. Armindo Trevisam, na Apresentação da versão brasileira do livro de Omer Englebert: “Em termos absolutamente concretos, a repetição de Francisco de Assis, a sua – digamos com humor – “clonagem” espiritual não teria sentido. Francisco é irrepetível. Foi um carisma concedido à Igreja num determinado século, em meio a determinadas necessidades espirituais. Mas é aqui, precisamente, que intervém um elemento supra-histórico: a graça de Deus. Francisco não está morto, está vivo. Está na glória de Deus e é nosso intercessor. Portanto, não desapareceu da História, porque a graça de Deus o mantém atuante dentro dela. É esse o mistério da comunhão dos santos e da esperança geral da humanidade” (…) “… a figura de Francisco de Assis possui uma tríplice dimensão: “a dimensão histórica, a dimensão sobrenatural, e a dimensão poético-mística que o converte num ideal e num sonho cultural da humanidade. Como promover a ecologia sem nos referirmos ao seu patrono? Como neutralizar as perversões da globalização sem evocar o homenzinho de Assis que pregava o anticonsumismo, limitando-se às necessidades básicas? Como preservar um mínimo de relacionamento pessoal entre as classes sociais sem reviver a sua caridade universal, que abarcava os próprios lobos e cotovias?”
6. Éloi Leclerc escreveu inúmeras obras cheias de profundidade e sabor a respeito de Francisco. O autor se encantou por Francisco antes da última guerra, viveu o inferno dos campos de concentração nazista e completou as etapas do seguimento do Poverello depois do fim da guerra e a chegada da paz. O Francisco de Leclerc sempre encanta. “Há uma secreta vinculação entre a pureza do coração e a mansidão, entre a transparência das profundezas e a serenidade, entre a santidade e a bondade essencial. Talvez, no fundo, a pureza não seja mais do que a transparência do ser, frente à Bondade original. Um homem, pelo menos, assim a entendeu. Era um sábio, embora não cuidasse de o aparecer. Ele viu que a pureza e a mansidão, irmanadas, formavam a face de Deus. Por assim o haver entendido, esse homem renunciou ao poder que gera a violência, e ao dinheiro que está na raiz do poder. Deu de mão a toda ambição de domínio, incluindo a mais sutil de todas, a dos clérigos. Rompeu com o sistema político-religioso de seu tempo, a supremacia temporal da Igreja, as lutas feudais, as guerra santas. Fê-lo sem clamor, sem subverter a opinião pública, com suavidade, humildemente, mas realmente. Num mundo violento, eriçado de torreões, cavado de fossos, o seu universo não conhecia muralhas e torres de vigia. Pobre de bens e de poder, estava em paz com todos, vivia ao nível de todos os seres, para todos tinha um olhar cheio de luz e de respeito. O olhar, sobretudo, era nele maravilhosamente humano; humanos os sentidos todos. As criaturas já não eram objeto de posse e de domínio. Irmão do sol e das criaturas, caminhava num mundo aberto e esplendoroso. Era o pai de uma multidão de amigos. Nele se congraçavam a pureza e a ternura, e nenhuma barreira lograva impedir que se expandissem pelo mundo. O seu horizonte não era a Cristandade temporal, com seu prestígio, as suas fronteiras a defender ou a dilatar, mas apenas Jesus Cristo que urgia amar e servir, o homem que se impunha salvar. Foi longe nesse propósito, para além das fronteiras da Cristandade. Em plena Cruzada, foi para o Oriente, não para combater ou desempenhar meras funções de assistente espiritual, mas para reencontrar os outros, os que não pensavam como ele. Várias vezes se avistou com o sultão Melik-el-Kamil. O desprezo de qualquer sucesso pessoal, o brilho que de si próprio irradiava impressionaram de tal modo o chefe muçulmano que chegaram a discorrer longamente, como bons amigos, sobre as respectivas religiões. Teve mesmo que declinar honrarias e benesses com que o sultão o desejava distinguir. E se este não aceitou a fé cristã ficou lançada uma ponte entre o Ocidente e o Oriente. Foi, sem dúvida, um grande momento da história dos homens (…). “… a sombra perseguia esse homem de coração solar. A sombra de seu tempo na qual trabalhava o Maligno, agarrava-se-lhe aos pés para o vergar ao fracasso. E fracassou, com efeito. Não converteu o sultão à fé cristã, nem os cristãos à mansidão evangélica. Não reconciliou os homens, nem realizou a unidade. Viu até germinar a discórdia entre os próprios discípulos. Um tal fracasso poderia fazê-lo vacilar, lançá-lo num abismo de desespero. Depois de ter trabalhado na paz, conheceu durante dois anos o acicate da turbação – a turbação que é, para o homem a revelação de que não é totalmente puro nem perfeitamente transparente e permeável à Bondade original. Mas que faltava a este homem para estar inteiramente aberto à luz e realizar em plenitude a semelhança com o Pai? Nada, talvez. Ou apenas isto: aceitar até o fim a prova da paternidade e entrar, desse modo no mistério do Pai. Para conseguir a semelhança divina não basta invocar o Pai, nem sequer manter com Ele relações filiais. É necessário conhecer por si mesmo, no apagamento, o que é ser Pai à maneira de Deus. Conhecê-lo, sendo-o, ele próprio também. Este homem aceitou. E começou então, para ele, uma lenta migração interior para as regiões do ser, onde o último segredo do mundo se revela cada vez mais transparente. Conheceu finalmente a alegria do Pai. Doravante, nada o perturbará. Com igual regozijo poderá cantar o sol e a morte. E recolher no coração, de quando em quando, as secretas harmonias vindas da outra margem do silêncio” (in Desterro e Ternura, Braga 1974, p. 10-12). Que estupendo este texto a respeito de Francisco.
