Festa de São Francisco. Celebração da Pobreza.
Frei Almir Ribeiro Guimarães, OFM
A conhecida Editora Albin Michel, em sua coleção Spiritualités fez aparecer um texto sobre as celebrações cristãs (Célebrations chétiennes, Albin Michel, Paris 2004), escrito a muitas mãos. Inspiramo-nos no texto Célébration de la pauvreté. Regard sur saint François de Xavier Emmanuelli (p. 211-232) para escrever esta página franciscana.
A muitos olhos (e ouvidos) pode parecer paradoxal querer celebrar a pobreza. Uma tal empreitada parece paradoxal e quase que uma provocação mórbida. Não é possível fazer elogio algum da infelicidade e do infortúnio. Existe uma pobreza inglória que está à nossa volta e que se procura esconder a todo preço. Pessoas que vivem ruína e perda. Perda da dignidade elementar, ferida e que faz desaparecer a imagem do ser humano. Esses miseráveis vivem nas ruas e calçadas, sob as pontes e em espaços desocupados. Cada dia um sofrimento, cada noite uma dor. São forçados a mendigar o necessário para sua subsistência, procurar um abrigo para dormir, sempre de novo buscar sua sobrevivência alimentar, todo dia, a toda hora. Sujos, fétidos, homens e mulheres com uma ponta de cigarro no canto da boca, recolhida da rua e “devorada” até o fim, quase comendo papel e tabaco e queimando os lábios. Há os enlouquecidos que falam sozinho. Gesticulam no tétrico teatro da vida, tragédia da vida. Gente criada à imagem e semelhança de Deus.
Uma tal pobreza tem um nome: solidão. As pessoas falam, “se falam”, se reúnem, talvez chegam a rir umas com as outras, mas todo liame verdadeiramente denso e humano desapareceu. Não há sentido em se falar de laços afetivos, amicais e amorosos que fazem viver e permitem que se construa uma história. Estes não existem, apenas a solidão. Quem perdeu a percepção inconsciente de seu próprio corpo, de seu próprio “eu”, não é visto por ninguém e nem consegue se ver a si mesmo. Trata-se de um ser apagado, deletado, transparente, simplesmente nada. Claro que existe, mas disso os outros não se dão conta e nem ele próprio. Vive sempre acontecimentos agressivos.
Um homem e uma mulher que entra nesta alienação, nesta “desfiliação” é como uma estrela que desaparece do céu. Um ser vivo e irradiante torna-se um buraco negro. Tudo que lhe advém do exterior é absorvido como num poço sem fundo, até mesmo a luz de gestos de bondade. Em tais condições não se trata de pobreza, mas de perdição. A alma é como devorada pelo nada. Sobra apenas um corpo maltratado pela bebida, pela fome e à mercê da caridade. Em tempos passados, antes, esse miserável era alguém que tentava falar com sua boca, comunicar através de gestos; agora nem mesmo esta tentativa perdura. Esse estado é um inimigo a se combater e, de forma alguma, pode ser celebrado. Sim, não é esta a pobreza a ser celebrada.
Existe, no entanto, uma pobreza que participa de uma outra realidade, uma pobreza que eleva e dignifica o ser humano, precisamente a pobreza que Francisco de Assis soube viver e cantar, um santo do qual leigos e profanos podem se “apoderar”, um místico que não pertence apenas aos cristãos e à cristandade, mas a toda a humanidade. Na verdade pertence a toda a criação porque sua compaixão, seu desejo de comunhão estende-se a toda a natureza. Um homem de ação sempre deixando marcas de humildade em tudo o que faz.
Cito literalmente o autor: “Minha mitologia franciscana se constrói em torno de algumas imagens fortes. O episódio por meio do qual Francisco é iniciado na pobreza é o dom de seu manto ao pobre cavaleiro de Roma, que retoma um outro mito cristão: o generoso ato de São Martinho, diante da cidade de Amiens. O beijo no leproso, tão transgressivo, é outro grande momento da vida de Francisco. O último episódio é aquele do gesto violento pelo qual ele se despoja, a renúncia aos bens paternos, cena exemplar de seu ideal de pobreza. O último episódio não é, propriamente falando, um fato, mas a grande oração do Cântico das Criaturas , que acompanha os últimos anos de sua vida” (p. 214).
