Frei Fidêncio Vanboemmel (*)
Introdução
O primeiro biógrafo de São Francisco, Frei Tomás de Celano, escreve na Primeira Vida: “Vendo o bem-aventurado Francisco que o Senhor Deus a cada dia aumentava o seu número, escreveu para si e para seus irmãos presentes e futuros, de maneira simples e com poucas palavras, uma forma e regra de vida, utilizando principalmente palavras do Santo Evangelho, a cuja perfeição unicamente aspirava” (1Cel 32).
Lida no contexto da origem da Ordem Franciscana, esta frase leva-nos a intuir que, para além da elaboração de uma regra canônica, Francisco constrói para si um projeto de vida fundamentado no Evangelho. E depois, com a chegada dos primeiros companheiros dados por Deus como irmãos, o Pobre de Assis elaborou em fraternidade um projeto de vida para dizer que a dádiva da vocação e missão de cada irmão, e, consequentemente da fraternidade, é autêntica quando iluminada pelo Evangelho. Para Francisco é o Evangelho que direciona a vida do frade menor no seguimento de Jesus Cristo. Portanto, todos os irmãos são vocacionados a viver em fraternidade e como fraternidade. Logo, a fraternidade é o dom supremo de Deus que determina a forma de vida, legitima a vocação e habilita a missão evangelizadora de cada irmão.
Nos nossos dias muito se fala sobre a necessidade de se elaborar um projeto pessoal de vida e de um projeto fraterno de vida e missão. Esses projetos, embora independentes e com metodologias específicas no respectivo processo de elaboração, não são duas coisas distintas. Para serem legítimos, os dois projetos são dependentes, se iluminam e se complementam mutuamente. A construção dos dois projetos só é possível de ser realizada mediante o diálogo: com Deus, consigo mesmo, com a fraternidade/comunidade, com a Igreja e com a realidade na qual os irmãos estão inseridos.
1. Um projeto dialogado
Em vários textos das Fontes Franciscanas, percebemos que a primitiva fraternidade minorítica, ao elaborar seu projeto de vida, mais tarde transformado em Regra, necessitou do diálogo para dar autenticidade à identidade inicial dos “penitentes de Assis” (LTC 37,6-7) ou, como escreve o Biógrafo na sequência, da “Ordem dos Frades Menores” (1Cel 38,3).
O diálogo foi fundamental no processo de configuração desta forma de vida. Francisco e a fraternidade dialogaram com Deus através do seu Evangelho (AP 10) e com a Igreja (1Cel 22 e 33). Como irmãos, dialogaram acerca da vida de oração (1Cel 45; 1Cel ), sobre o modo de trabalhar e pregar (evangelizar) (1Cel 29; 39), sobre o espírito de familiaridade e do mútuo cuidado (1Cel 38-39), sobre o modo como se relacionar com o mundo (1Cel 39-40), sobre o exercício da misericórdia na correção fraterna (Adm 22, 2-3), etc.
2. Projeto pessoal permanentemente revisado
Francisco de Assis, segundo as narrativas dos primeiros biógrafos, ao longo da sua vida, particularmente nas quaresmas que fazia, além de compenetrar-se em Deus na oração, também buscou rever o projeto originário da sua vocação e missão para purificá-la das obscuridades (“poeiras”) adquiridas na sua itinerância apostólica. Francisco dialoga com o Senhor através do Evangelho, dialoga com a fraternidade e com outras pessoas. S. Boaventura afirma que Francisco, qual “servo fiel e prudente”, desejava “conformar-se com o máximo ardor à vontade de Deus”, (cf. LM XIII 1, 4.6). E nas dúvidas, dialoga com a comunidade para melhor discernir a “vontade do Senhor” (cf. LM XII 2, 2-6). Frei Tomás de Celano afirma que o Santo de Assis tinha como “filosofia” a permanente busca de projetar sua vida de acordo com a vontade de Deus: “Enquanto viveu, perguntava aos simples, aos sábios, aos perfeitos e imperfeitos como poderia tomar o caminho da verdade e chegar ao propósito maior” (1Cel 91, 5-6).
3. O diálogo para construir um projeto fraterno de vida e missão
São Francisco de Assis, da mesma forma como reconheceu a sua vocação como obra da graça do Senhor (“Foi assim que o Senhor concedeu a mim, Frei Francisco, iniciar uma vida de penitência” – Test 1), também acolheu a Fraternidade como um dom do Senhor (“E depois que o Senhor me deu irmãos…” Test 14), ciente de que esta vida não nasceu pronta, acabada ou perfeita. Através do diálogo fraterno e construtivo, os primeiros irmãos consagraram um precioso tempo para aprimorar a vida de oração e contemplação, as exigências da vida fraterna e o amor partilhado na evangelização. Para Francisco a fraternidade é dinâmica e itinerante. Por isso está permanentemente em construção no contexto social e eclesial na qual está inserida.
A primitiva fraternidade, além de projetar a vida e a missão, também se reunia para avaliar, rever, corrigir e propor novos desafios. “Quando voltavam a se ver, enchiam-se de tão grande prazer e de alegria espiritual que não se recordavam de nada da adversidade e, mormente, da pobreza que padeciam” (AP 25). O mesmo “Anônimo Perusino”, afirma que, por ocasião de Pentecostes, “reuniam-se todos os irmãos para o Capítulo junto à igreja de Santa Maria da Porciúncula. Nesse Capítulo tratavam da maneira como melhor poderiam observar a regra… São Francisco fazia admoestações, repreensões e prescrições aos irmãos, conforme lhe parecia melhor, tendo antes consultado o Senhor” (AP 37).