7. Donald Spoto, estudioso americano, publicou um livro interessante sobre Francisco ( Francisco de Assis. O Santo Relutante, Objetiva, 2002). Primeiramente ele nos fala da influência de Francisco na cultura: “Francisco deixou sua marca na arte, na literatura e na história da civilização ocidental, a começar por Dante, que nasceu 40 anos após sua morte e que dedicou a Francisco a quase totalidade de um dos cantos da Commedia. Não é exagero dizer que todas as expressões italianas subseqüentes de cultura religiosa devem algo a Francisco, desde os afrescos de Cimabue e Giotto até os filmes de Vittorio de Sica e Federico Fellini, que estão impregnados de uma profunda sensibilidade franciscana” (p.20).
8. Estas reflexões são completadas pelas palavras vigorosas e contundentes de Paul Sabatier, na sua Vida de São Francisco de Assis (IFAN). Transcrevemos umas poucas linhas da Introdução. Discorre o autor sobre as religiões que visam à divindade. Todo esforço nessas religiões, segundo Sabatier, se concentra no culto e, em particular, no sacrifício. A finalidade a ser alcançada é uma mudança nas disposições dos deuses. Esses são reis poderosos, dos quais se deve comprar o apoio ou o favor por meio de presentes. A maior parte das religiões pagãs faz parte dessa categoria, bem como o judaísmo farisaico. É também a tendência de certos católicos atrasados para quem o grande negócio é apaziguar Deus ou comprar, à custa de orações, de velas e de missas, a proteção da Virgem e dos Santos”. Espero que meus leitores compreendam a rudeza das palavras do Sabatier. Coloquem-na no vigor crítico. Depois ele escreve a respeito das religiões que querem mudar o homem. Diz que a partir da conversão Francisco tem maneira diferente de rezar. Ali ela manifesta sua mudança e sua grandeza: “… a oração, que se tornou ato essencial da vida, perde seu caráter de fórmula mágica; torna-se impulso do coração; é a reflexão e a meditação que se eleva acima da vulgaridade do aqui para penetrar os mistérios da vontade divina e conformar-se com ela; é o ato do átomo que compreende sua pequenez, mas mesmo que seja apenas um som, quer que este som, esteja em sintonia com a sinfonia divina. Ecce adsum, Domine, ut faciam voluntatem tuam. Quando alguém alcança essas alturas, não pertence mais a seitas, mas à humanidade. É semelhante a essas maravilhas da natureza que o acaso coloca em território de tal ou tal povo, mas que pertencem a toda a humanidade, porque no fundo não pertencem a ninguém ou, antes, são propriedade comum e inalienável de todo o gênero humano. Homero, Shakespeare, Dante, Goethe, Miguel Ângelo, Rembrant pertencem a nós todos, tanto como as ruínas de Atenas ou de Roma, ou antes, pertencem a quem mais os ama, a quem os compreende melhor”.
