Clara, defensora de Assis
Por Frei Vitório Mazzuco Filho
Conta-nos a Legenda de Santa Clara, no parágrafo 23: “Em outra ocasião, Vital de Aversa, homem cobiçoso de glória e intrépido nas batalhas, moveu contra Assis o exército imperial, que comandava. Despiu a terra de suas árvores, assolou todos os arredores e acabou pondo cerco à cidade. Declarou ameaçadoramente que de nenhum modo se retiraria, enquanto não a tivesse tomado. De fato, já havia chegado o ponto em que se temia a queda iminente da cidade.
Quando Clara, a serva de Cristo, soube disso, suspirou veementemente, chamou as Irmãs e disse: “Filhas queridas, recebemos todos os dias muitos bens desta cidade. Seria muita ingratidão se, na hora em que precisa, não a socorrêssemos como podemos”.
Mandou trazer cinza, disse às Irmãs que descobrissem a cabeça. E, primeiro, espalhou muita cinza sobre a cabeça nua. Colocou-a depois também sobre as cabeças delas. Então disse: “Vão suplicar a nosso Senhor com todo o coração a libertação da cidade”.
Para que contar detalhes? Que direi das lágrimas das virgens, de suas preces “violentas”? Na manhã seguinte, Deus misericordioso deu a saída para o perigo: o exército debandou e o soberbo, contra os planos, foi embora e nunca mais oprimiu aquelas terras. Pouco depois o comandante guerreiro foi morto a espada”.
E, também, lemos no Processo de Canonização, nº 14: “A testemunha também disse que, temendo as Irmãs a chegada dos sarracenos, tártaros e outros infiéis, pediram à santa madre que insistisse muito diante do Senhor para que o mosteiro fosse defendido contra eles. E a madre santa lhes respondeu: ” Irmãs e filhas minhas, não fiquem com medo, porque o Senhor as defenderá. E eu quero ser a sua garantia. Se os inimigos chegarem até o mosteiro, coloquem-me diante deles”. Assim, pelas orações de tão santa madre, o mosteiro, as Irmãs e os objetos não sofreram dano algum”.
Estamos em Assis entre 1239 e 1241. Há tensão na cidade. Cavaleiros, mercadores, voluntários, populares, soldados, todos se posicionam para defender a cidade que tanto amam. Às portas da cidade se acampam os guerreiros sarracenos comandados por Frederico II, que se bate contra os “minori”, conseqüentemente contra o Papa. No dia 3 de junho de 1239 acontece um eclipse do sol, um fenômeno natural; mas o povo interpreta de um modo apocalíptico aquela escuridão que permite ver estrelas de dia. O medo sempre antecipa o fim do mundo.
No mosteiro de São Damião, Clara e suas Irmãs rezam pela cidade. A prece e penitência contra as armas da guerra. Aquele lugar seguro de paz pode virar fortaleza de combate.
Na Ordem dos Frades Menores, Frei Elias quer mediar o conflito entre o exército imperial e o exército pontifício, escreve uma carta e encarrega o Geral da Ordem, Frei Alberto de Pisa, para entregar ao Imperador. Um frade é usado como mensageiro e desaparece no caminho juntamente com o documento. O Papa não aceita que Frei Elias tenha dirigido-se ao Imperador e excomunga-o. A Ordem sofre com isso e Clara também.
O momento é grave, o conflito é grave e a saúde de Clara é frágil. Sua vontade é que está forte, firme e resistente. A hora da provação é a grande oportunidade de reanimar a fé em São Damião e em todo o povo de Assis.
Vital de Aversa comanda com crueldade o exército de Frederico II. Ali ajuntam-se mercenários, muçulmanos, guardas imperiais, bandoleiros, tártaros, sarracenos. É um momento de pilhagens, ruínas, prisões, incêndios, violência que arrasa igrejas, mosteiros, castelos, casas e burgos. Clara monta guarda com professas e noviças. Pela palavra e pelo exemplo é a hora da mais fervorosa oração. Oração de mãe é segurança e proteção.
Já haviam destruído os mosteiros de São Bento de Satriano, Santo Angelo de Panzo e São Vitorino de Tescio. Será que chegara a hora de São Damião? Será que era o momento do martírio?
O ideal de Francisco e a paz que vem do Evangelho estão postos à prova. Clara ama o mosteiro, suas Irmãs e Assis. É hora de oferecer-se por todos. Clara chama as Irmãs, abençoa cada uma com o sinal da cruz. As tropas que estão nas portas do mosteiro jamais poderão vencer este escudo de amor e oração.
Pede que se busque a caixa de marfim onde está o Santíssimo Sacramento. Pede ao Senhor que guarde e proteja as Pobres Damas e a cidade a elas confiada. Com a força do espírito, o rosto resplandecendo da beleza da graça, Clara segura firme a Hóstia e vai em direção aos invasores. Os soldados surpreendem-se com a presença da frágil mulher mostrando o sacramento da sua fé, afastam-se surpresos entre pavor e misteriosa reverência. É um verdadeiro milagre! Toda a cidade de Assis comenta no outono inteiro. O coração pleno de amor e cuidado, a presença convicta de mãe Clara afastara todo perigo.
Conta-nos Frei José Carlos Pedroso no seu livro Santa Clara de Assis: “Por causa desse fato, até hoje as figuras mais comuns de Santa Clara mostram-na como uma freira segurando uma custódia. Custódia é aquela roda dourada, cheia de raios, que se usa nas adorações e nas procissões do Santíssimo Sacramento da Eucaristia. Mas as Irmãs que assistiram ao fato disseram que a Eucaristia foi levada em uma caixinha de marfim e prata, como era comum naquele tempo. As custódias ainda não estavam em uso”.
Não importa se era um ostensório, uma custódia, uma caixinha de marfim, o que importa é que São Damião e Assis foram salvos pela oração de libertação: prece, penitência, cinza na cabeça e a certeza da presença do Cristo Eucarístico. O certo é que até hoje a cidade de Assis, no dia 21 de junho, faz a Festa del Voto, pois acredita que ali houve o milagre e a certeza de que não é possível derrotar uma mulher e um povo que crê!