Carisma - Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil - OFM

Irmãos (II)

irmaos

Nesta rubrica que leva o título de Franciscanamente , em novembro passado começamos uma série de reflexões sobre os grandes valores da espiritualidade evangélico-franciscana. Abordamos então o tema do irmão. Neste mês de dezembro continuamos as reflexões sobre a mesmo valor fundamental da vida franciscana que é a fraternidade, tema inesgotável, porque Deus se fez nosso irmão e Francisco resolver seu o Irmão Franciscano, simplesmente Frei Francisco. Advertimos que este texto está praticamente pautado nas reflexões pertinentes de Michel Hubaut, franciscano francês, em seu Chemins d’intériorité avec saint François (Éditions Franciscaines, Paris, 2012, p. 66-80

1. A fraternidade é um dom do Espírito Santo – Quando o Poverello começou sua aventura espiritual não pensou em fundar nem uma fraternidade, nem uma ordem. Tudo começou com um desejo de se converter ao Evangelho. Esse período de transformação realizou-se, de modo particular, entre 1202 e 1208. Nessa ocasião alguns homens de Assis manifestaram a vontade de “partilhar o gênero de vida” de Francisco. O Poverello nunca esquecerá desse fato: “Depois que o Senhor me deu irmãos, ninguém me mostrou o que eu devia fazer, mas o Altíssimo mesmo me revelou que eu devia viver segundo a forma do santo Evangelho” (Test 14). Os irmãos constituem um dom do Senhor a serem acolhidos na fé. A fraternidade evangélica não é, em primeiro lugar, um dado sociológico. O Espírito inspira homens de diversos horizontes a se unirem para viverem o Evangelho como irmãos. A vocação de todo homem, a fortiori a do cristão, não se realiza a não ser na e pela fraternidade. A própria Igreja não pode ser outra coisa senão um esboço profético da fraternidade universal, laboratório do amor filial e fraterno. A fraternidade é o lugar privilegiado de nossa conversão e de nosso encontro com Deus.

2. Tornar-se o “próximo” de todo homem – A fraternidade, o amor vivido nos relacionamentos é o único caminho que se abre para a verdadeira vida, para uma vida que seja eterna. À pergunta do doutor da Lei que o interroga a respeito do que é preciso fazer para ter a “vida eterna”, Jesus responde: “O que está escrito na Lei? Como é que tu lês?” E ele respondeu: Amarás o Senhor teu Deus de todo o coração, com toda a tua alma, com todas as forças e com toda a tua mente e o próximo como a ti mesmo. Jesus então lhe disse: Respondeste bem. Faze isso e viverás” (Lc 10, 25-28). Na parábola do bom samaritano vê-se claramente que o sacerdote e o levita ficaram preocupados com a realização da lei e esqueceram de se dobrar sobre um ser jogado à beira do caminho. Não foram irmãos. O samaritano é figura de um Deus que se emociona de compaixão pelo homem ferido, aproxima-se dele pela encarnação de seu Filho. Faz-se próximo do homem para leva-lo ao albergue do Reino. Nisto contemplamos o mistério da fraternidade que vai muito além da simples solidariedade.

3. Viver como irmãos precisa ser uma Boa Nova em atos, uma ação profética para todos os homens. A primeira missão dos irmãos de Cristo é construir a fraternidade universal. Este é o maior desafio lançado aos cristãos de hoje, mundo marcado pela indiferença e por manifestações de violência que atestam um desrespeito pelo outro. Toda comunidade cristã precisa tender a se tornar um lugar onde todo e qualquer homem possa se descobrir irmão, onde cada um, pecador ou mal amado, rico ou excluído seja acolhido com respeito pelo que ele é e não por seus títulos e poderes. Todo grupo cristão precisa ser um esboço modesto mas real do Reino de Deus. Através da qualidade de nossos relacionamentos é um pouco deste Reino que emerge lentamente nas trevas do mundo. Os primeiros cristãos impactaram. As pessoas diziam: “Vede como eles se amam!” A evangelização é antes de tudo contágio de amor. Os laços de amor vividos em nossas fraternidades deveriam ser de tal monta que as pessoas pudessem dizer: O amor se aproximou de nós ( cf. Hubaut, p. 70-71).

4. Da dominação ao serviço – Um dos termos chaves da espiritualidade de Francisco é servir. A palavra servir aparece mais de cinquenta vezes nos seus escritos e servo mais de vinte vezes. “Nenhum irmão exerça uma posição ou cargo de mando, e muito menos entre os próprios irmãos. Pois, como diz o Senhor no Evangelho: “Os príncipes das nações as subjugam e os grandes imperam sobre elas”, assim não deve ser entre os irmãos, mas antes: Aquele que quiser ser o maior entre eles seja o ministro” (Mt 20, 26-27) e o servo deles, e quem for o maior entre eles faça-se o menor (cf. Lc 22, 26). E nenhum irmão trate mal a um outro nem fale mal dele. Antes sirvam e obedeçam de bom grado uns aos outros na caridade do Espírito” (RNB 5, 12-17). “ E nesse gênero de vida ninguém seja chamado de prior, mas todos sejam designados indistintamente de “frades menores”. Assim o pensamento de Francisco.

