Pe. Ademir Guedes Azevedo, cp
É necessário explicar uma diferença fundamental. Secularização não é secularismo. Este último conceito se trata de uma série de fatores que conduzem o sujeito ao niilismo, ou seja, ao nada. É a ausência de sentido e de valores. A história do Ocidente está fundamentada em ideias da filosofia grega e, ao mesmo tempo, plasmada a partir de valores cristãos. Tudo isso foi sempre evidente até a Idade Média. Contudo, a época moderna, ao fundar uma ética autônoma – que foi uma conquista necessária -, pôs o homem no centro de tudo. O que é perigoso em tudo isso, contudo, é o uso excessivo da razão e o esquecimento das outras dimensões da existência, como os sentimentos, ou aquilo que Leonardo Boff chamará de razão cordial. O homem moderno, à medida que se apoiava apenas na razão, distanciava-se da religião, visto que a considerava obscura e manipuladora. Segundo Lyotard, o golpe final do racionalismo, ou das metanarrativas como verdade absoluta, foram as duas grandes guerras mundiais. Romano Guardini, ao comentar os riscos da modernidade, dirá que este excesso de racionalismo (para ele expresso na ideia de progresso moderno) e ilusória autonomia, plasmou um homem com sede de poder destruidor. Pois bem, secularismo é o caminho que leva ao nada, ao não ser, ao absurdo, a ausência de valores.
E a secularização, de que se trata? É um fenômeno necessário que, uma vez estudado em relação com o cristianismo, nos ajuda a entrar numa experiência de fé mais parecida com o estilo de Jesus. A secularização seria a hermenêutica positiva da modernidade, pois sabe equilibrar a razão com o sentimento, respeita a autonomia das realidades temporais e as integra para o bem comum da humanidade. Uma das mais belas conquistas da modernidade é o respeito aos direitos humanos. Além disso, a forma laical que o Estado assume deve ser vista também como respeito às escolhas do sujeito. Enquanto na Idade Média toda a existência era marcada pela religião, o sujeito não podia escolher outro caminho diferente deste. Todos os ciclos da vida estavam permeados pela religião. Contudo, o filósofo canadense, Charles Taylor, afirma que na modernidade a religião, graças a secularização, é uma opção entre tantas outras formas de vida. Se isso é verdade, a secularização tem a ver com o processo de maturidade humana, da capacidade livre e responsável que o sujeito vai desenvolvendo ao longo da vida. Quando entra em cena a intolerância e coerção religiosa, então desaparece a secularização e nasce o secularismo. Como já disse, são duas coisas opostas.
O que tem a ver Jesus com tudo isso? Aquilo que a secularização realizou em todas as esferas da vida (política, religião, ética) associa-se também ao modo pelo qual Jesus exerceu seu ministério. A partir do agir de Jesus, vê-se o emergir da secularização. A grande revolução que liberta Deus de uma transcendência sideral e o põe em contato direto com a história e com tudo aquilo que implica o temporal foi a encarnação de Jesus. Este evento liberta a imagem de Deus da gaiola metafísica que o impedia de tocar, ver, abraçar, chorar, compadecer-se diante de todos os dramas demasiadamente humanos. Estar na história como um de nós e falar de Deus a partir de uma cultura específica, por meio de uma língua, viver numa época e assumir tudo aquilo que implica ser homem são todos elementos que fazem de Jesus um homem secularizado.
Mas só isso não basta. Jesus não foi um sacerdote como aqueles do templo de Jerusalém. Ele era um leigo, não descendia da tribo de Levi. Pelo contrário, em sua genealogia aparecem os pecadores, prostitutas, gente de má fama. Jesus é o homem secularizado porque inaugura um sacerdócio expresso na qualidade das relações interpessoais, por isso fala de reconciliação, de misericórdia, insiste na necessidade de ir ao encontro do próximo e perdoá-lo quantas vezes for necessário. Ensina uma maneira nova de relacionar-se com Deus. Ele não está preso dentro de um Templo, onde só uma casta tem acesso. Realiza a secularização de Deus à medida que faz a passagem do privado ao público, ou seja, em vez de irmos a Jerusalém adorar ao único Deus, Jesus insiste que é Deus quem procura o homem, quer encontrar-se com ele, custe o que custar.
Se a modernidade secularizada deu ênfase ao valor sagrado da subjetividade humana, Jesus também dirá que o sábado foi feito para o homem e não o homem para o sábado. O excesso de normas religiosas que discriminavam a muitos será superado com o modo de Jesus anunciar Deus. Ele não parte de códigos religiosos abstratos, pelo contrário, toca na carne ferida das pessoas. Oferece um Deus que cura os leprosos, a fim de que estes possam se libertar da falsa religião que separa os puros dos impuros. Para secularizar mais ainda a mensagem de Deus, Jesus inicia uma tradição diferente daquela dos sumos sacerdotes: ele caminha sobre a esteira dos profetas. Vai ainda mais longe: nasce com os pobres e morre fora dos muros religiosos. Ele se transforma em cidadão do mundo, não aceita ser patrimônio de uma casta. Eis porque o cristianismo será universal.
O filósofo italiano Gianni Vattimo afirma que o limite da secularização é o amor. Ele olha pra Jesus e reconhece nele o ápice da secularização com o evento da encarnação. Mas se é o amor universal que seculariza tudo, pois Deus entra na história e na vida concreta para revelar-se, então a sua morte na cruz é outra evidência de que Jesus é um homem secularizado, pois foi naquele madeiro que Ele chegou ao máximo de seu amor. Rasga-se o véu do templo, ou seja, anuncia-se o fim da privatização de Deus, ele não é apenas dos judeus, é o homem que morre com os olhos abertos, pois ama a todos. Ele entra na esfera pública.
Quando insistimos neste modo de interpretar a Jesus, antes de tudo queremos dizer que hoje, para dialogarmos com o mundo, precisamos retornar aos Evangelhos. Aqui encontramos um Deus bem diferente das muitas tradições que foram desenvolvidas ao longo da história. O fenômeno da secularização ajuda a nos purificarmos dos excelsos de armaduras religiosas que impedem de vermos o essencial. Mas essa libertação só será possível quando descobrirmos a Jesus como o homem secularizado.
Pe. Ademir Guedes Azevedo, cp, é missionário passionista e mestre em Teologia Fundamental na Pontifícia Universidade Gregoriana. Atualmente colabora com a missão passionista de Montevidéu, no Uruguai.