“Forma de Vida da Ordem das Irmãs Pobres”
Um recente documento da Sagrada Congregação para os Institutos de Vida Consagrada e Sociedades de Vida Apostólica inicia pontificando que a renovação adequada dos institutos religiosos depende principalmente da formação dos seus membros (1).
João Paulo II, por sua vez, na Exortação apostólica pós-sinodal Vita Consecrata, assim se expressa: “No seguimento de Cristo e no amor pela sua Pessoa, existem alguns pontos referentes ao crescimento da santidade na vida consagrada, que atualmente merecem ser colocados em particular evidência. Antes de mais, exige-se a fidelidade ao carisma de fundação e sucessivo patrimônio espiritual de cada Instituto. Precisamente nessa fidelidade à inspiração dos fundadores e fundadoras, dom do Espírito Santo, se descobrem mais facilmente e se revivem com maior fervor os elementos essenciais da vida consagrada”(2).
A crise de identidade, que perpassa quase todos os segmentos da Igreja, aflorada já há mais de meio século, e assumida com fé e coragem pelo Concílio Vaticano II, ainda não encontrou uma concretização que satisfaça plenamente os princípios e as esperanças dos documentos conciliares e do próprio Evangelho. Talvez seja porque ainda não estejamos suficientemente esclarecidos ou pouco determinados quanto a busca de uma renovação espelhada na pureza e no vigor das fontes originárias do Evangelho e do carisma de nossos fundadores.
Nem por isso, porém, podemos ignorar os esforços, tentativas e avanços que desde então, em todos os níveis, oficiais e particulares, vêm se dando e surgindo na Igreja e nas diversas Ordens e Congregações.
Entre nós, franciscanos das diversas Ordens e Congregações, deve-se realçar a retomada da formação, em todos os níveis, baseada nos textos-fontes, “vulgarmente chamados de Fontes Franciscanas (FF). E entre esses, as Regras dos respectivos fundadores, no nosso caso, a Forma de Vida da Ordem das Irmãs Pobres, também conhecida, usualmente, hoje, como Regra de Santa Clara.
Aos poucos vai se evidenciando que o caminho mais apropriado para uma formação genuinamente clariana, uma formação que leve a imprimir cada vez mais nitidamente em nossa vida os traços característicos de nossa origem, deve seguir um único caminho: nossa Forma de Vida.
A retomada da Regra como manual de nossa formação baseia-se na prática da própria mãe e fundadora, Santa Clara. Foi essa Forma de Vida, recebida das mãos do próprio pai Francisco, que orientou e conduziu seus passos no seguimento de Cristo pobre. Pode-se, pois, ter certeza que, se fizermos deste texto-fonte o espelho de nossa formação, o pão de cada dia de nossa caminhada vocacional, mediante uma leitura reflexiva e assídua, também nós, aos poucos, haveremos de haurir o espírito, a alma e a vida que tanto encantaram e vivificaram Clara e suas companheiras na origem de nossa Ordem.
Anima-nos abraçar e seguir esse caminho, também, o testemunho das primeiras seguidoras de Clara.
Segundo cientistas que, recentemente, analisaram o estado físico do pergaminho de nossa Forma de Vida(3) concluíram que os diversos danos encontrados, principalmente nas bordas externas, são devidos não apenas às vicissitudes do tempo, mas, também, ao uso. Isso significa que, após a morte da mãe, santa Clara, suas Irmãs em vez de guardarem o referido pergaminho como relíquia destinada a satisfazer uma simples e mera devoção espiritualista, usavam-no, antes, e acima de tudo, como precioso documento de leitura, estudo e investigação de nossa Forma de Vida.
Mas, para podermos seguir, pura e simplesmente, essa Forma de Vida, a exemplo de Clara e das primeiras Irmãs, precisamos também nós pagar o preço da unicidade. Isso significa e exige que não misturemos nossa formação com outras formas de vida, por mais simpáticas ou úteis que nos pareçam.
Recordemos, por exemplo, o quanto ela, com humildade, mas, também, com uma tenacidade desconcertante, jamais aceitou da Igreja outra Forma de Vida. E quando o Papa Gregório IX quis dissuadi-la da Pobreza evangélica radical ela lhe respondeu: “Santo pai, de jeito nenhum desejo ser dispensada de seguir Cristo para sempre”(4).
