Frei Alberto Beckhäuser
Lex orandi lex credendi. A frase completa: Lex orandi statuat legem credendi. Traduzindo: A norma da oração estabeleça a norma da fé. A Igreja crê o que ela reza. Por outro lado, a Igreja celebra ou reza o que ela crê. O Catecismo da Igreja define a Sagrada Liturgia como sendo a “celebração da fé cristã” ou “a celebração do Mistério Pascal”.
Nossa intenção é mostrar brevemente a relação existente entre fé e Liturgia segundo o célebre adágio acima citado. Antes que houvesse tratados de Teologia Sistemática, os cristãos criam e aprofundavam a fé, celebrando-a. A Liturgia constitui a theologia prima. Hoje, ela é reconhecida por todos como um locus theologicus.
As primeiras profissões de fé surgiram no contexto do culto cristão. Mesmo o núcleo central dos Evangelhos, a narração da paixão, morte, sepultura, ressurreição e glorificação do Senhor surgiu em ambiente cultual. É possível mesmo que fosse narrada no contexto da celebração da Eucaristia, resumido nas palavras da tradição transmitidas por Paulo: “Trago-vos à memória, irmãos, o evangelho que vos tenho anunciado, que recebestes e no qual estais firmes. Por ele sereis salvos, se o conservardes como eu vo-lo anunciei. De outra forma, em vão tereis abraçado a fé. Eu vos transmiti, em primeiro lugar, o que eu mesmo recebi: que Cristo morreu por nossos pecados, segundo as Escrituras, que foi sepultado; que ressuscitou ao terceiro dia, segundo as escrituras; que apareceu a Cefas e depois aos Doze. Posteriormente, apareceu a mais de quinhentos irmãos de uma vez… Depois apareceu a Tiago, depois a todos os apóstolos. E por último apareceu também a mim como a um filho abortivo” (1Cor 15,1-8).
A Liturgia é lugar privilegiado para o exercício da virtude teologal da fé. Na fé é acolhida a palavra de Deus. A fé é iluminada e expressa em cada celebração. Na fé é evocada a presença e a ação do Deus Trino e Uno na história da salvação e na vida de cada fiel. Fé em Deus, fé em Jesus Cristo, na obra da salvação, na presença de Deus na vida da Igreja. Fé nas promessas de Deus, na ressurreição da carne e na vida eterna. Pelas celebrações dos mistérios de Cristo, manifesta-se sempre de novo a verdade sobre Deus, sobre Jesus Cristo, a Igreja, o ser humano e o universo criado. A Liturgia contém e revela a plenitude da fé cristã, tanto assim que ela é considerada a norma da fé.
Na Liturgia encontramos tudo quanto se aborda e se aprofunda nos tratados de Teologia Sistemática: o tratado sobre a Santíssima Trindade, a Cristologia, a Pneumatologia, a Soteriologia, a Antropologia, a Eclesiologia, a Marialogia, a Escatologia, a Sacramentologia, a Hagiografia.
Percorramos algumas expressões da profissão e da vivência da fé na Sagrada Liturgia.
Na experiência pascal do tempo da vida temos os sacramentos:
O Batismo: – Pelo batismo a Igreja celebra a fé na salvação em Cristo Jesus e, celebrando-a, quem crê em Cristo é justificado pelo rito da água e da Palavra, na força do Espírito Santo. Como diz o Concílio: “Pelo Batismo os homens são inseridos no mistério pascal de Cristo: com ele mortos, com ele sepultados, com ele ressuscitados, recebem o espírito de adoção de filhos, ‘pelo qual clamamos: Abba, Pai’, e assim se tornam os verdadeiros adoradores procurados pelo Pai” (SC 6). Além da profissão de fé explícita, todas as expressões dos rito do Batismo são realizadas como expressão da fé. Trata-se de uma profissão de fé na Santíssima Trindade, em Cristo Jesus, na salvação em Cristo e na Igreja.
A Crisma: – Ao Batismo pleno pertence o sacramento da Crisma, onde se professa a fé na presença e na ação do Espírito Santo na Igreja. Cremos que como em Pentecostes a efusão do Espírito continua acontecendo na história da Igreja. Na força do Espírito podemos viver nossa vocação e missão batismais.
A Eucaristia: – Em cada celebração eucarística o sacerdote exclama: Mysterium fidei! – Mistério da fé! Antes da reforma decretada pelo Concílio Vaticano II, esta exclamação se situava no interior das palavras da consagração do Cálice. Estamos diante do mistério da fé compreendido em dois sentidos. A Eucaristia talvez seja a profissão de fé mais radical do ser humano, pois a presença real de Cristo na Eucaristia certamente nos exige mais do que crer no próprio mistério da Encarnação. Assim, a Eucaristia é mistério da fé porque jamais a compreenderemos plenamente. Mas, a Eucaristia é mistério da fé também porque abrange todo o depósito da fé. Na Eucaristia a fé é tão fundamental que é condição para o seguimento de Cristo: “‘Também vós quereis ir embora?’ Simão Pedro respondeu: ‘Senhor, para quem iríamos? Tu tens palavras de vida eterna. Nós acreditamos e sabemos que tu és o Santo de Deus’” (Jo 6,66-69).
A celebração já tem início com um ato de fé na Santíssima Trindade, tanto no sinal da cruz como na saudação trinitária. Praticamente todos os textos têm uma dimensão trinitária. Basta pensarmos no Glória, na Oração coleta e, sobretudo, na Oração Eucarística. Comungar é crer no Senhor Jesus como Deus e Salvador. Não cabe aqui a análise de todos os elementos do rito da Missa. Importante é viver a fé celebrando-a nos diversos mistérios.
