Padre Antonio Spadaro, SJ
É segunda-feira, 19 de agosto. O Papa Francisco marcou encontro para as 10 horas na Casa de Santa Marta. Eu, no entanto, herdei do meu pai a necessidade de chegar sempre mais cedo. As pessoas que me acolhem instalam-me numa pequena sala. A espera dura pouco, e, depois de uns breves minutos, acompanham-me ao elevador. Nesses dois minutos tive tempo de recordar como em Lisboa, numa reunião de diretores de algumas revistas da Companhia de Jesus, surgiu a proposta de publicar conjuntamente uma entrevista com o Papa. Tinha conversado com os outros diretores, ensaiando algumas perguntas que exprimissem os interesses de todos. Saio do elevador e vejo o Papa já na porta, à minha espera. Na verdade, tive a agradável impressão de não ter atravessado portas.
Entro no seu quarto e o Papa convida-me a sentar numa poltrona. Ele senta-se numa cadeira mais alta e rígida, por causa dos seus problemas de coluna. O ambiente é simples, austero. O espaço de trabalho da escrivaninha é pequeno. Toca-me a essencialidade não apenas dos móveis, mas também das coisas. Veem-se poucos livros, poucos papéis, poucos objetos. Entre estes, um ícone de São Francisco, uma estátua de Nossa Senhora de Luján (padroeira da Argentina), um crucifixo e uma estátua de São José adormecido, muito semelhante àquela que tinha visto no seu quarto de reitor e superior provincial no Colégio Máximo de San Miguel. A espiritualidade de Bergoglio não é feita de «energias harmonizadas», como ele lhe chamaria, mas de rostos humanos: Cristo, São Francisco, São José, Maria.
O Papa acolhe-me com o mesmo sorriso que já deu várias vezes a volta ao mundo e que abre os corações. Começamos a falar de tantas coisas, mas sobretudo da sua viagem ao Brasil. O Papa considera-a uma verdadeira graça. Pergunto-lhe se descansou. Ele diz-me que sim, que está bem, mas, sobretudo, que a Jornada Mundial da Juventude foi para ele um «mistério». Diz-me que nunca foi habituado a falar para tanta gente: «Consigo olhar para as pessoas, uma de cada vez, e entrar em contato de modo pessoal com quem tenho na minha frente. Não estou habituado às massas». Digo-lhe que é verdade e que se vê, e que isto impressiona toda a gente. Vê-se que quando está no meio das pessoas, os seus olhos, de fato, pousam sobre cada um. Depois as câmaras televisivas difundem as imagens e todos podem vê-lo, mas assim ele pode sentir-se livre para ficar em contato direto, pelo menos visual, com quem tem diante de si. Parece-me contente com isso, por poder ser aquilo que é, por não ter de alterar o seu modo habitual de comunicar com as pessoas, mesmo quando tem diante de si milhões de pessoas, como aconteceu na praia de Copacabana.
Antes de eu ligar o gravador, falamos de outras coisas. Comentando uma minha publicação, disse-me que os seus dois pensadores franceses contemporâneos prediletos são Henri de Lubac e Michel de Certeau. Digo-lhe ainda algumas coisas mais pessoais. Também ele me fala de si e particularmente da sua eleição pontifícia. Diz-me que quando começou a dar-se conta de que corria o risco de ser eleito, na quarta-feira, dia 13 de Março, à hora do almoço, sentiu descer sobre ele uma profunda e inexplicável paz e consolação interior, juntamente com uma escuridão total e uma obscuridade profunda sobre tudo o mais. E estes sentimentos acompanharam-no até a eleição.
Na verdade, teria continuado a falar assim familiarmente ainda por muito tempo, mas pego nas folhas com algumas perguntas que tinha anotado e ligo o gravador. Antes de mais, agradeço-lhe em nome de todos os diretores das revistas dos jesuítas que publicarão esta entrevista.
Pouco antes da audiência que concedeu aos jesuítas da Civiltà Cattolica1, o Papa tinha-me falado da sua grande dificuldade em dar entrevistas. Tinha-me dito que prefere pensar, mais do que dar respostas imediatas em entrevistas de momento. Sente que as respostas corretas lhe vêm depois de ter dado a primeira resposta: «Não me reconheci a mim mesmo quando no voo de regresso do Rio de Janeiro respondi aos jornalistas que me faziam perguntas», diz-me. Na verdade, nesta entrevista, várias vezes o Papa sentiu-se livre para interromper aquilo que estava respondendo, para acrescentar algo sobre a precedente. Falar com o Papa Francisco é, realmente, uma espécie de fluxo vulcânico de ideias que se atam entre si. Mesmo ao tomar apontamentos traz a desagradável sensação de interromper um diálogo nascente. É claro que o Papa Francisco está mais habituado a conversas, do que a lições.