A luta de Clara por essa Forma de Vida – centralizada na pobreza radical de Jesus Cristo, na ligação espiritual com Francisco e sua Ordem, na Vida enclausurada-contemplativa e profundamente enraizada da fraternidade apostólica, descentralizada e sem privilégios – deveria impregnar hoje, todos os nossos esforços e empreendimentos na busca de uma formação verdadeiramente clariana, tanto no início como no meio e no fim de toda a nossa vida.
Com razão, como muito bem o afirmam nossas CCGG, deve-se dar a ela, a Forma de Vida, a mesma consideração que Francisco dava a sua Regra, assim descrita por Tomás de Celano: “Dizia aos seus que a Regra era o livro da vida, a esperança da salvação, a medula do Evangelho, o caminho da perfeição, a chave do paraíso, o pacto da aliança eterna. Queria que todos a possuíssem e que todos a conhecessem, que em qualquer lugar fosse tema para a sua conversa, servindo para lembrar ao homem interior o juramento que tinha feito. Ensinou que sempre se devia ter a Regra diante dos olhos para dirigir a vida e, até mais, que com ela se deveria morrer”(5).
Passou-se, pois, o tempo em que se entrava na Ordem ignorando a existência desse escrito ou ouvindo-se sua leitura, em latim e apenas “pro forma”, durante as refeições às sextas-feiras. Aos poucos, principalmente nas últimas décadas, aqui e acolá, ainda que timidamente, o desejo de Francisco, acima testemunhado, está sendo retomado por muitos.
A busca de um aprofundamento da Forma de Vida revelada pelo Senhor a Francisco e Clara, contida e expressa em sua Regra ou Forma de Vida e outros Escritos, não é tarefa fácil e pequena. Exige dedicação permanente de leitura, reflexão e estudo, em contínuo confronto com “nossa” vida, “nossa” formação e os sinais dos tempos.
Há, porém, um tempo no qual, segundo a tradição franciscana, a Regra ser o centro de todas as atenções dos formandos e formadores: o Noviciado. Se toda a vida do franciscano deve ser um confrontar-se com a Regra, muito mais deverá sê-lo durante o Noviciado; se para toda sua vida a Irmã deve ter a Regra como espelho e manual de aprendizagem do seguimento de Cristo, muito mais deverá sê-lo nesta etapa da iniciação franciscana. E, convenhamos, nada melhor para se assegurar uma boa caminhada do que garantir, já de saída, um bom início. Fundamentar, na prática diária e desde o início, a formação em nossa Forma de Vida é o que de mais útil e seguro podemos fazer durante o tempo da formação permanente inicial.
Por isso, as reflexões aqui oferecidas devem ser tidas apenas como mero subsídio à leitura e ao estudo do próprio texto da Regra. Jamais como sua substituição. O que importa é que as tenhamos apenas como um auxílio para cada um de nós intuir e perfazer o movimento reflexivo originário desta Forma de Vida, da qual se formou e se consumou essa sua tessitura.
Nosso estudo vai seguir o processo pedagógico da Sagrada Escritura, tão caro a Francisco, Clara e a primeira geração de Frades e de Irmãs: o caminho artesanal do bem-fazer de Deus com suas características bem concretas e próprias. Assim, pouco a pouco e pacientemente, iremos nos confrontando com o próprio texto, mediante uma leitura que estranha, considera, questiona, pensa, reflete e que, sempre de novo, retoma ao texto originário para, sempre mais e melhor ver, mais e melhor pensar, mais e melhor considerar o que já se viu. pensou e considerou(6). Para isso, sempre e em primeiro lugar, como elemento mais significativo, como ponto de partida e de contínua referência, colocaremos o próprio texto da Forma de Vida: a Regra de Santa Clara.
Finalmente, com o título Para rever e guardar na memória, concluiremos cada capítulo com o exercício da revisão e da memorização. Através de algumas questões tentaremos ver de novo as sementes de vida evangélico-franciscana mais significativas e que convém ser levadas para o âmago mais profundo de nossa alma franciscana a fim de que, através do exercício da memorização e da meditação, possam fecundar, germinar e florescer ao longo de nossa caminhada.
