Aquele que cuida, cativa e é cativado! Na história da humanidade, quando atentamos para as formas mais primitivas de preservação e manutenção da vida, percebemos que a importância do cuidar é um dos aspectos do senso comum que prevalece como regra determinante para o convívio e a manutenção da sociedade.
Desde crianças, e ao longo de toda a vida, aprendemos que é errado ferir alguém, ou permitir que sejamos machucados. Temos a consciência de que isso é ruim e que pode colocar em risco a nossa existência e a do outro.
Para o cristão amar é um mandamento fundamental que se expressa também na forma do cuidado. E são diferentes as formas de demonstrar o zelo e o compromisso com o outro, quando o objetivo é a preservação da integridade, especialmente dos mais frágeis e vulneráveis, como as crianças e adultos que apresentam incapacidades para se defender diante de situações desgastantes para o corpo e para a alma.
Olhar e ver, olhar e sentir, olhar e assumir, olhar e agir, olhar e cuidar. Muitas vezes olhamos para uma determinada situação e não queremos ou evitamos ver o que está diante de nós. Nessas situações corremos o risco de extrapolarmos nossos conceitos de ética e moral, nossas percepções do amar. Diante disso, a negligência pode ocupar o espaço do coração, onde está fixado o amor ao próximo, porque ver e enxergar também dói. Porém, quando negamos o amor, tomamos a mesma atitude de Pedro, quando negou Jesus Cristo (Lc 20, 55-62), e sentiu um profundo arrependimento.
O Papa Francisco, em uma postura ética e de amor ao próximo e cuidado com a criação, olhando e vendo as realidades da Igreja, publicou no dia 25 de março de 2023 a Carta Apostólica sob forma de Motu Proprio “Vos estis lux mundi”. O documento é uma versão atualizada da publicação de maior de 2019, que apresenta os procedimentos para prevenir e combater a triste questão dos abusos sexuais dentro da Igreja Católica.
De acordo com texto publicado pelo site Vatican News, na ocasião da apresentação pública da Carta Apostólica, um dos aspectos adicionados a nova versão dispõe sobre as responsabilidades dos bispos, superiores religiosos e clérigos encarregados da liderança de uma Igreja particular ou prelazia e institutos religiosos.
Muitas outras mudanças foram introduzidas para harmonizar o texto dos procedimentos contra abusos com reformas normativas introduzidas de 2019, em particular com a revisão do motu próprio “Sacramentorum sanctitatis tutela” (normas emendadas em 2021); com as mudanças no Livro VI do Código de Direito Canônico (reforma em 2021) e com a nova Constituição sobre a Cúria Romana, “Praedicate Evangelium” (promulgada em 2022).
De acordo com a publicação, estas incluem, por exemplo, a que diz respeito aos adultos “vulneráveis”. Enquanto anteriormente falava-se de “atos sexuais com um menor ou uma pessoa vulnerável”, a nova versão fala de “delito contra o VI mandamento do decálogo cometido com um menor ou com uma pessoa que habitualmente tem um uso imperfeito da razão ou com um adulto vulnerável”. Outra mudança diz respeito à proteção da pessoa que denuncia um suposto abuso: enquanto anteriormente se dizia que a pessoa que denuncia não pode ser obrigada ao silêncio, agora se acrescenta que esta proteção deve ser estendida não somente à pessoa que denuncia, mas também “à pessoa que alega ter sido ofendida e às testemunhas”. Também é reforçada a parte que exige “a legítima proteção do bom nome e da esfera privada de todas as pessoas envolvidas”, bem como a presunção de inocência para aqueles que estão sob investigação enquanto aguardam que sua responsabilidade seja averiguada.
A nova versão do “Vos estis lux mundi” também especifica que dioceses e paróquias devem criar “órgãos e escritórios” – o texto anterior se referia mais genericamente a “sistemas estáveis” – facilmente acessíveis ao público para receber denúncias de abusos. E também é especificado que a tarefa de proceder com a investigação é do Bispo do local onde teriam ocorrido os fatos denunciados.