Quem é Jorge Mario Bergoglio?
Tenho a pergunta pronta, mas decido não seguir o esquema que fixara e pergunto um pouco à queima-roupa: «Quem é Jorge Mario Bergoglio?» O Papa fixa-me em silêncio. Pergunto se é uma pergunta lícita para lhe colocar… Ele faz sinal de aceitar a pergunta e diz-me: «Não sei qual possa ser a definição mais correta… Eu sou um pecador. Esta é a melhor definição. E não é um modo de dizer, um gênero literário. Sou um pecador».
O Papa continua a refletir, como se não esperasse aquela pergunta, como se fosse obrigado a uma reflexão ulterior.
«Sim, posso talvez dizer que sou um pouco astuto, sei mover-me, mas é verdade que sou também um pouco ingênuo. Sim, mas a síntese melhor, aquela que me vem mais de dentro e que sinto mais verdadeira, é exatamente esta: “Sou um pecador para quem o Senhor olhou”». E repete: «Sou alguém que é olhado pelo Senhor. A minha divisa, Miserando atque eligendo, senti-a sempre como muito verdadeira para mim».
A divisa do Papa Francisco é tirada das Homilias de São Beda, o Venerável, o qual, comentando o episódio evangélico da vocação de São Mateus, escreve: «Viu Jesus um publicano e assim como o olhou com um sentimento de amor, escolheu-o e disse-lhe: “Segue-me”».
E acrescenta: «O gerúndio latino miserando parece-me intraduzível, seja em italiano, seja em espanhol. Gosto de o traduzir com um outro gerúndio que não existe: misericordiando».
O Papa Francisco continua a sua reflexão e diz-me, fazendo um salto cujo sentido não compreendo, naquele momento: «Eu não conheço Roma. Conheço poucas coisas. Entre estas, Santa Maria Maior: ia sempre lá». Rio e digo-lhe: «Todos o compreendemos muito bem, Santo Padre!». «Sim — prossegue o Papa – conheço Santa Maria Maior, São Pedro… mas vindo a Roma sempre vivi na Via della Scrofa. Dali visitava frequentemente a igreja de São Luís dos Franceses e ali ia contemplar o quadro da vocação de São Mateus, de Caravaggio». Começo a intuir o que é que o Papa quer dizer-me.
«Aquele dedo de Jesus assim… dirigido a Mateus. Assim sou eu. Assim me sinto. Como Mateus». E aqui o Papa torna-se mais decidido, como se tivesse encontrado a imagem de si próprio de que estava à procura: «É o gesto de Mateus que me toca: agarra-se ao seu dinheiro, como que a dizer: “Não, não eu! Não, este dinheiro é meu!”. Este sou eu: um pecador para o qual o Senhor voltou o seu olhar. E isto é aquilo que disse quando me perguntaram se aceitava a minha eleição para Pontífice. Então sussurra: Peccator sum, sed super misericordia et infinita patientia Domini nostri Jesu Christi, confusus et in spiritu penitentiae, accepto». (Sou pecador, mas confiado na misericórdia e paciência infinita de Nosso Senhor Jesus Cristo, confundido e em espírito de penitência, aceito).
Por que se fez jesuíta?
Compreendo que esta fórmula de aceitação é para o Papa Francisco mesmo um bilhete de identidade. Não há nada mais a acrescentar. Prossigo com aquela que tinha escolhido como primeira pergunta: «Santo Padre, o que foi que o fez escolher entrar na Companhia de Jesus? O que é que o impressionou na Ordem dos Jesuítas?»
«Eu queria algo mais. Mas não sabia o quê. Tinha entrado no seminário. Gostava dos dominicanos e tinha amigos dominicanos. Mas depois escolhi a Companhia, que conhecia bem, porque o seminário estava entregue aos jesuítas. Da Companhia impressionaram-me três coisas: o espírito missionário, a comunidade e a disciplina. Isto é curioso, porque eu sou um indisciplinado nato, nato, nato. Mas a sua disciplina, o modo de organizar o tempo, impressionaram-me muito».