O sacramento da Penitência: – Ao nos aproximarmos da reconciliação estamos confessando nossa fé no Deus de bondade e de misericórdia, Jesus Cristo Deus, que tem poder de perdoar pecados. Sim, cremos na remissão dos pecados.
O sacramento dos Enfermos: – Somente na fé podemos celebrar o Cristo que veio confortar, curar e perdoar os pecados dos enfermos. Cremos que o Espírito age pela imposição das mãos e a unção com o óleo.
O sacramento da Ordem: – Neste sacramento a Igreja professa a fé no Cristo Senhor, Messias e Sacerdote, o único mediador da salvação. Os fiéis cristãos professam sua fé na Igreja como Povo de Deus sacerdotal, real e profético, como esposa do Cordeiro e como Corpo místico de Cristo.
O sacramento do Matrimônio: – Somente na fé os cristãos podem compreender e viver o ideal do sacramento do Matrimônio como grande mistério no dizer de Paulo: “Grande é este mistério. Quero referir-me a Cristo e sua Igreja”. Trata-se de crer que o ser humano é criado à imagem e semelhança de Deus, como homem, como mulher e como casal, para ser no seu amor mútuo um reflexo do Deus Amor e Criador e expressão do Amor de aliança fiel de Jesus Cristo à humanidade.
Esta expressão da fé também se encontra nos demais mistérios do culto ou sacramentais:
A Liturgia das Horas: – Na Liturgia das Horas a Igreja tem cinco encontros com a Palavra de Deus durante o dia, celebrando o mistério da Páscoa, centrado na Paixão, Morte e Ressurreição do Senhor.
O Ano Litúrgico: – Durante o Ano Litúrgico a Igreja celebra a fé acompanhando os mistérios de Cristo desde a Encarnação até a parusia. O Concílio, na Sacrosanctum Concilium, nos ensina: “A Santa Mãe Igreja julga seu dever celebrar em certos dias no decurso do ano, com piedosa recordação, a obra salvífica de seu divino Esposo. Em cada semana, no dia que ela chamou Domingo, comemora a Ressurreição do Senhor, celebrando-a uma vez também, na solenidade máxima da Páscoa, juntamente com sua sagrada Paixão. No decorrer do ano, revela todo o Mistério de Cristo, desde a Encarnação e Natividade até a Ascensão, o dia de Pentecostes e a expectação da feliz esperança e vinda do Senhor. Relembrando destarte os Mistérios da Redenção, franqueia aos fiéis as riquezas do poder santificador e dos méritos de seu Senhor, de tal sorte que, de alguma forma, os torna presentes em todo o tempo, para que os fiéis entrem em contacto com eles e sejam repletos da graça da salvação” (SC 102). Todo o Ano Litúrgico, como celebração dos mistérios, possui um caráter sacramental. As comemorações constituem sinais eficazes da graça.
A outras celebrações queremos apenas aludir: Pensamos nas Celebrações da Palavra de Deus. Nas Celebrações de Bênçãos com a leitura da Palavra de Deus. Estas celebrações nos levam a ver todas as coisas e a vivê-las à luz da fé. Nas Exéquias professamos a fé na vida eterna. Na Dedicação de igreja contemplamos o mistério da Igreja. Na Profissão religiosa professamos a fé na vida consagrada, na vocação à santidade e aos esponsais divinos.
Podemos dizer que a Igreja é convidada a professar e a viver a fé no ritmo do tempo da vida pelos sacramentos; no ritmo do tempo solar, vivendo os mistérios de Cristo no Ano Litúrgico. Depois, no ritmo do tempo lunar, professando a fé no Cristo ressuscitado na Páscoa semanal, o Domingo: Dia do Senhor, Dia de Cristo, Dia da Igreja, Dia do Homem, Dia dos Dias, no dizer de João Paulo II, na carta apostólica Dies Domini. A Igreja professa e vive a fé no ritmo do tempo do dia, particularmente, pela Liturgia das Horas, e no tempo circunstancial ou ocasional, através das Celebrações de bênçãos e das Missas para diversas circunstâncias. A Eucaristia está acima do tempo e celebra sempre toda a fé e todo o tempo; por isso pode ser celebrada em todas as experiências pascais do tempo.
Somente na fé é que a Igreja pode celebrar a Sagrada Liturgia. Por sua vez, ela une fé e vida. A Igreja é chamada a viver o que celebra, fazendo com que toda a vida seja vivida na fé, conforme as palavras de São Paulo: “Portanto, irmãos, eu vos exorto, pela misericórdia de Deus, a que ofereçais os vossos corpos como sacrifício vivo, santo, agradável a Deus. Este é o vosso culto espiritual. Não vos ajusteis aos modelos deste mundo, mas transformai-vos, renovando vossa mentalidade, para que possais conhecer qual é a vontade de Deus: o que é bom, agradável e perfeito” (Rm 12,1-2).
Sendo chamados à conversão e à penitência, somos convidados a viver a nossa fé no ritmo do tempo da vida, do ano, da semana e do dia, a luz da Palavra de Deus sempre presente na celebração da fé. Modelo desta vivência da conversão permanente temos na Oração do Senhor, o Pai nosso. Esta oração leva os discípulos de Cristo a viverem sua vocação e missão de filhos em relação a Deus, de senhores em relação à natureza criada e de irmãos em relação ao próximo.