O testamento de Clara e a Ordem dos Frades Menores
Foi bem recentemente que o Testamento de Clara mereceu maior atenção por parte dos estudiosos das Fontes Franciscanas e Clarianas, dos frades e das clarissas. Não havia uma transmissão do texto latino. Dispunha-se de alguns exemplares do Testamento em velho francês e em alemão, línguas que provavelmente Clara não conhecia. Dispúnhamos de poucos estudos a respeito, salvo comunicações para discutir sua autenticidade. Nos últimos decênios foram descobertos manuscritos latinos e feitas edições críticas do Testamento. Estabeleceu-se a autenticidade do texto. Hoje, ele pode receber a atenção que merece. Jean-François Godet, especialista no estudo das Fontes Franciscanas, escreve sobre o Testamento. O estudo de Godet foi publicado na revista “Évangile Aujourd’hui”, n. 234, p. 41-46. Aqui, apresentamos uma condensação de seu texto, esperando termos sido fiéis ao estudo.
Tudo leva a crer que Clara tenha composto seu Testamento quando se deu conta que seus dias tocavam o fim. Já tinha ela escrito a Forma de Vida de São Damião que havia recebido a aprovação do cardeal Rainaldo, protetor dos frades e das senhoras pobres. Em 1253, faltava ainda a aprovação do Papa Inocêncio IV. Caso Clara viesse a morrer antes de chegar uma confirmação oficial papal por escrito, ela decide, então, resumir, num único escrito, o que era importante, fundamental e essencial em sua Forma de Vida. Escreve um Testamento para suas irmãs. Mas não somente para elas: “…recomendo a todas as minhas irmãs, atuais e futuras, à Santa Igreja romana, ao sumo pontífice e, principalmente, ao Senhor Cardeal que for encarregado da ordem dos Frades Menores e de nós (TestCl 44)”. E um pouco mais adiante: “E assim recomendo e confio minhas irmãs, presentes e futuras, ao sucessor de nosso Pai São Francisco e a toda Ordem” (TestCl 50). Como Francisco, Clara queria que suas irmãs permanecessem no seio da Igreja e as confiava ao papa, mas sobretudo ao cardeal que fosse nomeado para ser “governador, protetor e corretor” da Ordem dos Frades Menores. O texto que apresentamos deseja colocar em realce os elementos da Forma de Vida de Clara que ela quer destacar e salientar no Testamento.
Os elementos essenciais da Forma de Vida de São Damião que Clara recorda no Testamento estão contidos, de modo particular, no capítulo VI da Regra. Este texto é o âmago e coração da Forma de Vida.
Viver a pobreza de Jesus – Antes de tudo, Clara e suas irmãs abraçaram a vida evangélica de penitência. Esta conversão levou-as a viver na santa pobreza, na pobreza de Jesus: nada possuindo, de nada se apropriando.
Tal compromisso com a pobreza será observado até o fim. De nada se apropriarão e nada aceitarão além do que lhes for absolutamente necessário. Este é o “caminho e a mais alta pobreza” de Jesus que elas desejam seguir.
Cuidados fraternos recíprocos – Clara e suas irmãs foram chamadas a levar este gênero de vida pelo exemplo de Francisco. Em seu Testamento, Clara menciona Francisco 17 vezes. Todas as vezes para apresentar sua autoridade e sua santidade como garantia da maneira que tinham elas de viver a pobreza de Francisco. Todas as vezes o nome de Francisco é colocado em destaque por meio de certas palavras: “pai santo”, “bem-aventurado”, “muito bem-aventurado”. Com sua maneira de falar, Clara afirma com nitidez que Francisco foi para ela e as irmãs instrumento do chamamento de Deus, da misericórdia e da graça do Senhor. Clara, desta forma, se intitula “plantinha”, plantinha de Francisco. Em linguagem medieval, isto quer dizer que ela e suas irmãs de São Damião foram fundadas por Francisco. Não se trata de uma imagem poética ou romântica, mas de um estatuto oficial. Está bem explicitado: ela e suas irmãs responderam ao chamado de Deus abraçando a maneira de viver de Francisco e prometendo-lhe obediência.
Francisco deve ter ficado um pouco surpreso ou embaraçado com tal afirmação porque na verdade , segundo Clara, ele sabia que elas administravam bem as dificuldades da vida no campo da pobreza evangélica. Francisco se deu bem conta que ela, como seus frades, tinham “garra”, estavam, se podemos dizer, no mesmo plano. Por isso, Clara escreveu: “… assumiu o compromisso, por si e por sua Ordem, de ter sempre por nós o mesmo cuidado diligente e a mesma atenção especial que tinha para com os seus irmãos” (TestCl 29).
O compromisso de Francisco ia além de prometer cuidar de Clara e de suas irmãs como cuidava de seus frades. Obrigava também seus frades a se ocupar das irmãs de São Damião. Os frades e as irmãs viviam da mesma maneira o caminho evangélico. Uns e outros constituíam a mesma fraternitas.
São Damião, depositário da inspiração de Francisco – Em seu Testamento, Clara lembra a situação que viviam quarenta anos antes esses homens e essas mulheres pertencendo à mesma fraternitas, vivendo a pobreza evangélica e cuidando das necessidades uns dos outros, os frades nas estradas do mundo e as irmãs em São Damião. Eles andarilhos itinerantes, elas sedentárias, mas todos vivendo a mesma forma de vida segundo o Evangelho. No momento em que Clara escreve seu Testamento, muita coisa havia mudado.