«E depois uma coisa para mim verdadeiramente fundamental é a comunidade. Procurava sempre uma comunidade. Eu não me via padre sozinho: preciso de uma comunidade. É mesmo isso que explica o fato de eu estar aqui em Santa Marta: quando fui eleito, ocupava, por sorteio, o quarto 207. Este onde estamos agora era um quarto de hóspedes. Escolhi ficar aqui, no quarto 201, porque quando tomei posse do apartamento pontifício, dentro de mim senti claramente um “não”. O apartamento pontifício no Palácio Apostólico não é luxuoso. É antigo, arranjado com bom gosto e grande, não luxuoso. Mas acaba por ser como um funil ao contrário. É grande e espaçoso, mas a entrada é verdadeiramente estreita. Entra-se a conta-gotas e eu não, sem gente, não posso viver. Preciso de viver a minha vida junto dos outros».
Enquanto o Papa fala de missão e de comunidade, vêm-me à mente todos os documentos da Companhia de Jesus onde se fala de «comunidade para a missão» e reencontro-os nas suas palavras.
O que significa para um jesuíta ser Papa?
Quero prosseguir nesta linha e coloco ao Papa uma pergunta que surge do fato de que ele é o primeiro jesuíta a ser eleito bispo de Roma: «Como lê, à luz da espiritualidade inaciana, o serviço à Igreja Universal a que foi chamado a exercer? O que significa para um jesuíta ser eleito Papa? Que ponto da espiritualidade inaciana o ajuda melhor a viver o seu ministério?»
«O discernimento», responde o Papa Francisco. «O discernimento é uma das coisas que Santo Inácio mais trabalhou interiormente. Para ele, é um instrumento de luta para conhecer melhor o Senhor e segui-l’O mais de perto. Impressionou-me sempre uma máxima com que se descreve a visão de Inácio: Non coerceri a maximo, sed contineri a minimo divinum est. (não estar constrangido pelo máximo, e no entanto, estar inteiramente contido no mínimo, isso é divino). Refleti muito sobre esta frase a propósito do governo, de ser superior: não estarmos restringidos pelo espaço maior, mas sermos capazes de estar no espaço mais restrito. Esta virtude do grande e do pequeno é a magnanimidade, que da posição em que estamos nos faz olhar sempre o horizonte. É fazer as coisas pequenas de cada dia com o coração grande e aberto a Deus e aos outros. É valorizar as coisas pequenas no interior de grandes horizontes, os do Reino de Deus».
«Esta máxima oferece os parâmetros para assumir uma posição correta para o discernimento, para escutar as coisas de Deus a partir do seu “ponto de vista”. Para Santo Inácio, os grandes princípios devem ser encarnados nas circunstâncias de lugar, de tempo e de pessoas. A seu modo, João XXIII colocou-se nesta posição de governo quando repetiu a máxima Omnia videre, multa dissimulare, pauca corrigere, (ver tudo, não dar importância a muito, corrigir pouco) porque mesmo vendoomnia, a dimensão máxima, preferia agir sobre pauca, sobre uma dimensão mínima. Podem ter-se grandes projetos e realizá-los, agindo sobre poucas pequenas coisas. Ou podem usar-se meios fracos que se revelam mais eficazes do que os fortes, como diz São Paulo na Primeira Carta aos Coríntios».
«Este discernimento requer tempo. Muitos, por exemplo, pensam que as mudanças e as reformas podem acontecer em pouco tempo. Eu creio que será sempre necessário tempo para lançar as bases de uma mudança verdadeira e eficaz. E este é o tempo do discernimento. E, por vezes, o discernimento, por seu lado, estimula a fazer depressa aquilo que inicialmente se pensava fazer depois. E foi isto o que também me aconteceu nestes meses. E o discernimento realiza-se sempre na presença do Senhor, vendo os sinais, escutando as coisas que acontecem, o sentir das pessoas, especialmente dos pobres. As minhas escolhas, mesmo aquelas ligadas à vida quotidiana, como usar um automóvel modesto, estão ligadas a um discernimento espiritual que responde a uma exigência que nasce das coisas, das pessoas, da leitura dos sinais dos tempos. O discernimento no Senhor guia-me no meu modo de governar».
«Pelo contrário, desconfio das decisões tomadas de modo repentino. Desconfio sempre da primeira decisão, isto é, da primeira coisa que me vem à cabeça fazer, se tenho de tomar uma decisão. Em geral, é a decisão errada. Tenho de esperar, avaliar interiormente, tomando o tempo necessário. A sabedoria do discernimento resgata a necessária ambiguidade da vida e faz encontrar os meios mais oportunos, que nem sempre se identificam com aquilo que parece grande ou forte».
