O canto de uma vida
Os últimos momentos da vida de Clara de Assis
Irmã Catherine Savey, clarissa, publicou na revista Èvangile Aujourd’hui (n.194. 2002, p.6-11) um texto descrevendo os últimos momentos de Clara e tecendo considerações a respeito da cultura da morte da Idade Média. Querendo continuar nossa preparação para o oitavo centenário da forma de vida de Clara acreditamos ser proveitosa para todos a leitura deste texto. Substancialmente é o texto de Irmã Catherine, com algumas modificações e adaptações.
Para melhor captar o alcance da frase de Clara: “Obrigado, Senhor, por me teres criado”, necessário se faz colocá-la no seu contexto histórico. Ela é a conclusão das palavras de encorajamento que Clara dirige a si mesma antes de morrer. A morte na Idade Média tinha um alcance sociológico considerável, tanto por ser frequente, como também devido ao número de pessoas que cercam o moribundo e todo o quadro ritual que acompanha o final da vida. Os últimos dias de Clara e o relato que deles fazem as testemunhas estão impregnados desta cultura. As últimas palavras de Clara constituem o fecho desta liturgia num canto de louvor que resume e dá sentido a toda sua vida.
“Obrigado, Senhor, por me teres criado”. Muitos citam esta frase de Clara e, as mais das vezes, é a única palavra da Plantinha que conhecem. Um pouco como aquilo que acontece com a imagem de Francisco com os passarinhos. De acordo que tudo isso respire a alegria, o frescor, o louvor do Criador. Tudo pode ser correto, mas o contexto dá um peso diferente aos propósitos de Clara. Estamos praticamente com suas últimas palavras. Necessário situá-las em seu contexto.
Na verdade, a frase é conclusão da oração pronunciada por Clara no fim de sua vida. A passagem se situa em capítulos que relatam os últimos dias de Clara e comporta dez parágrafos do total dos vinte e nove de sua biografia, o que denota a importância desses últimos instantes para seu biógrafo Tomás de Celano. Uma tal constatação pode talvez nos causar surpresa. Os hagiógrafos da Idade Média, no entanto, tinham consciência de que a morte é mais do que o fim da vida. É, na verdade, sua conclusão, o instante que dá sentido a toda uma existência.
Para melhor compreender as páginas que cercam a frase “ Obrigado, Senhor, por me teres criado” e assim tentar compreender a plenitude de seu significado parece oportuno ver como se situava a morte na cultura da Idade Média.
A morte na Idade Média
Na Idade Média, a morte não causava surpresa. Ele acontecia com muita frequência ques que se tornava alguma coisa familiar. Mesmo se o século XIII tivesse sido uma época de prosperidade em que as epidemias perdiam a amplitude que ganhariam no século seguinte, podemos dizer que Clara e Francisco viveram um tempo em que a realidade da morte estava sempre presente. Muitas crianças morriam muito cedo, não poucas mulheres morriam no parto. As doenças também ceifavam adultos na plenitude de suas forças e homens sucumbiam em plena juventude nos campos das guerras. Além disso, a morte não era um acontecimento pessoal e escondido como acontece em nossos dias. Tinha um cunho eminentemente social. O moribundo era cercado de orantes (carpideiras), os funerais se revestiam de solenidade, o falecido era confiado à intercessão dos monges.
Nessa época em que a fé era inquestionável, o problema não consistia em saber se existia vida após a morte, mas se a pessoa que morria estava em condições de entrar no paraíso. A representações do juízo que adornavam os portais das catedrais construídas nesta época testemunham esta preocupação pela salvação eterna. A angústia que brota da morte corporal era potencializada com o medo do castigo eterno.
Tendo em mente o que dissemos, compreende-se a importância dos últimos instantes, ocasião em que o moribundo pode se reconciliar com a misericórdia divina. Aconselhava-se que, então, ele fizesse “donativos” para a celebração de missas e a recitação de orações pelos religiosos, que ele fizesse confissão geral de sua vida, recebesse o viático, “alimento para o caminho” até o paraíso e penhor de vida eterna, de ser acompanhado ao longo da agonia da oração ininterrupta da família e de pessoas que acorriam para prestar assistência ao que morria.