Também os desafios pontuais e pessoais são remetidos à fraternidade. Francisco é muito lúcido quando fala dessa questão na famosa “Carta Magna” sobre a misericórdia, dirigida a um Ministro: “De todos os capítulos da Regra que falam sobre pecados mortais, no Capítulo de Pentecostes, com a ajuda de Deus e com o conselho dos irmãos, faremos um capítulo assim:…” (Mn 13). As palavras “com a ajuda de Deus e com o conselho dos irmãos” são muito sugestivas no contexto da Carta a um Ministro. Diante das reais dificuldades que se apresentam no cotidiano da vida fraterna, o religioso não pode autorizar-se a abraçar projetos individuais, nem mesmo sob o pretexto da vida contemplativa. Francisco combate a tentação da fuga dos compromissos assumidos pela fraternidade (projeto fraterno de vida e missão). Para Francisco, mesmo com desafios e provocações naturais de um grupo humano, o que plenifica o irmão é a vida construída em fraternidade e como fraternidade em missão, “com a ajudada de Deus e com o conselho dos irmãos”.
4. Diálogo urgente e necessário para recompor o Projeto Fraterno de Vida e Missão
A nossa Província, em 2009, procurou colocar em prática a 7ª decisão do Capítulo Geral de 2009: “Que os Ministros com o Definitório acompanhem cada fraternidade na elaboração do Projeto de Vida Fraterna à luz das linhas emanadas do Capítulo”. Esta tarefa foi abraçada pela Formação Permanente no Capítulo Provincial de 2009 e colocada em prática a partir da recomposição das fraternidades no início de 2010.
Não negamos que, inicialmente, ocorreram resistências ou a não-compreensão por parte de alguns irmãos e fraternidades acerca do “Projeto de Vida Fraterna”. Algumas poucas afirmações pontuais, muito semelhantes a esta, diziam: “Essa questão do projeto de vida fraterna não tem muito a ver com a nossa forma de vida”. Por isso algumas poucas fraternidades não conseguiram dialogar de forma fraterna para construir seu Projeto de Vida Fraterna. Mas o que importa é que depois do empenho da maioria dos irmãos, das cobranças e revisões periódicas, os resultados obtidos em muitas fraternidades foram gratificantes. Por isso a Formação Permanente, após os Capítulos de 2016 e 2018, além de aprimorar metodologicamente o subsídio do “projeto de vida fraterna”, também acolheu a compreensão mais abrangente que a Fraternidade Provincial foi adquirindo nesse processo. Por isso passou a ser chamado de “PROJETO FRATERNO DE VIDA E MISSÃO”.
Recentemente o Conselho Plenário da Ordem dos Frades Menores, realizado em Nairóbi, de 12 a 28 de junho de 2018, afirmou: “Reforça-se a importância da elaboração do Projeto Fraterno de Vida e Missão, de modo que todos os frades sejam envolvidos nas diversas atividades, num processo que leve em conta as várias dimensões da fraternidade, favorecendo as capacidades e os recursos de cada um e da comunidade como um todo. No projeto é preciso considerar com atenção a perspectiva da missão própria no contexto em que cada comunidade vive, de modo que os frades coloquem a vida fraterna como centro propulsor da atividade pastoral” (CPO/2018 nº 148).
Conclusão
Se Francisco de Assis sentiu a necessidade da permanente releitura e confronto pessoal com os valores do projeto originário (“a divina inspiração”), creio que o seu Testamento é o retrato fiel de uma fraternidade que, em torno de Francisco, não elabora “outra Regra” (Test 34), mas recorda os elementos essenciais que devem animar a vida fraterna e sua respectiva missão evangelizadora. Francisco, ao vislumbrar a proximidade da “Irmã Morte”, recorda, revê e encoraja esta fraternidade constituída por irmãos a não perderem de vista aquilo que prometeram ao Senhor observar, e sem glosas (cf. Test 39).
Nesse sentido, a elaboração de um “projeto pessoal e fraterno” tem muito a ver com a nossa formação permanente que “é uma caminhada de toda a vida, tanto pessoal como comunitária” (CCGG Art 135). Se cada irmão é o primeiro responsável pela sua permanente formação, também compete à Fraternidade e aos Ministros e Custódios zelarem pelo crescimento integral do Frade Menor (cf. CCGG Art. 136 e 137).
O desafio final é este: como eu, em consonância com o Plano de Evangelização (Projeto Provincial) e o Projeto Fraterno de Vida e Missão da minha Fraternidade, devo construir o meu projeto pessoal? Certamente algumas questões são imprescindíveis, como organizar e planejar meu tempo para: o cuidado pela vida espiritual e a fidelidade no seguimento de Jesus Cristo, o preenchimento de eventuais lacunas formativas, a minha atualização para exercer a missão com qualidade, os ajustes de que necessito para harmonizar em mim a formação humana e afetiva.
No final do seu Testamento, ele considera o coletivo da comunidade e cada irmã em particular, afirmando: “O Senhor que deu o bom começo, dê o crescimento e também a perseverança até o fim” (TestC 78). Construir, dialogar e elaborar um projeto pessoal e fraterno de vida e missão é empenho vital para não perdermos de vista o ponto de partida da nossa vocação e missão.
Frei Fidêncio Vanboemmel, ex-Ministro Provincial por 9 anos da Província da Imaculada, é o moderador da Formação Permanente e mestre em espiritualidade franciscana.