A Companhia de Jesus
O discernimento é, portanto, um pilar da espiritualidade do Papa. Nisto se exprime de modo peculiar a sua identidade jesuítica. Pergunto-lhe, pois, como pensa que a Companhia de Jesus poderá servir melhor a Igreja hoje, qual é a sua especificidade, mas também os eventuais riscos que corre.
«A Companhia é uma instituição em tensão, sempre radicalmente em tensão. O jesuíta é um descentrado de si próprio. A Companhia é descentrada de si mesma: o seu centro é Cristo e a sua Igreja. Por isso: se a Companhia coloca Cristo e a Igreja no centro, tem dois pontos fundamentais de referência do seu equilíbrio para viver na periferia. Se, pelo contrário, olha demasiado para si própria, se se coloca a si mesma no centro como estrutura bem sólida, muito bem “armada”, então corre o perigo de sentir-se segura e autossuficiente. A Companhia deve ter sempre diante de si o Deus semper maior, a procura da glória de Deus sempre maior, a Igreja Verdadeira Esposa de Cristo Nosso Senhor, Cristo Rei que nos conquista e a Quem oferecemos toda a nossa pessoa e toda o nosso esforço, mesmo se somos vasos de barro, inadequados. Esta tensão leva-nos constantemente para fora de nós próprios. O instrumento que torna verdadeiramente forte a Companhia descentrada de si mesma é o da “conta de consciência”, que é simultaneamente paternal e fraternal, precisamente porque a ajuda a sair melhor em missão».
Aqui, o Papa refere-se a um ponto específico das Constituições da Companhia de Jesus, no qual se lê que o jesuíta deve «manifestar a sua consciência», isto é, a situação interior que vive, de modo que o superior possa estar mais ao corrente e consciente ao enviar uma pessoa à sua missão.
«Mas é difícil falar da Companhia» – prossegue o Papa Francisco. «Quando se explicita demasiado, corremos o risco de nos enganarmos. A Companhia só se pode exprimir em forma narrativa. Somente na narração se pode fazer discernimento, não na explicação filosófica ou teológica, onde, pelo contrário, se pode discutir. O estilo da Companhia não é o da discussão, mas o do discernimento, que obviamente pressupõe a discussão no processo. A aura mística não define nunca os seus limites, não completa o pensamento. O jesuíta deve ser uma pessoa de pensamento incompleto, de pensamento aberto. Houve épocas na Companhia nas quais se viveu um pensamento fechado, rígido, mais instrutivo-ascético do que místico: esta deformação gerou o Epitome Instituti».
Aqui, o Papa refere-se a uma espécie de resumo prático, que se usou na Companhia e reformulado no século XX, que foi considerado como uma substituição das Constituições. A formação dos jesuítas na Companhia durante um certo tempo foi modelada por este texto, de tal maneira que alguns nunca leram as Constituições, que, na verdade, são o texto fundante. Para o Papa, durante este período na Companhia as regras correram o risco de abafar o espírito e foi a tentação de explicitar e afirmar demasiado o carisma que venceu.
Continua: «Não, o jesuíta pensa sempre, continuamente, olhando o horizonte para onde deve ir, tendo Cristo no centro. Esta é a sua verdadeira força. E isto estimula a Companhia a estar à procura, a ser criativa, generosa. Portanto, hoje mais do que nunca, deve ser contemplativa na ação; deve viver uma proximidade profunda a toda a Igreja, entendida como “Povo de Deus” e “Santa Madre Igreja hierárquica”. Isto requer muita humildade, sacrifício, coragem, especialmente quando se vivem incompreensões ou se é objeto de equívocos e calúnias, mas é a atitude mais fecunda. Pensemos nas tensões do passado sobre os ritos chineses, sobre os ritos malabares, nas reduções no Paraguai».
«Eu mesmo sou testemunha das incompreensões e problemas que a Companhia viveu mesmo recentemente. Entre estes, contam-se os tempos difíceis de quando se tratou da questão de alargar o “quarto voto” de obediência ao Papa a todos os jesuítas. Aquilo que me dava segurança no tempo do Padre Arrupe era o fato de que ele era um homem de oração, um homem que passava muito tempo em oração. Recordo-o quando rezava sentado no chão, como fazem os japoneses. Por isso, ele tinha a atitude certa e tomou as decisões corretas».
