Clara ontem e hoje
A MEMÓRIA DO PASSADO APONTA PARA O AMANHÃ (*)
Frei Almir Ribeiro Guimarães
1. Terminamos as celebrações dos oitocentos anos do carisma clariano. Naquele domingo de Ramos de 2012, Clara começava a corrida, encetava sua conversão, através da mediação transparente de Francisco e da sua primeira fraternitas. Esse tempo de celebrações nos permitiu entrar em contacto mais profundo com a experiência espiritual de Clara, com aquele carisma que tão alto falou à Igreja de sua época. “Celebrar um centenário é no fundo colocar-se diante do novo, como no princípio, diante de nossa identidade, dizer-nos a nós quem somos, por onde estamos andando, o que nos moveu e o que hoje nos move. É também ocasião de profunda gratidão, e a gratidão supõe a consciência de uma responsabilidade de uma resposta a oferecer Àquele que me interpela hoje. Parece-me que se possa aplicar ao centenário clariano a expressão que o Ministro Geral da Ordem dos Frades Menores usou para o centenário da aprovação da Regra da Ordem Primeira: a graça de nossas origens. Trata-se de uma expressão bonita e fecunda. Graça remete para o agir gratuito, absolutamente livre de Deus, um evento que não depende de modo algum de alguma coisa que o tenha precedido. A graça pode ser acolhida e pode frutificar com nossa livre adesão. Nossas quer dizer pertença. Essa graça nos reúne, é parte indissolúvel de nós. Não podemos falar de nós sem falar desta graça. Origens é palavra muito rica. Quando se fala de início há uma referência a alguma coisa anterior no tempo, começada e concluída no passado; falar de origem é falar de um acontecimento que é fundamento e princípio do qual brota a história e o futuro” Angela Emmanuela Scandella, op. cit. p. 18).
2. Detenhamo-nos agora na palavra memória. Clara é uma mulher de memória. Um texto parece importante para a compreensão do que vem a ser fazer a memória para Clara. “Lembre-se de sua decisão como uma segunda Raquel; não perca de vista seu ponto de partida, conserve o que você tem, faça o que está fazendo e não o deixe mas, em rápida corrida, com passo ligeiro e pé seguro, de modo que seus passos nem recolham a poeira, confiante e alegre avance pelo caminho da bem-aventurança” (2CtIn 11-13).
3. Lembre-se de seu propósito, de sua decisão. Para Clara não se faz memória do que ficou para trás, mas de um pro-positum, de alguma coisa que está colocada diante: pro-ponere; o verbo proponere aponta para solidez, estabilidade. Clara tem em mente a categoria bíblica do memorial, que é muito mais do que uma simples recordação, uma atividade intelectiva que se refira apenas ao passado. Ao contrário, é um estar presente ao que aconteceu e que continua acontecendo. É o permanecer de uma presença, de um acontecimento. Não perca de vista o ponto de partida: é volta ao que foi colocado anteriormente, mas dito desta vez com palavras que remetem ao passado. Para Clara, diante de seus olhos não apenas o que está à frente, mas alguma coisa que de per si está atrás, no passado. Quando se olha para o passado não é mero sentimentalismo, mas atitude de quem sabe que naquele passado estão as origens, que fundamenta tudo, alguma coisa que deslancha um movimento interior.
4. Faça o que está fazendo e não o deixe. Vive-se o presente como memorial das origens, guardando marianamente tudo no coração. Trata-se do célebre mote dos Padre: age quod agis, que quer dizer estar presente plenamente naquilo que se vive, uma presença que nos encontra, nos interpela no instante. Com a conotação da totalidade. A totalidade para Clara é a lei da resposta à vocação.
5. “A referência a Raquel, segundo a etimologia dos Padres, remete de imediato à vida contemplativa. É conhecido o fato de que Gregório Magno serviu-se da imagem das duas mulheres de Jacó, Raquel e Lia, respectivamente como figuras da vida contemplativa e da vida ativa. Raquel é a visão do princípio e Lia é a laboriosa, a trabalhadeira. Vale a pena prestar atenção no pensamento de Gregório para compreender melhor o que Clara quer dizer com sua referência a Raquel. Jacó deseja Raquel, a visão do princípio, mas antes deve desposar Lia: o age quod agis precede. Raquel é aquela que Jacó esperou até à plenitude dos tempos: 7 anos. Estas observações já nos dizem alguma coisa a respeito da vida contemplativa: paciente aprendizado de estar na espera que certamente se alcançará. Ação e contemplação são dois momentos necessários entre si. Atinge-se os píncaros da contemplação através de toda uma vida transcorrida na cotidianidade laboriosa. Raquel é bela, mas estéril, assim o agir de todos os dias, pela maneira como Lia vive, é fecundo” (p. 19).
6. Clara passa a descrever o dinamismo do seguimento, implícito já no modo como fala do início de tudo: o ponto de partida, quer dizer um movimento, o desdobrar-se de um processo. Clara exprime este dinamismo do seguimento com termos, substantivos e verbos que indicam movimento. O seguimento imprime na vida uma forte tensão para frente, que obriga a interpretar sempre de novo o que significa seguir o Senhor. Tal aconteceu para Clara no aparente paradoxo da clausura e de uma vida que se consumou na impotência de uma longa enfermidade. Trata-se de um correr, de um não parar que é interior, não por isso menos exigente.
7. “Este texto me parece uma extraordinária intuição do que vem a ser a vida contemplativa. Trata-se de um olhar o tempo e o correr da história que contém o que é permanente desde a origem, a forma que a origem vai tomando no tempo que corre, que sabe captar o que se passa e o que não se passa: no interim a unidade; no temporal o eterno; na história o método da Encarnação” (p. 20). Memória é uma palavra de Clara, cheia de atualidade, para uma época que perdeu o senso da história.
(*) Este trabalho se inspira no erudito estudo de Angela Emmanuela Scandelle, OSC, Chiara. ‘Alta donna di contemplazione’. Sette parole per il nostro ‘oggi’, in Italia Francescana, p. 17-28