9. Francisco não era um teórico da vida espiritual. Falava de Deus em termos de experiência. “Falava somente daquilo que conhecia, ouvia e sentia. Nesse particular, nós o vemos, ao longo dos séculos, como exemplo do que Deus é capaz de fazer, isto é, principalmente maravilhar-nos, alterar radicalmente a maneira pela qual vivemos e agimos. Nos trechos dramáticos de sua própria vida, e na forma pela qual umplayboy simpático mas um tanto vazio se transformou em modelo servidor do mundo, ele revelou a presença de Deus no tempo e na história. Em outras palavras, sua credibilidade é grande por haver demonstrado que nosso melhor momento acontece quando ousamos permitir que Deus penetre nossas vidas. Os extremos da vida de Francisco, durante os quais ele passou de playboy a penitente, e de pobre a santo, revelam um indivíduo que se colocou à margem do mundo. Em sua identificação com aqueles que a sociedade polida rejeita, Francisco questionou a insensatez de confiar no dinheiro, nos bens e coisas materiais em busca da felicidade. Sua figura atrai praticamente a todos, provavelmente porque (ao contrário da maioria dos santos) ele não é propriedade da Igreja Católica Romana. Sua primeira grande biografia moderna foi escrita por um protestante francês; um dos mais importantes historiadores do franciscanismo foi um bispo anglicano; um ortodoxo grego é o autor de um vigoroso romance sobre sua vida; e para ser fotografado em uma conferência de paz em Assis, o Dalai Lama quis sentar-se no lugar que Francisco mais amava e no qual morreu” (Spoto, p. 21-22).
10. O texto da FFB sobre os 800 anos do Carisma (Reviver o sonho de Francisco e Clara de Assis no chão da América Latina e do Caribe) teve sua primeira e principal redação, segundo informações, de Frei Prudente Nery, capuchinho querido, de boa cepa e de veia poética, que a Irmã Morte veio buscar muito cedo, muito cedo… Falando do encontro de Francisco com o Evangelho da missão, assim se exprime o texto: “Para dentro desse encontro, Francisco traz tudo aquilo que lhe era próprio. Não apenas o que lhe dera, em prodigalidade, a natureza, mas também o que ele havia visto, discernido, aprendido e construído, em sua vida, no momento histórico em que lhe fora dado viver. Nada disso é aniquilado em seu encontro com o Evangelho (Jesus Cristo). Antes constitui o chão bom e fértil onde a graça se deposita e floresce em única e copiosa beleza. Como de todo encontro verdadeiro nunca saímos o mesmo, assim também aqui, Francisco, por sua natureza sui generis, retira desse tesouro (Evangelho) coisas novas e velhas, desoculta-lhes desconhecidas riquezas. Nele, o Evangelho se ergue da letra das Escrituras repleto de espírito, ressurge em nova vitalidade e manifesta-se em surpreendente atualidade. Por sua vez, o encontro com Jesus Cristo depura, fortalece, torna ainda mais luminosas as virtudes de Francisco” (p. 13).
11. Chesterton escreveu uma apaixonante biografia sobre o santo. Dele retenho apenas, por necessidade de brevidade, poucos parágrafos. Falando de Francisco, escreve: “Não é possível ler racionalmente a história de um homem apresentado como um espelho de Cristo sem compreender sua fase final como Homem das Dores e sem ao menos apreciar artisticamente a propriedade de ele ter recebido, numa nuvem de mistério e de isolamento, e não provocadas por mão humana, as feridas sempre abertas que curam o mundo” (G.K. Chesterton, São Francisco de Assis. A Espiritualidade da Paz, Ediouro, 2001, p. 18). “…. a vinda de São Francisco foi como o nascimento de uma criança numa casa escura que tivesse acabado com sua maldição; uma criança que cresce sem ter consciência da tragédia e que a vence por sua inocência. Nele, é preciso não só inocência, mas desconhecimento. É da essência da história que ele se jogue na grama verde sem ver que ela esconde um cadáver ou que suba numa macieira sem saber que é a forca de um suicida. Foi essa anistia e reconciliação que o frescor do espírito franciscano trouxe a todo o mundo” (p. 171).