5. Francisco foi alguém profundamente marcado pela cena do lava-pés. O Mestre e Senhor ocupa-se de serviços humildes em prol dos homens. Serve desinteressadamente. Assim, a fraternidade tem essa fortíssima conotação de um serviço e é prejudicada por toda postura de dominação. A experiência de Francisco como líder da juventude de Assis fez com que ele compreendesse que as relações humanas são muitas vezes comandadas pela dialética do mestre e do escravo, do forte e do fraco, do superior e do inferior. Todo homem possui em si essa tendência para o poder. Ser o maior, o mais inteligente, o mais brilhante, o mais forte, o primeiro. Tal reflexo está inscrito na natureza do homem. Francisco compreende que essa necessidade fundamental de se afirmar torna-se perversa quando é desejo de dominação e de apropriação. Nossa sociedade de competição está muito mais equipada para os jovens lobos e aos superdotados do que aos fracos que são impiedosamente marginalizados. Francisco se dera conta que no seio da sociedade medieval onde os burgueses, os poderosos conquistaram o poder, sem levar em consideração os “minores”, aquelas camadas sociais mais desfavorecidas, incapazes de terem parte no novo poder comunal e nas novas riquezas;. Os evangelhos nos dizem que os apóstolos, mesmo instruídos por Jesus, discutiam a respeito de quem seria o maior entre eles.

6. Francisco quer construir uma fraternidade por sobre uma mentalidade diferente daquela do desejo de dominação, mas baseada na vontade do serviço. Converter-se à fraternidade é passar pouco a pouco da atitude de dominador que existe em cada um de nós à do servo dos irmãos: “Nenhum irmãos onde quer que esteja para servir ou trabalhar para outrem, jamais seja capataz, nem administrador, nem exerça cargo de direção na casa em que serve, nem aceite emprego que possa causar escândalo ou perder a alma. Em vez disso sejam os menores e submissos a todos os que moram na mesma casa” (RNB 7, 1-3). Francisco fará do serviço mútuo, vivido no espirito do minorismo, da igualdade, simplicidade e humildade, um dos fundamentos da fraternidade. “E onde quer que estejam irmãos que sabem e reconhecem não poderem observar a Regra espiritualmente, devem e podem recorrer a seus ministros. O ministros, porém, caridosa e benignamente os recebam e os tratem com tanta familiaridade, que os irmãos possam falar e haver-se com eles como senhores para com seus servos; pois assim deve ser que os ministros sejam servos de todos os irmãos” (RB 10, 5-6).

7. Atentos às necessidades dos outros – Tornar-se irmão é aprender a estar à disposição e serviço dos outros. Para tanto será fundamental prestar atenção às suas necessidades. Supõe proximidade física e interior. Só existe fraternidade quando as pessoas pode dar e receber em toda confiança. O coração da vida fraterna é precisamente esse dar e receber: “E onde quer que estiverem e se encontrarem os irmãos, mostrem-se afáveis entre si. E, com confiança, manifeste um ao outro as suas necessidades, porque se uma mãe nutre seu filho carnal, com quanto maior diligência não deve cada um amar e nutrir seu irmão espiritual? E se algum deles cair doente, os outros irmãos, o devem servir, como gostariam de ser servidos” (RB 6, 7-9). Não é mero acaso que, neste mesmo capítulo, Francisco fale de pobreza e relações fraternas. Pobre é alguém que vive na necessidade. Cada um de nós é pobre de alguma coisa. Para vir em socorro de nossas necessidades Deus nos dá irmãos e irmãs. Deus cuida de nós através de Deus. Eles são para nós expressões da providência de Deus. O homem satisfeito consigo mesmo nunca será um irmão. “A fraternidade supõe homens e mulheres que, ao mesmo tempo, dão e recebem. Se no seio de um casal, numa comunidade, numa vida coletiva local, nacional ou internacional, são sempre os mesmos que dão e mesmos os que recebem não há fraternidade. O paternalismo gera sempre seres infantilizados ou assistidos e não irmãos e irmãs. Francisco se deu conta da complexidade dos relacionamentos humanos. Eles serão somente criativos na medida em que se derem trocas respeitosas, reciprocidade vital e se ajudam o outro a ser ele mesmo” (Hubaut, p. 79). Francisco recorre à imagem da mãe para caracterizar os relacionamentos fraternos: evoca esse relacionamento vigilante, intuitivo da mãe para com os filhos. Não se trata de dar por dar mas dar a partir da fonte do amor. A qualidade dos relacionamentos pessoais entre as pessoas é o verdadeiro indicador de que existe uma vida interior em que cada frade e em casa pessoa.

Frei Almir Guimarães

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