Os irmãos tinham se tornado uma Ordem religiosa, a Ordem dos Frades Menores, oficialmente reconhecida pela Igreja. Depois da morte de São Francisco, a Ordem dos Menores se difundiu com sucesso e se tornou uma Ordem clerical. Os frades prestavam serviço à Igreja através dos ministério sacerdotal, da pregação e do ensino da teologia. Alguns deles chegaram a ser tornar bispos.
Tal evolução mudara a maneira de viver dos Frades Menores e seu modo de relacionamento com as pessoas em geral e, em particular, com as Irmãs Pobres de São Damião.
Depois da morte de São Francisco, Clara haveria de lutar para conservar a identidade de São Damião, como também da fraternitas. Sabia ela muito bem que os frades e as irmãs precisavam uns dos outros para poderem observar fielmente a pobreza evangélica que haviam prometido.
Sabiam-no também os companheiros de Francisco e, por isso, mantinham estreito relacionamento com Clara. São Damião se tornou o depositário da inspiração de Francisco. Na Vida de São Francisco, composta pouco depois da canonização de São Francisco, em 1228, Tomás de Celano elogiava a “ gloriosa religião da excelente Ordem das Senhoras Pobres, que vivia na igreja de São Damião”. Não hesitou em decantar longamente as virtudes da Senhora Clara, pedra preciosíssima (cf. 1Cel 18-19).
Autoridade das irmãs sobre os frades? – Alguns anos mais tarde, em sua primeira carta a Inês de Praga, Clara alude à alegoria do Sacro Comércio de Francisco com a Senhora Pobreza: “Que grande e louvável comércio: deixar os bens temporais pelos eternos, merecer os bens celestes em vez dos terrestres, receber cem por um e possuir a vida feliz para sempre” (1In 30). Pouco após, quando Inês de Praga teve certas dificuldades com o Papa Gregório IX que queria lhe impor suas próprias constituições à nova comunidade de Praga, Clara pede que ela siga a orientação de Frei Elias, o ministro geral (2In 15-16). Elias era o irmão que Francisco havia colocado à frente da fraternitas. Clara o considerava tanto ministro dos frades quanto das irmãs.
Outros episódios dos começos realçam o papel das mulheres de São Damião. A Legenda dos Três Companheiros, escrita em 1246, talvez por Frei Rufino, primo de Clara, relata a história de Francisco trabalhando na restauração da igreja de São Damião, profetizando que aquele lugar “se tornaria um mosteiro de senhoras por cuja fama e vida na Igreja universal será glorificado o nosso Pai celeste” (3Comp 24).
Clara fará novamente o relato da história em seu Testamento. Acrescentará, no entanto, que na época, Francisco não tinha irmãos, nem companheiros. (TestCl 9-17), sugerindo assim que a existência das irmãs fora interior à dos frades!
Em 1247 em seu Memorial no desejo da alma, Tomás de Celano repetirá os louvores às Senhoras Pobres de São Damião, colocando na boca de Francisco “que um só e mesmo espírito havia tirado do mundo os irmãos e aquelas senhoras pobrezinhas” (2Cel 204).
Finalmente, na Legenda de Santa Clara, que Celano escreveu em 1255, está dito claramente que dois companheiros de Francisco estão à cabeceira de Clara quando ela morreu: Frei Leão e Frei Ângelo (LegCl 45).
Todos estes documentos ilustram não somente o fato que, após a morte de Francisco, seus companheiros conservaram alta estima por Clara e suas irmãs, mais que também juntos – e talvez sob a direção moral de Clara – conservaram, o melhor que puderam, a fraternitas dos primeiros tempos durante a evolução das coisas que haveriam de distanciar os irmãos das irmãs.
Isto explica o fato de que sempre de novo Clara pediu ajuda e apoio dos Frades Menores para ser fiel à vida evangélica de pobreza que eles e elas haviam prometido, lembrando-lhes que Francisco haviam se comprometido pessoalmente, comprometendo também os irmãos.
Missão fraterna até o fim
Francisco, de fato, havia prometido cuidar das irmãs como cuidava dos irmãos. Clara haverá de lembrar essa promessa, ao mesmo tempo para uns e para outros, na Forma de Vida (RegCl 6,2) e em seu Testamento (TestCl 33). Que Francisco tenha honrado sua promessa pode se provar por dois outros documentos. O primeiro são uns louvores (lauda) que ele compôs para Senhoras Pobres nos primeiros meses de 1225. Por aquela ocasião, o Poverello estava muito doente e “morava” junto de São Damião. Foi a época em que compôs seu belo Cântico do Irmão Sol, e pouco depois, com grande amor, um outro Cântico para irmãs (Audite Poverelle). O segundo e último documento de que dispomos, citado por Clara em sua Forma de Vida, foi escrito pouco antes de sua morte e foi, segundo os termos de Clara, expressão de sua última vontade para as irmãs: “Eu, Frei Francisco, pequenino, quero seguir a vida e a pobreza de nosso altíssimo Senhor Jesus Cristo e de sua Mãe santíssima, e perseverar nela até o fim e rogo-vos, senhoras minhas, e dou-vos conselho para que vivais sempre nesta santíssima vida e pobreza. E estai muito atentas para que, de maneira alguma, vos afastardes dela por doutrina ou conselho de alguém” (RegCl 6,7).
Tendo em mente tudo o que fez Clara depois da morte de Francisco fica claro que não somente ela recebeu a mensagem, mas que a considerava como uma missão.
Frei Almir Ribeiro Guimarães