Se todas as condições mencionadas fossem cumpridas, poder-se-ia mesmo esperar que uma legião de santos e anjos viesse escoltar o defunto, ajudando-o em sua ascensão ao céu e assim atravessando ileso o ar enfestado de demônios.
Assim sendo feito, os funerais podiam se dar. Mesmo para os pobres os funerais eram solenes. Havia festa para celebrar na alegria o começo de uma nova vida.
O que acabamos de dizer parece distante da ação de graças de Clara. Em tal contexto, no entanto, é que devemos situar esse obrigado pela vida que sai dos lábios da santa.
Os últimos dias de Clara
A “Vita” de Celano e os testemunhos do Processo de canonização de Clara estão, com efeito, impregnados desta cultura.
Certamente, a morte era familiar a Clara e seus contemporâneos:
• As taxas de mortalidade não deveriam ser menores em São Damião do que em outros lugares. Clara assistiu algumas irmãs em seus últimos momentos. O Processo faz alusão a várias dentre elas.
• O Ofício dos Defuntos era recitado frequentemente em São Damião, talvez mesmo todos os dias como faziam os cistercienses, mas certamente durante vários dias após a morte de uma irmã. Ele lembrava que a presente vida nada mais do que uma etapa para a eternidade.
• As cartas de Clara dirigidas a Inês de Praga falam de seu desejo ardente de ir ter com o Senhor no Reino. Tal pensamento era mais do que uma simples manifestação de fervor. Era, de verdade, uma real probabilidade diante da prolongada doença de Clara. A morte poderia ser realidade a se concretizar num breve espaço de tempo. Por duas vezes (em 1224 e 1251), as irmãs temeram pelo pior.
No dia 5 de novembro de 1251, a corte pontifícia chegava a Óstia. Depois se dirigiria a Perusa. O cardeal Rainaldo, bispo de Óstia e cardeal protetor da Ordem, ficou sabendo do agravamento da enfermidade de Clara. Veio fazer-lhe uma visita, trazendo-lhe a comunhão. Clara pede que ele consiga do Papa a aprovação da Regra. No ano seguinte, o Papa e os cardeais passam de Perusa a Assis. Clara está cada vez mais fraca. “Juntou-se nova fraqueza a seus membros sagrados gastos pela velha doença…” (Legenda, 41). Inocêncio IV foi visitar a serva de Cristo e deu-lhe a absolvição plena e a graça de uma ampla bênção. Depois, a Plantinha recebeu a comunhão das mãos do ministro provincial.
A morte não deveria tardar. Clara não se alimenta mais e sofre. As irmãs fazem vigília noite e dia, sempre chorando. Clara pede a presença de padres e de santos frades para que lhe leiam a Paixão. Frei Rainaldo, sem dúvida seu confessor, e os primeiros companheiros de Francisco: Junípero, Leão, Angelo de Rieti acompanham os lamentos das irmãs e em suas preces. Cercada de tão ilustres personalidades, irmãos sacerdotes, foi a Frei Junípero, sabidamente homem de coração extremamente singelo, que Clara pergunta “se existe alguma coisa nova para aprender a respeito do Senhor”. Essa insaciável Clara! “Ele abriu a boca e deixou sair centelhas ardentes da fornalha do fervoroso coração. E a virgem de Deus ficou muito consolada com suas parábolas”.
Não restava a Clara outra coisa senão, uma vez mais, recomendar às suas irmãs o amor pela pobreza e lembrar-lhes os benefícios com os quais o Senhor as havia cumulado.