O modelo: Pedro Fabro, «padre reformado»
Neste momento pergunto-me se entre os jesuítas existem figuras, das origens da Companhia até hoje, que o tenham impressionado de modo particular. E assim pergunto ao Pontífice se existem, quais são e porquê. O Papa começa a citar-me Inácio e Francisco Xavier, mas depois detém-se sobre uma figura que os jesuítas conhecem, mas que certamente não é muito notada em geral: o Beato Pedro Fabro (1506-1646), da Sabóia. É um dos primeiros companheiros de Santo Inácio, aliás o primeiro, com o qual partilhou o quarto quando eram os dois estudantes na Sorbonne. O terceiro no mesmo quarto era Francisco Xavier. Pio IX declarou-o beato a 5 de Setembro de 1872, e está em curso o seu processo de canonização.
Cita-me o seu Memorial, cuja edição ele encarregou a dois jesuítas especialistas, Miguel A. Fiorito e Jaime H. Amadeo, quando era superior provincial. O Papa gosta particularmente da edição a cargo de Michel de Certeau. Pergunto-lhe porque ficou tão impressionado por Fabro, que traços da sua figura o impressionam.
«O diálogo com todos, mesmo os mais afastados e os adversários; a piedade simples, talvez uma certa ingenuidade, a disponibilidade imediata, o seu atento discernimento interior, o fato de ser um homem de grandes e fortes decisões e ao mesmo tempo capaz de ser assim doce, doce…».
Enquanto o Papa Francisco faz esta lista de características pessoais do seu jesuíta preferido, compreendo quanto esta figura terá sido na verdade para ele um modelo de vida. Michel de Certeau define Fabro simplesmente como «o padre reformado», para quem a experiência interior, a expressão dogmática e a reforma estrutural são intimamente indissociáveis. Parece-me compreender, portanto, que o Papa Francisco se inspira precisamente neste gênero de reforma. Assim, o Papa continua com uma reflexão sobre o verdadeiro rosto do fundador.
«Inácio é um místico, não um asceta. Aborrece-me muito ouvir dizer que os Exercícios Espirituais são inacianos apenas porque são feitos em silêncio. Na verdade, os Exercícios podem ser perfeitamente inacianos também na vida corrente e sem o silêncio. A corrente que sublinha o ascetismo, o silêncio e a penitência é uma corrente deformada que se difundiu na própria Companhia, especialmente no âmbito espanhol. Pelo contrário, eu estou próximo da corrente mística, a de Louis Lallemant e de Jean-Joseph Surin. E Fabro era um místico».
A experiência de governo
Que tipo de experiência de governo pode fazer amadurecer a formação que teve o padre Bergoglio, que foi superior e depois provincial na Companhia de Jesus? O estilo de governo da Companhia implica a decisão por parte do superior, mas também o atender ao parecer dos seus «consultores». Assim, pergunto ao Papa: «Acha que a sua passada experiência de governo pode servir à sua atual ação no governo da Igreja Universal?» O Papa Francisco, depois de uma breve pausa de reflexão, torna-se sério, mas muito sereno.
«Na minha experiência de superior na Companhia, para dizer a verdade, nem sempre me comportei assim, ou seja, fazendo as necessárias consultas. E isso não foi uma boa coisa. O meu governo como jesuíta no início tinha muitos defeitos. Estávamos num tempo difícil para a Companhia: tinha desaparecido uma inteira geração de jesuítas. Por isto, vi-me nomeado Provincial ainda muito jovem. Tinha 36 anos: uma loucura. Era preciso enfrentar situações difíceis e eu tomava as decisões de modo brusco e individualista. Sim, devo acrescentar, no entanto, uma coisa: quando entrego uma coisa a uma pessoa, confio totalmente nessa pessoa. Terá que cometer um erro verdadeiramente grande para que eu a repreenda. Mas, apesar disto, as pessoas acabam por se cansar do autoritarismo. O meu modo autoritário e rápido de tomar decisões levou-me a ter sérios problemas e a ser acusado de ser ultraconservador. Vivi um tempo de grande crise interior quando estava em Córdova. Claro, não, não sou certamente como a Beata Imelda, mas nunca fui de direita. Foi o meu modo autoritário de tomar decisões que criou problemas».
