A dimensão penitencial
Frei Orlando Bernardi
O capítulo III da Regra de Santa Clara se intitula: Sobre o ofício divino e o jejum, a confissão e a comunhão e que corresponde ao capítulo III da Regra bulada de S. Francisco que trata do ofício divino e o jejum e como devem os irmãos ir pelo mundo. Os dois primeiros elementos de ambas as Regras, quer dizer, o ofício divino e o jejum, são praticamente iguais. As diferenças se mostram no último elemento, onde se focaliza a vida dos frades como itinerantes e a das damas pobres como contemplativas. No entanto, note-se que o conteúdo dos capítulos de ambas as Regras fazem ainda parte da dimensão penitencial, ou melhor, do caminho de conversão que para Francisco e sua plantinha consistia na vida de penitência. A característica dos frades itinerantes se mostra no “não discutir, não julgar, no ser manso, pacífico, modesto, brando, humilde e no falar a todos honestamente como convém”. Para as damas pobres o comportamento cotidiano se resume na confissão e na comunhão. Sem grandes intuições ou reflexões percebe-se, de imediato, o quanto as propostas de Clara com a confissão e a comunhão possuem de práticas penitenciais para o comportamento cotidiano daquelas que escolheram a vida contemplativa. Enquanto a dimensão penitencial de Francisco se traduz em não discutir, não julgar, mas em ser manso, pacífico, modesto, brando e humilde, a confissão e a comunhão de Clara incluem a dimensão da misericórdia com todos os seus desdobramentos divinos e humanos e a dimensão da comunhão com a tradução do cotidiano que tende em se transformar em eucaristia, dom ou entrega diária para o louvor do Pai. Com isso se tenta afirmar que não se pode celebrar qualquer liturgia que deveria dar o ritmo a qualquer trabalho diário sem a reconciliação consigo mesmo e com os irmãos e sem um silencioso diálogo com o TU que sustenta o compromisso de ser seguidor de Francisco ou de Clara.
É por isso que o primeiro ponto do capítulo de ambas as Regras trata do ofício divino, pois é esse entrar em comunhão dialogante com o TU divino que dá o suporte para que a opção de seguir os passos de Jesus pobre e crucificado se torne concreta e eficiente. Daí que tanto Francisco como Clara insistem para que não se perca o “espírito de oração e seu santo modo de operar”, pois é ele que dará o tom certo para quem quiser viver a forma ou a perfeição do santo Evangelho. O Ofício divino se traduz, então, em oferenda ou dom perfeito não de qualquer coisa material, mas como dom da oração em seu duplo sentido: uma vez como dom do próprio Pai que se dá em seu Filho, feito nossa carne e celebrado nos divinos mistérios, cantado no Ofício e contemplado na oração silenciosa e ainda como nossa participação na comunhão que se traduz em conformidade cada vez maior com Cristo pobre e crucificado. Para que nossas celebrações e nossos ofícios não sejam apenas ritos formais, faz-se necessário que os anteceda e os siga a reconciliação consigo mesmo e com os irmãos como premissa e conclusão de tudo.
O equilíbrio, tanto de Francisco como de Clara, nesse caminho penitencial se manifesta principalmente a respeito dos irmãos e irmãs, mesmo se, pessoalmente, ambos não o souberam realizar em si mesmos. De Francisco lembra-se apenas o episódio do irmão que no meio da noite grita porque está com fome e Francisco faz todo mundo se levantar e que seja feita uma sopa para todos a fim de que o irmão não se envergonhe em comer sozinho (2C 22; LP 1 [CA 50]; EP 27). De Clara cite-se apenas esse trecho da 3ª Carta a Inês de Praga (38-41): “Entretanto, como não temos carne de bronze nem a robustez de uma rocha (Jo 6,12), pois até somos frágeis e inclinadas a toda debilidade corporal, rogo e suplico no Senhor, querida, que deixe, com sabedoria e discrição, essa austeridade exagerada e impossível que eu soube que você empreendeu, para que, vivendo, sua vida seja louvor (cf. Is 38,19; Sir 17,27) do Senhor, e para que preste a seu Senhor um culto racional (cf. Rm 12,1) e seu sacrifício seja sempre temperado com sal (Lv 2,13; Cl 4,6)”.
Por fim, uma palavra sobre a Eucaristia que a Francisco era tão cara porque via nela a realização cotidiana da encarnação do Verbo segundo aquelas maravilhosas palavras da Carta a toda a Ordem (26-29). Em Clara, porém, não se encontra em seus escritos algo parecido a não ser o que se diz nesse capítulo da Regra que as irmãs comunguem por ocasião das festas ali indicadas. Contudo, no Processo (9,10; 2,11; 3,7) encontram-se algumas referências que indicam que a dimensão eucarística já tomara rumos de uma contemplação e comunhão a ponto de se transformar em cotidiano eucarístico, ou melhor, o cotidiano revelava as consequências do viver eucarístico com o Jesus pobre e crucificado.