Na versão de 2023, além dos bispos e superiores religiosos, os leigos à frente de associações internacionais, são obrigados, por um preceito legal universalmente estabelecido, a denunciar abusos dos quais tomaram conhecimento.
O documento continuou a incluir não apenas o assédio e a violência contra menores e adultos vulneráveis, mas também a violência sexual e o assédio resultante do abuso de autoridade. Esta obrigação também inclui, portanto, todo e qualquer caso de violência contra religiosas por parte de clérigos, bem como o caso de assédio a seminaristas ou noviços maiores de idade.
Espelho da vida e da realidade
“ A forte convicção de que os verdadeiros ensinamentos das religiões convidam a permanecer ancorados aos valores da paz; apoiar os valores do conhecimento mútuo, da fraternidade humana e da convivência comum; restabelecer a sabedoria, a justiça e a caridade e despertar o sentido da religiosidade entre os jovens, para defender as novas gerações do domínio do pensamento materialista, do perigo das políticas de avidez do lucro desmesurado e da indiferença baseadas na lei da força e não na força da lei.” (Papa Francisco, A fraternidade Humana, 2019)
Diante dessa realidade e da necessidade do olhar, do ver e do agir, a Ordem dos Frades Menores solicitou a cada Província e Custódia a estabelecer suas próprias políticas, baseadas nos documentos da Igreja e orientações da própria Cúria Geral. Também foi criado um Escritório para a Tutela dos Menores que, dentre outras atribuições, tem como objetivo analisar cada uma das políticas apresentadas.
No Capítulo Geral de 2021, em comunhão com as orientações da Igreja, a Ordem solicitou a cada uma de suas entidades redigir sua política de proteção e estabelecer sua norma de conduta através da qual quer manifestar sua respeitosa reverência à dignidade de cada pessoa humana, no esforço de tutelar os menores e os adultos vulneráveis do abuso nas várias formas.
Por sua vez, a Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil constituiu uma Comissão para elaboração da Política Provincial de Proteção, apresentado e aprovado no Capítulo Provincial 2024.
Após análise da Cúria geral, o documento foi promulgado no dia 6 de fevereiro de 2025 pelo Ministro provincial, Frei Paulo Roberto Pereira, durante a última reunião do Definitório Provincial, e já está em vigor.
No texto, a Província, em nome dos frades, firma a promessa de aceitar e proclamar a política e procedimentos estabelecidos para a tutela, e “viver a consagração agindo adequadamente em conformidade com os limites da cultura e sociedade onde quer que estivermos” (cf.RnB7).
O documento apresenta os regulamentos em todas as etapas formativas dos frades, passando inclusive pela Animação Vocacional, destacando a importância do cuidado, reforçando a sua fidelidade à missão de anunciar a Boa nova de Justiça, Amor, Paz e a reconciliação com todas as criaturas em todos os tempos e lugares.
O zelo para promover ambientes seguros contra abusos em todas as suas formas é apresentado como um compromisso e uma forma de manifestar o amor ao próximo, tão difundido e praticado por São Francisco de Assis.
O cuidado e o cuidar são aspectos e atitudes que determinam a qualidade de uma vida saudável em sociedade, em comunidade e em fraternidade. Olhar para o outro e enxergar que ele é a imagem e semelhança de Deus é um exercício diário que deve ser praticado por todos, independentemente da posição que ocupa, pois esse é o compromisso cristão que devemos ter.
O Seráfico Pai Francisco transformou sua vida porque não se conformava com as injustiças e os terrores do seu tempo. Tudo mudou quando ele, passou a ver na dor do outro, pobres e vulneráveis, a dor do Crucificado.
Como se estivesse diante de um espelho, a Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil, olhou e viu o quanto pode levar esperança para a sociedade, a partir do momento que partilha seu compromisso com o que há de mais sagrado aos olhos de Deus: a vida. Cuidar de todas as vidas que participam de nossa ação evangelizadora é um compromisso real e concreto desta entidade que completa 350 anos neste ano de 2025.
Adriana Rabelo