Privilegium Paupertatis
Frei Vitório Mazzuco Filho
Vamos retomar as palavras da Legenda de Santa Clara, n° 13:
“Com a pobreza de espírito, que é a verdadeira humildade, harmonizava a pobreza de todas as coisas. Logo no começo de sua conversão, desfez-se da herança paterna que recebera e, sem guardar nada para si, deu tudo aos pobres. Depois, deixando o mundo lá fora, com a alma enriquecida interiormente, correu livre, sem bolsa, atrás de Cristo. Fez um pacto tão forte com a santa pobreza, tanto amor lhe consagrou, que nada queria possuir nem permitiu que suas filhas possuíssem, senão o Cristo Senhor. Achava que a preciosíssima pérola do desejo do céu, que comprara depois de vender tudo, não podia ser partilhada com o cuidado devorador dos bens temporais.
Em alocuções frequentes, inculcava nas Irmãs que a comunidade seria agradável a Deus na medida em que fosse opulenta de pobreza e que, munida com a torre da mais alta pobreza, seria estável para sempre. No pequeno ninho da pobreza, animava-as a conformar-se com o Cristo pobre, deitado pela mãe pobrezinha em mísero presépio. Pois afivelava o peito com essa singular lembrança, jóia de ouro, para que o pó terreno não passasse para o interior”.
E no n°14 da mesma Legenda temos o pedido do “Privilégio da Pobreza” para salvar o verdadeiro fundamento da ordem:
“Querendo destacar sua ordem com o título da pobreza, solicitou de Inocêncio III, de feliz memória, o privilégio da pobreza. Esse varão magnífico, congratulando-se por tão grande fervor da virgem, disse que o pedido era raro, pois jamais tal privilégio tinha sido pedido à Sé Apostólica. E para corresponder ao insólito pedido com insólito favor, o Pontífice redigiu de próprio punho com muito gosto, o primeiro rascunho do pretendido privilégio.
O senhor papa Gregório, de feliz memória, digno de veneração pelos méritos pessoais e mais ainda pelo cargo, amava com especial afeto paterno a nossa santa. Quando tentou convencê-la a aceitar algumas propriedades que oferecia com liberalidade pelas circunstâncias e perigos dos tempos, ela resistiu com ânimo fortíssimo e não concordou, absolutamente. Respondeu o Papa: “Se temes pelo voto, nós te desligamos do voto”, mas ela disse: “Pai santo, por preço algum quero ser dispensada de seguir Cristo para sempre”.
Recebia muito alegremente as esmolas em fragmentos e os pedacinhos de pão levados pelos esmoleres. Parecia ficar triste ao ver pães inteiros e pulava de alegria diante dos restos.
Para que falar tanto? Ela se esforçava por conformar-se na mais perfeita pobreza com o pobre Crucificado, para que nada de perecível afastasse a amante do amado ou a impedisse de correr com o Senhor. Conto dois casos admiráveis que a namorada da pobreza mereceu realizar”.
E vamos deixar registrado aqui o texto de 1228, do Papa Gregório IX que copia o “Privilegium” dado por Inocêncio III em 1216: “Gregório, bispo, servo dos servos de Deus, às diletas filhas em Cristo, Clara e demais servas de Cristo, reunidas na igreja de São Damião, diocese de Assis, saudação e bênção apostólica.
Como todos sabem, desejando dedicar-vos unicamente a Deus, renunciastes a todo desejo das coisas temporais, por isso, tendo vendido tudo e dado aos pobres, propondes não ter propriedade alguma, aderindo em tudo aos passos daquele que por nós se fez pobre e é o Caminho, a Verdade e a Vida, e nem a falta das coisas vos afasta desse propósito, pois a esquerda do Esposo celeste está sob a vossa cabeça para sustentar o que é fraco em vosso corpo, que submetestes à lei do espírito com ordenada caridade. Naturalmente, aquele que alimenta os passarinhos do céu e veste os lírios do campo não vos faltará para o alimento e a roupa, até que Ele mesmo, passando, vos sirva na eternidade, quando sua destra vos abraçará mais felizmente na plenitude da visão.
Assim, confirmamos como pedistes, com o favor apostólico, o vosso propósito da mais alta pobreza, concedendo-vos em força deste documento que não possais ser por ninguém obrigadas a receber propriedades. Por isso, a absolutamente ninguém seja permitido infringir esta página de nossa concessão ou agir contra ela com temerária ousadia. Se alguém presumir fazê-lo, saiba que incorrerá na indignação de Deus Onipotente e dos bem-aventurados Apóstolos Pedro e Paulo. Dado em Perusa, aos 17 de setembro, no segundo ano do nosso pontificado”.
Clara de Assis abraçou a Pobreza como um programa de vida. Podemos dizer que ela e Francisco são os únicos verdadeiramente pobres do nosso movimento; nós somos apenas caricatura, pois não conseguimos mais manter a coerência de uma escolha. Para nós, a pobreza é apenas um belo discurso, pois corremos atrás de outros privilégios, porém,Clara sentiu e viveu a experiência do nada, completamente despojada, vazia de tudo, sem dramaticidade, e com muita força entregou-se à ação divina. Fez do seu Mosteiro o lugar da simplicidade para estar sempre nascendo a cada instante. É na simplicidade e na harmonia que se consegue realizar grandes coisas.
No tempo de Clara, a própria eclesiologia e a sociedade achava que um grupo desprotegido de mulheres não sobreviveria sem os cuidados protetores da nobreza, da hierarquia e dos benfeitores. Mosteiro bom é aquele que armazena doações. Clara ensinou a todos que temos que aprender a dar mais do que dotes e bens materiais, temos que aprender a dar o coração. Ela e suas Irmãs tornaram-se pobres e fortes porque não tinham medo de amar.
O “sine-proprium” é o Amor que nos visita, e nesta visita ele vai nos dizer como nos colocamos na posse do uso e dos bens. Só quem ama é pobre. É preciso aprender com Clara a fazer do coração um “sine-proprium” para encontrar a felicidade. A felicidade não é conquistar, mas repartir.
Aquelas Damas Pobres de São Damião renunciaram os coloridos e pomposos trajes da nobreza e vestiram o hábito penitente. As vestes muitas vezes cobrem o corpo, mas não dão a beleza do corpo, mas somente a beleza exuberante das vestes; assim como as muitas palavras que dizemos de Deus não nos dizem Deus, mas apenas do rumor das palavras. Clara e suas Irmãs revestiram-se do Espírito e criaram uma espiritualidade sensível porque tinha as marcas da renúncia. Toda escolha radical implica renúncia. Quando o franciscanismo percebe-se na pobreza do Amor, busca então o concreto do Amor na riqueza de Clara!