12. Neste elenco riquíssimo de depoimentos a respeito da beleza da vida de Francisco não convém deixar de lado o tocante depoimento de Julien Green, conhecido escritor: “Desde a minha infância, em tempos perdidos nas brumas do passado, na rue de Passy onde morávamos, eu ouvia o nome de Francisco pronunciado com a ternura que sempre o acompanhava. Minha mãe, de modo especial, protestante de boa cepa, devotava-lhe uma afeição que me leva a crer que ela o havia conhecido. Ele era e continua sendo o homem que vai além das tristes barreiras teológicas. Ele é de todo o mundo, como o amor que sempre nos é ofertado. Não se podia vê-lo sem amá-lo, dizia-se dele no seu tempo, e tal amor continua existindo. Já tive ocasião de contar, em outro lugar, como, no momento da morte de minha mãe, que fraturou nosso pequeno universo familiar procurei a religião que ela parecia ter levado junto com ela. Meus laços com a Igreja anglicana iam sendo desfeitos. Caiu em minhas mãos um livro que expunha a fé católica e, em poucos dias, o lia apaixonadamente. Em menos de um ano aconteceu a conversão e fui recebido na Igreja em 1916. Nesse meio tempo, grande devorador de livros, descobri a pesquisa séria de Madame Arvède Barine, sobre São Francisco e a Legenda dos Três Companheiros. Fiquei louco de amor por esse mundo maravilhoso. Sonhava tornar-me como Francisco de Assis e quando o diretor encarregado de minha instrução religiosa perguntou-me o nome que queria receber no batismo, respondi com firmeza: “São Francisco de Assis”. Ele não manifestou nenhum entusiasmo e, com voz calma, disse: “Eu teria preferido São Francisco de Sales, mas a escolha é sua e será respeitada”. Eu não conhecia São Francisco de Sales e o padre jesuíta, certamente um santo homem, não acreditava ser oportuno me falar de Francisco de Assis, mas eu, em geral discreto, tornava-me falante quando podia cantar as loas do Pobrezinho. Sentia-me na obrigação de completar um pouco a instrução que o reverendo padre, sobre esse grande personagem, dava a entender não conhecer tão bem. Quantos pensamentos loucos se agitavam dentro de mim parecidos a um turbilhão. Ser como São Francisco de Assis, que glória! Eu era mesmo mais categórico em meu entusiasmo religioso: “Eu quero ser São Francisco de Assis”, declarei um dia a meu diretor espiritual. Sua resposta se limitou a um olhar sério e demorado e nada mais”. (Julien Green, Frère François, Ed. Du Seuil, Paris 1997, p. 341-342).
13. Fernando Felix Lopes, em seu O Poverello São Francisco de Assis, biografia com sabor português, encantadora em cada uma de suas páginas, faz uma pela de despedida de Francisco: “Voou para o Alto. Não voltará? Volta de novo à terra, ó Pai S. Francisco. Andaste no trabalho ingente e doloroso de arredar os espinhos que escondem no coração do mundo o Reino dos céus; chagaste no trabalho os teus pés e mãos, teu peito estalou de cansaço num rasgão sangrento. E já os lobos amansavam suas gulas e sanhas, e as andorinhas andavam presas no encanto da tua voz, e os homens deixavam os campos de batalha para correr atrás de ti em convívio fraterno, e até os infiéis, enternecidos, escutavam teus cantares de Paz e Bem. Parece que já nos sorria o paraíso. Mas foste embora naquela madrugada de luz que num instante fulgiu nos negrumes da terra, e logo se apagou. E foi outra vez a noite do pecado. Há mais espinhos sobre a crosta da terra; andam à solta, mais açulados e gulosos, os lobos que nos espreitam; fugiram aterradas as andorinhas; e as irmãs cotovias, tristes encapuchadas, vivem numa saudade imensa daquela madrugada que não chegou a amanhecer. Volta, pai S. Francisco, ao teu trabalho de encher a terra da paz do Reino de Deus! Mas, se não voltas, então espera-me, ó Pai, espera-me, que também quero partir contigo!” (Ed. Franciscana, Braga, 1996, p. 493-494).
E agora?
Estamos afivelando nossas bolsas para empreender a viagem até Agudos. Vamos viver a experiência do Capítulo da Imaculada! Levamos o perfume de Francisco de Assis, alegria de sermos seus discípulos e a responsabilidade de mantermos viva sua memória. Depois de percorrer tantas e tão extraordinárias “versões” de Francisco, sentimos o peso de nossa responsabilidade. Somos franciscanos. Não é possível esquecê-lo. Faz parte de nossa identidade. Na cortesia de todos os momentos, na oração que brota dos cantos mais escondidos do coração, na simplicidade do vestir, do comer e do falar, no trabalho de tornar o amor amado, na acolhida de todos, na vontade de ser irmão, vamos rumo a Agudos. Que o espírito de Francisco nos preceda e nos acompanhe para sermos fiéis a nós mesmos, ao que prometemos e para que, assim, os lobos se tornem mais mansos, as águas mais puras, as comunidades dos cristãos mais evangélicas e menos burocráticas, nossas casas não apenas residências mas pequenas células do Reino novo. Nossas bolsas estão prontas para o Capítulo… Boa viagem.