Foi bem aos poucos que Francisco foi dirigindo rumo a uma grande santidade O dom do manto é, ainda, um episódio hesitante. Xavier Emmanuelli vê em Francisco um intrépido guerreiro capaz de lançar mãos de armas para defender sua cidade. Tendo em mente o ideal de glória e de cavalaria, não encontra um pobre, mas um cavaleiro destruído e arrasado. Esse cavaleiro é um outro ele mesmo. Quando Francisco se desveste de seu manto é para ajudar um de seus pares, um dos iguais a ele para restituir-lhe a dignidade de cavaleiro. Nada tem a ver com o gesto sublime de São Martinho que expressa uma ruptura. Neste caso um privilegiado, um oficial dá a um pobre. No caso de Francisco há um cuidado de preservar a dignidade de um igual.
O episódio do beijo no leproso tem dimensão, chocante, perturbadora, inaudita. Francisco é jovem fino, foi educado no luxo, mimado, cercado disso e daquilo. A lepra é o horror, é a morte que devora a vida a partir do interior, a repugnante imundície que se apodera da carne. Será que se pode imaginar encontro mais violento, transgressão mais impensável? Que força irresistível se apoderou do jovem charmoso e distinto para um corpo em decomposição?
Mais uma vez uma citação literal: “Em nossos dias dispomos de tratamentos eficazes para combater a lepra. No tempo de Francisco, a enfermidade não tinha cura, revestia-se de aspectos terríveis e era, de fato, um flagelo. A doença consiste na alteração dos nervos sensitivos, as pessoas machucam-se, abrindo feridas que se tornam purulentas. Perde-se a sensibilidade. Sem contar as lesões próprias à lepra: a carne se decompõe, os músculos, os tecidos infectam-se constantemente e apodrecem. Quando a putrefação atinge o osso nasal, o nariz desaparece, transformando o semblante do leproso na face de um morto, com a fronte inchada e, no meio, dois enormes buracos, insuportáveis. Os lábios também são atingidos, bem como as extremidades das mãos e dos pés, deixando tocos de membros… Literalmente a morte mora num corpo vivo. No tempo de Francisco celebrava-se a missa de enterro de um leproso antes que morresse, o qual deveria redigir seu testamento, porque socialmente já havia morrido” (p. 216-217).
Como jogar-se nos braços de um cadáver vivo, mas já em decomposição? Que loucura de amor é essa de beijar uma boca cheia de pus? De onde veio para Francisco a força para realizar tal transgressão que separa o nobre do ignóbil, o puro do que infectado, o belo do monstruoso? O leproso que Francisco abraça encarna aqueles que se acham excluídos de qualquer tipo de representação. Seu corpo degradado não tem imagem, tornou-se invisível por não ter sido mais olhado, de ser constantemente evitado. Quanto menos são olhados, menos olham-se a si mesmos.
Para os médicos e o pessoal da saúde é sempre penoso cuidar de corpos dilacerados. Há doenças que causam como que nojo. Francisco, por meio de seu gesto, venceu a repulsa física que naturalmente se experimenta diante do que repugna, o pânico do sadio diante do insano. A imensa compaixão de Francisco é escandalosa e subversiva. A compaixão “faz sofrer com” o outro, o outro que não se escolhe, que está diante de nós, com suas taras, com seus aspectos extremamente desagradáveis. Esse outro é, de repente, escolhido como o próximo mais próximo, o irmão, operando uma reviravolta em todas as hierarquias mais sedimentadas dentro de cada um de nós. Francisco não manifesta uma piedade sentimental, mas é arauto de uma compaixão que implica a ilegitimidade do sofrimento padecido pelo outro, inventa uma fraternidade, na qual todo homem pelo fato de ser homem tem igual dignidade.
A renúncia aos bens paternos é um acontecimento mais violento ainda, pelo fato de se ter dado num espaço público.
“Francisco, não somente restitui ao pai o que tinha obtido vendendo as peças de tecidos tiradas da loja paterna em vista da restauração da Capela de São Damião. Vai bem mais longe: questiona a autoridade paterna como nunca tinha sido feito anteriormente. Devolve-lhe suas roupas, pagas com os recursos familiares, e mostra sua nudez na praça de Assis. Pietro di Bernadone fica fora de si. A nudez provocadora é imediatamente escondida pelo manto do bispo. O símbolo aponta para mais longe. Francisco renuncia à vida burguesa que lhe estava reservada devido a seu status de filho da família. O que percebe como humildade é tido pelos circunstantes como humilhação” (p. 219-220).
Agora Francisco podia rezar o Pai nosso. Seus irmãos e suas irmãs são os que fazem a vontade do Pai. A partir daquele momento Francisco se considerava nu como no dia de seu nascimento, e nu estaria no momento de sua morte. A escolha da pobreza radical é, com efeito, novo nascimento