Vida Cristã - Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil - OFM

O Espírito chega antes do missionário na Panamazônia

28/10/2019

                                                                                                                          Imagem ilustrativa (fonte: Vatican News)

Leonardo Boff

O Sínodo Panamazônico, celebrado-se em outubro em Roma, suscitou grande discussão, especialmente, entre católicos ligados a certas tradições e doutrinas, envolvendo até cardeais e bispos europeus acerca da evangelização das culturas dos povos originários. Neste ponto houve uma real mudança de orientação, fruto da abertura teológica do Concílio Vaticano II (1962-1965) e do diálogo interreligioso e intercultural, provocado pelo processo de mundialização. Este propiciou o encontro de culturas e de religiões que antes mal se conheciam. Desenvolveu-se rico diálogo e a exigência de ver a presença do Espírito naquelas culturas e religiões.

A questão tornou-se aguda quando se tratou da evangelização dos povos amazônicos que habitam em 9 países de nosso Continente. Evangelizar suas culturas ou evangelizar nas suas culturas, perguntava-se. A evangelização tradicional buscava evangelizar suas culturas, convertendo-as ao cristianismo, vazado na cultura ocidental. O índio, ao fazer-se cristão, praticamente deixava de ser índio e vinha incorporar-se à cultura dominante ocidental. Sempre foi assim por séculos. O cristianismo foi imposto pela cruz e pela espada, ocasionando, não raro, por causa de sua resistência, grandes matanças de indígenas.

Como esquecer aquela voz dolorida do profeta maia Chilam Balam de Chumayel: “Ai! Entristeçamo-nos porque os espanhóis chegaram… vieram fazer nossas flores murchar para que somente a sua flor vivesse… vieram castrar o sol”. E sua lamúria continua: “Entre nós se introduziu a tristeza, se introduziu o cristianismo… Esse foi o princípio de nossa miséria, o princípio de nossa escravidão”.

A Igreja tem dificuldade em admitir que o projeto de colonização e o projeto missionário era, na verdade, um único projeto. Ela fez-se, destarte, cúmplice do extermínio de milhares de indígenas com a oposição de um Bartolomeu de las Casas, Sahagún, o Pe. Vieira e outros.

Precisou vir o Papa Francisco, do grande Sul do mundo, para, na abertura do Sínodo Panamazônico, reconhecer: “Quantas vezes o dom de Deus não foi oferecido mas imposto. Quantas vezes houve uma colonização em vez de evangelização”. Mais enfático foi em Puerto Maldonado no Peru, quando disse: “Peço humildemente perdão não só pelas ofensas da própria Igreja, mas também pelos crimes contra os povos originários cometidos durante a conquista da América”.

Agora se propõe evangelizar nas culturas. A Igreja não escolhe a cultura na qual quer encarnar-se. Toda cultura é apta a assumir a mensagem evangélica e a expressá-la com os recursos linguísticos e simbólicos de que dispõe. Portanto, trata-se de evangelizar na e a partir da cultura própria dos indígenas. Isso parece uma obviedade. Mas não o é, em muitos círculos, até os dias de hoje. Reina ainda certo exclusivismo cristão e católico, na convicção de que a única forma de Igreja de Cristo é esta que existe atualmente, com o Papa, toda a hierarquia eclesiástica e a multidão de fiéis. Esta seria a única válida e legítima.

Esquecem que Jesus não era um romano ou grego. Era um hebreu médio-oriental, mais próximo da cultura daqueles povos do que daquele grego-latino. O atual cristianismo, concretamente, é fruto de um grande sincretismo, tomado positivamente, com elementos judaicos, gregos, romanos, germânicos e modernos. Ele não constitui uma religião revelada, mas um produto da fé de convertidos que com os instrumentos de suas respectivas culturas deram corpo às Igrejas históricas, máxime, à Igreja católica romana com suas teologias, liturgias e símbolos.

O que foi direito dos cristãos europeus vale também para os povos originários panamazônicos. Diz com razão o texto preparatório: “Uma Igreja com rosto amazônico deixa para trás uma tradição colonial, monocultural, clerical e impositiva, e sabe discernir e assumir sem medo as diversas expressões culturais dos povos”. Aqui há a chance de uma eclesiogênese, vale dizer, da gênese de um outro tipo de Igreja católica, não romana, mas em comunhão com ela.

A evangelização convencional incorre num reducionismo: só prega o Cristo encarnado, limitado ao espaço palestinense. Mas o Cristo real é o ressuscitado que enche o universo, o mundo, as pessoas e as Igrejas como ensina a teologia de São Paulo e de São João. Esta visão cristocêntrica esqueceu o Deus-comunhão de divinas Pessoas, a Santíssima Trindade, fundamento da comunhão entre os seres humanos e as culturas. Esqueceu o Espírito Santo que esteve presente no ato da criação, que fez gerar Jesus no seio de Maria e em seguida, continua e atualiza sempre sua mensagem. Este Espírito está sempre presente na criação, nas culturas e no coração das pessoas. Lá onde reina o amor, vigora a solidariedade, triunfa o perdão, se atualiza a misericórdia e o coração se abre, na veneração e na unção, a Deus, lá estava e está o Espírito. Ele sempre vem antes do missionário na Panamazônia. Este acolhe o dom do Espírito no povo, o abraça e enriquece com a boa nova de vida eterna de Jesus.

Belamente diz o texto preparatório: “Temos que captar o que o Espírito do Senhor tem ensinado a estes povos ao longo dos séculos: a fé em Deus Pai-Mãe Criador, o sentido de comunhão e harmonia com a terra, o sentido de solidariedade com seus companheiros, o projeto do bem viver… Necessitamos que os povos originários moldem culturalmente as Igrejas amazônicas locais”.

Seguramente num contexto da velha cristandade europeia seria impossível dar esse passo avante. Mas estamos no novo mundo, onde somos maioria de católicos e temos condições de gestar um rosto novo da Igreja de Cristo.


Leonardo Boff é teólogo e filósofo e escreveu: Eclesiogênese: a reinvenção da Igreja a partir das bases, Record, Rio 2010.

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