Clara parece preparada para a grande partida. Tem consciência de que em poucos minutos estará sozinha, face a face com seu Senhor. Há muito tempo ela desejava que esta hora chegasse. Como muitos que estão às portas da morte, como o próprio Jesus, parece que ela se vê tomada de angústia e ela mesmo se exortava à confiança. A virgem muito santa, voltando-se para si mesma, diz baixinho à sua alma: “Vá segura, que você tem uma boa escolta pelo caminho. Vá, diz, porque aquele que a criou também a santificou e guardando-a sempre como uma mãe guarda o filho, amou-a com terno amor. E bendito sejais, Vós que me criaste”
O canto de uma vida
Para ganhar confiança, Clara repassa interiormente todo o desenrolar de sua vida, dando-se sempre conta da presença constante e amorosa do Senhor ao seu lado:
Foi ele que a havia tecido no seio de sua mãe (Sl 138,13), e que antes de seu nascimento garantiu a Ortolana angustiada com a proximidade do parto com todos os seus eventuais perigos que tudo sairia bem. Esse Deus havia garantido a sua mãe que a criança que ela carregava em seu seio irradiaria a luz de Deus (Legenda 2).
• Foi o Senhor que a fizera nascer para vida divina no dia de seu batismo quando recebeu o nome de Clara, lembrando a graça recebida por sua mãe.
• Ele é que a ensinou a conhecer e a amar quando Ortolana falava dos relatos evangélicos, envolvidos nas lembranças de sua peregrinação à Terra Santa.
• Foi o Senhor que havia colocado bem cedo no seu coração o desejo de lhe pertencer de maneira total.
Redigindo seu Testamento, alguns meses antes, Clara já havia evocado o encadeado da história maravilhosa de sua via com Deus com o intuito de fazer sua ação de graças:
• Foi o Senhor que a chamara para esta vocação, da qual ela conhece a grandeza ( Test. 2 e 19-21).
• Foi ele, pelo Espirito Santo, que inspirara a Francisco quando o santo restaurava a igreja de São Damião, a predição de que ali viveriam religiosas que glorificariam a Deus ( Test. 11-14 e 31).
• Foi o mesmo Senhor que iluminou seu coração para que ela abraçasse essa forma de vida segundo o exemplo e as palavras de Francisco ( Test 24 e 26).
• Foi ele que a levou a São Damião ( Test 30).
• Foi ele que lhe deu irmãs e as multiplicou constituindo “este pequeno rebanho” na Igreja (25, 31 e 46).
• Esse mesmo Altíssimo sempre atendeu às necessidades das irmãs encaminhando-lhes esmolas (Test 64).
•Ele foi o seu consolador, seu apoio, através de Francisco que foi jardineiro e cuidador da pequena plantação (Test 38 e 48).
• Foi ele que, na pessoa de Francisco, foi o seu caminho e a ensinou as sendas da pobreza e da humildade ( Test 57 e 74).
• Ele, finalmente, resume Clara, que deu o começo, o crescimento e a perseverança ( Test 78).
Quando lemos assim o Testamento ficamos impressionados em constatar a que ponto o olhar de fé faz com que Clara descubra em tudo a presença amorosa de Deus que ela encontra nos pormenores da vida de todos os dias.
Poucos dias antes ela havia recebido do Senhor um último presente: a tão desejada aprovação de sua Regra pelo Papa Inocente. Durante toda a sua vida, Clara batalhara para conseguir o direito de seguir o Cristo na pobreza (toda a luta para conseguir o privilégio de não ter privilégios). Insatisfeita com as regras que sucessivos papas lhes atribuíam sem o privilégio da pobreza, ela própria redigiu sua forma de vida.
Irma Filipa diz no Processo: “Como desejava ardentemente que a regra da Ordem fosse bulada, mesmo que tivesse que colocar esta bula um dia e morrer no dia seguinte, assim lhe aconteceu que veio um frade com a carta bulada, que ela tomou reverentemente e, embora estivesse à morte, colocou ela mesmo aquela bula na boca para beijá-la.” (Proc 3,32). A bula pontifícia data de 9 de agosto, antevéspera da morte de Clara.
Na verdade, Clara podia partir com toda segurança porque aquele que a acompanhará para além das angústias da morte e a protegerá das últimas invectivas do demônio, seu guia para o caminho, foi Aquele que a criou, santificou, guardou, amou ao longo de sua existência com um terno amor, como uma mãe ama seu filho!
Num último suspiro, Clara resume o canto de sua vida: Obrigado, Senhor, por me teres criado”
Frei Almir Ribeiro Guimarães