Pe. Ademir Guedes Azevedo, cp
Theodore Francis Powys foi um escritor e romancista britânico. Em um dos seus contos diz que Cristo resolve visitar o Sr. John Pie. Querendo garantir todas as bênçãos para a sua família e a abundância na sua mesa, o Sr. John decide guardar Cristo em um armário para buscá-lo sempre que houvesse alguma necessidade. No entanto, ele nunca prestou atenção ao que Jesus ensinou nos evangelhos: dar de comer aos famintos, visitar os doentes, ser bom samaritano para com os caídos pelas estradas da vida. Além disso, o Sr. John não sentia compaixão com a pobre velhinha mendiga que agonizava à sua porta. Contudo, as coisas andavam muito bem, porque a consciência de ter Cristo no armário, como um Deus privado, garantia o bem-estar de tudo. Mas um dia, o Sr. John caiu e uma das suas costelas lhe perfurou o pulmão. Correu imediatamente ao armário para que Cristo o curasse exatamente naquele momento de extrema necessidade. Abrindo o armário, deparou-se com um diabo em meio a chamas e lhe disse: “A tua maldade com os pobres e esquecidos transformou o teu cristo preso no armário em um diabo. Ele não está mais aqui”. E o Sr. Johan Pie morreu desesperado.
Este conto nos faz recordar da ideia de Deus como um tapa-buraco. Recorremos a Ele só nos momentos difíceis da nossa vida. Foi Dietrich Bonhoeffer quem criticou duramente essa visão equivocada. Diante das grandes guerras que ceifaram inúmeras vidas, a experiência de fé descobriu que, mais do que intervir na história de modo poderoso (pelo menos da maneira como estamos acostumados a interpretar este conceito), na verdade Deus sofre com os miseráveis, assume também a dor humana e é só assim que Ele se revela. Não como poderoso, mas como solidário com as vítimas (Não esquecemos que a sua fraqueza, a kenosis, é a sua força). Bonhoeffer insistia num cristianismo com uma fé adulta, ou seja, capaz de reencontrar Deus sobretudo quando as circunstâncias dão a entender que Ele está ausente.
Além desta provocação, o conto de Powys provoca outra reflexão: em que coisa estamos transformando Deus hoje? O que andamos dizendo por aí sobre Ele, por acaso corresponde a sua imagem bíblica de Abbá (paizinho de todos) ou será que o manipulamos para alcançar objetivos que não têm nada a ver com a sua atuação histórica? É perigoso engaiolar Deus em nossos conceitos para sustentar as falsas visões sobre o mundo, a política e o próximo. Quando nos achamos no direito de privatizar Deus a partir de slogans de campanhas eleitorais e de visões ultraconservadoras caímos numa sequência de ações irresponsáveis e as relações se transformam naquela experiência do “salve-se quem puder”, ou seja: optamos por combater mais do que acolher; dividir mais do que unir e congregar; mentir mais do que ser honesto com a verdade, etc. Em outras palavras: corremos o risco de ser como o Sr. Pie da estorinha: transformar Deus num diabo mediante a nossa péssima visão da história e do ser humano.
É possível, contudo, libertar-nos dessa armadilha e da enganosa propaganda religiosa que se elabora na penumbra da corte de alguns governantes de grandes países, difundida sem discernimento e responsabilidade por seus falsos profetas, sobretudo aqueles das redes sociais que acrescentam uma pitada de cizânia fundamentalista.
A primeira coisa a considerar sempre é: este ciclo de violência pode ser interrompido quando cessamos de dirigir ataques do mesmo nível. A privatização religiosa que presenciamos é o resultado da pregação dos messias virtuais que correm do debate porque sabem que a vela que acendem é para um deus que não dialoga, mas que se impõe. Querem que todos as explicações religiosas dedutivas e descontextualizadas sejam aceitas, como se até aqui não valesse a pena, por exemplo, o esforço das várias comunidades que trilharam uma rica e profunda caminhada de fé, através do estudo eclesial e libertador da Sagrada Escritura.
A descoberta libertadora que Jesus nos revela, diante daqueles que o abandonaram e o traíram é: Deus crê em nós, antes de qualquer profissão de fé da nossa parte. E a prova de tal constatação reside na renovação da aliança que Jesus fez mediante a sua revolução redentora. São as suas aparições pós-pascais que confirmam isso. Em todas elas, o Ressuscitado faz um segundo chamado aos seus seguidores. O primeiro chamado era para deixar as redes, a família e assumir a sua sequela. O segundo, ao invés, acontece de novo na Galileia, lugar onde o ressuscitado pede para ir os discípulos, a fim de encontrar-se com eles. Lá, onde tudo começou, é revelado um novo elemento da sequela que marcará para sempre a vida dos discípulos e que é a coluna do cristianismo: trata-se do “ide e anunciai”, ou seja, Jesus pede que sejam missionários, seus colaboradores no mundo.
Por isso, a melhor forma de libertar a religião da privatização é saber se a missão (abertura e acolhida ao próximo) faz parte da práxis de vida dos novos messias. Mais uma vez, nos recordemos da estoria do Sr. Johan: ele vivia só para si mesmo e acreditava que Deus era um tipo de escravo sempre disponível para satisfazer as necessidades. É exatamente esta privatização da fé que o mandato missionário desmascara.
Merece destaque o apelo de Papa Francisco quando o mesmo fala dos perigos de uma fé desencarnada da história. O risco que o cristianismo corre é o de anunciar “um Deus sem Cristo, um Cristo sem Igreja e uma Igreja sem povo” (GE 37). Realmente, quando nos esquecemos que somos um povo missionário e privatizamos a fé, colocando-a dentro dos armários de nossas fantasias, estamos dividindo os irmãos, ou seja, transformamos Deus em um diabinho. E isso não queremos para nossa experiência de discípulos.
Pe. Ademir Guedes Azevedo é missionário passionista e mestrando em teologia fundamental na Pontifícia Universidade Gregoriana.