Marcelo Barros
Mártir é um termo grego e significa testemunha. Nas religiões, é o título das pessoas que arriscam a vida e sofrem perseguições por causa da fé. No entanto, desde antigamente, se consideram mártires todas as pessoas que sofrem perseguições pela justiça e pela realização da paz eco-social que a tradição judaico-cristã considera “projeto divino para o mundo”. Conforme o evangelho, Jesus afirmou: “Bem-aventuradas as pessoas que sofrem perseguições por causa da justiça,(se creem em Deus ou não, se pertencem a uma Igreja ou não), porque delas é o reino dos céus” (Mt 5, 10).
Há poucos dias, completou-se um ano do martírio de três pessoas ligadas aos movimentos sociais. Na noite do 14 de março de 2018, no centro do Rio de Janeiro, foram metralhados a vereadora Marielle Franco e o seu motorista Anderson Gomes. Três dias antes, no Pará, tinham assassinado o militante social Pedro Sérgio Almeida, representante da Associação dos Caboclos e Quilombolas da Amazônia. Ele cobrava da prefeitura de Macarema a falta de licença ambiental da empresa Hydro que joga detritos nos rios do Pará. Um ano depois, outros irmãos e irmãs deram a vida pela mesma causa, além das centenas de pessoas que morreram, vítimas da Vale do Rio Doce em Brumadinho e de tantas outras que estão em situação de riscos. O Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) perdeu na sexta-feira (22) Dilma Ferreira Silva, coordenadora regional do movimento em Tucuruí (PA), assassinada no assentamento Salvador Allende, zona rural de Baião.
No Brasil atual, defender o projeto da Justiça e lutar pela Vida significa correr riscos e enfrentar a morte. No Brasil e em toda América Latina, há mais de 50 anos, milhares de pessoas, homens e mulheres, sofreram torturas e muitas foram assassinadas por estarem inseridas na caminhada de libertação de nossos povos. A cada ano, na vigília de 24 de março, em toda América Latina, recordamos o martírio do bispo Oscar Romero, que deu a vida para defender os pobres de El Salvador e foi assassinado por milícias da ditadura militar como alguém de esquerda. Em nossos dias, o papa Francisco proclamou Oscar Romero como santo oficial da Igreja. O papa também iniciou o processo de canonização do índio Sepé Tiaraju, cacique que deu a vida na luta pela liberdade do povo guarani. São sinais de que a Igreja volta a valorizar como mártires, não só os/as que foram mortos por inimigos da fé, mas todas as que deram a vida para realizar o projeto divino de um mundo mais justo e de paz.
Desde os tempos antigos, também merecem o nome de mártires as pessoas que sofreram perseguições e sobreviveram. Em 1986, no 6º Encontro nacional das comunidades eclesiais de base, em Trindade, GO, as comunidades afirmaram: “Nós queremos nossos mártires vivos e não mortos”. Assim, concluíram: nesses tempos de martírio, todas as pessoas que trabalham pela justiça e pela libertação do povo têm de tomar cuidado e se proteger, sem com isso desistir ou diminuir a intensidade da sua entrega.
Quem é cristão não pode deixar de ligar essas mortes violentas que acontecem cada dia ao martírio de Jesus. As Igrejas afirmam que, em cada eucaristia, atualizam a doação de Jesus em sua cruz. No entanto, quem está realmente vivendo a paixão e seguindo os passos de Jesus no seu testemunho de dar a vida pelos outros, parece não ser tanto religiosos/as ou pessoas que dizem fazer isso por causa da fé. Mesmo sem vinculação com a fé religiosa, eles e elas dão a vida pelas causas da justiça e da libertação. Quando as comunidades de base afirmam: “Nós queremos nossos mártires vivos”, estão gritando que precisamos de uma Igreja toda ela martirial, ou seja, testemunha da justiça e da libertação no mundo.
As Igrejas celebram a paixão de Jesus e muitos irmãos e irmãs, padres, pastores e religiosos/as vivem uma vida de muita doação e entrega às causas do povo mais empobrecido. Essa doação não é como um apêndice da sua fé e devoção a Deus. Ao contrário, é o núcleo fundamental de sua espiritualidade no seguimento de Jesus. Infelizmente, até hoje, muitos pastores e fieis ainda parecem não ligar o que dizem de Deus e a luta pela justiça que Jesus proclamou como bem-aventurança. Talvez por isso, muitas pessoas que vivem mais profundamente o testemunho da solidariedade e da entrega de suas vidas no compromisso pela justiça e pela libertação de todos prefiram nem falar de Deus. Vivem nas periferias urbanas, na luta das mulheres, na causa dos povos indígenas e na defesa das águas. E o mais estranho é que irmãos e irmãs ligados à Igreja, que, por causa da sua fé, consagram a sua vida às causas da justiça e da libertação de todos, nem sempre contam com o apoio e compreensão dos próprios pastores da Igreja.
Provavelmente, esse distanciamento da vida real das lutas do povo, por parte de muitos eclesiásticos, vem do fato de que a teologia oficial das Igrejas ainda compreende a cruz e a morte de Jesus como sacrifício religioso, oferecido a Deus para salvar as pessoas dos seus pecados. É uma fé que separa a morte de Jesus de tantas outras mortes violentas, ocorridas, a cada dia, pela justiça. O martírio de Marielle e de tantos mártires da justiça, nos desafia a compreender a cruz de Jesus como martírio e não como sacrifício. Aí sim, a fé na ressurreição de Jesus nos faz ver além da morte. A caminhada da Igreja de base e sua inserção nas lutas de libertação nos ensinam que o martírio não é apenas uma forma de morrer, mas, principalmente, uma forma de viver. Somos testemunhas de que esse mundo tem remédio e apesar de todas as forças do mal, seguiremos nessa caminhada.
Marcelo Barros é monge beneditino e escritor. Nascido em 1944, é pernambucano do grande Recife e assessora o MST, outros movimentos populares e comunidades eclesiais de base. Por formação é biblista, e desde jovem se consagra à espiritualidade ecumênica e ao diálogo entre as religiões. É membro da Associação Ecumênica de Teólogos/as do Terceiro Mundo (ASETT). Marcelo escreveu 37 livros.