Além de todas essas observações deve-se considerar, ainda, acima de tudo e principalmente, que este texto, antes de ser devedor à subjetividade de Clara, Francisco ou de quem quer que seja, nasce, se estrutura e se move a partir da dinâmica da História Sagrada. A História Sagrada só fala do encontro e não de fatos-coisas, conteúdos, dados ou ocorrências e nem mesmo de exposição de uma doutrina. É, pura e simplesmente, ressonância de uma história de encontro. Em nosso caso do encontro de Jesus Cristo crucificado com São Francisco e Santa Clara e com cada um de nós, seus seguidores.
Quando se diz história sagrada, história de encontro, estamos nos referindo a uma realidade totalmente fora do alcance de Francisco e Clara ou de quem quer que seja, absolutamente inacessível por pertencer inteiramente ao mundo da gratuidade e da liberdade da afeição, do atingimento.
O mundo da gratuidade e da liberdade do encontro, da amizade, portanto, não é conquista nossa, muito menos do nosso domínio. E não o é, não porque ainda não tenhamos encontrado um meio de compreendê-lo, conquistá-lo ou dominá-lo, mas, tão só e simplesmente, porque essa é sua essência íntima, seu modo de ser, sua natureza. O enamoramento, a amizade não se compram nem se vendem, mas se recebem, se agradecem, se amam e se cultivam.
Nesse sentido a resposta que Francisco e nós vamos dar a Deus, o nosso “Sim” do encontro também é inacessível ao próprio Deus, pois, o Amor do Encontro, jamais pode ser possuído ou conquistado como uma coisa sobre a qual temos poder e domínio a partir de nós. É absolutamente inacessível porque se trata de doação livre, de puro bem-querer. Toda essa nossa inacessibilidade à doação do encontro vem muito bem descrita por Santo Agostinho: “Tarde te amei, ó beleza tão antiga e tão nova, tarde te amei. Estavas dentro e eu fora te procurava. Precipitava-me eu disforme, sobre as coisas formosas que fizeste. Estavas comigo, contigo eu não estava. As criaturas retinham-me longe de ti, aquelas que não existiriam se não estivessem em ti. Chamaste e gritaste e rompeste a minha surdez. Cintilaste, resplendeceste e afugentaste minha cegueira. Exalaste perfume, aspirei-o e anseio por ti. Provei, tenho fome e tenho sede. Tocaste-me e abrasei-me no desejo de tua paz”(7).
Por isso, ao entrarmos no processo de leitura e reflexão desse texto espiritual, não queremos fazê-lo de outra forma senão com os sentimentos, o jeito e o espírito de Francisco. Esse espírito vem muito bem demonstrado nessa oração que ele fez em 1205, na igrejinha de São Damião, quando foi colhido e acolhido pela graça do encontro com o Crucificado:
“Altíssimo glorioso Dio, illumina le tenebre de lo core mio,
Altíssimo glorioso Deus, ilumina as trevas do meu coração,
et dame fede dricta, sperança certa e caritate perfecta,
e dá-me fé reta, esperança certa e caridade perfeita,
senno et cognoscemento, signore,
senso e conhecimento, Senhor,
che faça lo tuo santo e verace commandamento. Amen!
que eu faça teu santo e veraz mandato. Amém!” (8)
Frei Dorvalino Fassini
Notas
1. OFIR
2. VC 36
3. Cf.Il Vangelo come forma di vita, in ascolto di Chiara nella sua Regola. Federazione S. Chiara di Assisi delle Clarisse di Umbria-Sardenha, Edizioni Messaggero, Padova, 2007, pág. 22.
4.LCL 14.7. cf. CCGG da nossa Ordem art. 15, & 1. No & 3 lemos: “Todos os pontos da Regra devem ser entendidos segundo a mente de São Francisco e de Santa Clara”.
5. 2C 208.
6. Por “estudo”, entendemos aqui a formação praticada na Escola dos Apóstolos de Jesus e de Francisco com seus companheiros: um apaixonado e contínuo empenho para, em e com todos os acontecimentos, pessoas e demais criaturas, com todo o coração, com toda a alma, mente, vontade e inteligência, compreender, seguir e imitar o modo humilde, pobre e crucificado de Cristo viver. Informações mais precisas a respeito desse tipo de estudo e leitura, o leitor poderá encontrar em Leitura Espiritual e Formação Franciscana, Frei Dorvalino Fassini, Vozes, 1996.
7. Santo Agostinho, Ofício das Leituras, Quinta-feira da Oitava Semana do Tempo Comum.
8 OC.