«Digo estas coisas como uma experiência de vida e para ajudar a compreender quais são os perigos. Com o tempo aprendi muitas coisas. O Senhor permitiu esta pedagogia de governo, mesmo através dos meus defeitos e dos meus pecados. Assim, como arcebispo de Buenos Aires, fazia cada quinze dias uma reunião com os seis bispos auxiliares e várias vezes por ano com o Conselho Presbiteral. Colocavam-se perguntas e abria-se espaço para a discussão. Isto ajudou-me muito a tomar as melhores decisões. E agora ouço algumas pessoas que me dizem: “Não consulte demasiado e decida”. Acredito, no entanto, que a consulta é muito importante. Os Consistórios e os Sínodos são, por exemplo, lugares importantes para tornar verdadeira e ativa esta consulta. É necessário torná-los, no entanto, menos rígidos na forma. Quero consultas reais, não formais. A consulta dos oito cardeais, este grupo outsider, não é uma decisão simplesmente minha, mas é fruto da vontade dos cardeais, tal como foi expressa nas Congregações Gerais antes do Conclave. E quero que seja uma consulta real, não formal».
«Sentir com a Igreja»
Mantenho-me no tema da Igreja e procuro compreender o que significa exatamente para o Papa Francisco o «sentir com a Igreja», de que escreve Santo Inácio nos seus Exercícios Espirituais. O Papa responde sem hesitação, partindo de uma imagem.
«A imagem da Igreja de que gosto é a do povo santo e fiel de Deus. É a definição que uso mais vezes e é a da Lumen Gentium, no número 12. A pertença a um povo tem um forte valor teológico: Deus na história da salvação salvou um povo. Não existe plena identidade sem pertença a um povo. Ninguém se salva sozinho, como indivíduo isolado, mas Deus atrai-nos considerando a complexa trama de relações interpessoais que se realizam na comunidade humana. Deus entra nesta dinâmica do povo».
«O povo é sujeito. E a Igreja é o povo de Deus a caminho na história, com alegrias e dores. Sentire cum Ecclesia é para mim, pois, estar neste povo. E o conjunto dos fiéis é infalível no crer, e manifesta esta sua infallibilitas in credendo mediante o sentido sobrenatural da fé de todo o povo que caminha. É isto o que eu entendo hoje como o “sentir com a Igreja” de que fala Santo Inácio. Quando o diálogo entre as pessoas e o bispo e o Papa segue este caminho e é leal, então é assistido pelo Espírito Santo. Não é, portanto, um sentir ligado aos teólogos».
«É como com Maria: se se quiser saber quem é, pergunta-se aos teólogos; se se quiser saber como amá-la, é necessário perguntá-lo ao povo. Por sua vez, Maria amou Jesus com coração de povo, como lemos no Magnificat. Não é preciso sequer pensar que a compreensão do sentir com a Igreja esteja ligada somente ao sentir com a sua parte hierárquica».
E o Papa, depois de um momento de pausa, para evitar mal-entendidos, secamente precisa: «E, obviamente, é necessário estar bem atentos a não pensar que esta infallibilitas de todos os fiéis de que estou falando à luz do Concílio seja uma forma de populismo. Não: é a experiência da “Santa Madre Igreja hierárquica”, como lhe chamava Santo Inácio, da Igreja como povo de Deus, pastores e povo em conjunto. A Igreja é a totalidade do povo de Deus».
«Vejo a santidade no povo de Deus, a sua santidade quotidiana. Existe uma “classe média da santidade” da qual todos podemos fazer parte, aquela de que fala Malègue».
O Papa se refe a Joseph Malègue, um escritor francês que lhe é querido, nascido em 1876 e falecido em 1940. Em particular, à sua trilogia incompleta Pierres noires. Les Classes moyennes du Salut. Alguns críticos franceses definiram-no como o «Proust católico».
«Vejo a santidade — continua o Papa — no povo de Deus paciente: uma mulher que cria os filhos, um homem que trabalha para levar o pão para casa, os doentes, os sacerdotes idosos com tantas feridas mas com um sorriso por terem servido o Senhor, as Irmãs que trabalham tanto e que vivem uma santidade escondida. Esta é, para mim, a santidade comum. Associo frequentemente a santidade à paciência: não só a santidade como hypomoné, o encarregar-se dos acontecimentos e circunstâncias da vida, mas também como constância no seguir em frente dia após dia. Esta é a santidade da Igreja militante de que fala também Santo Inácio. Esta é também a santidade dos meus pais: do meu pai, da minha mãe, da minha avó Rosa, que me fez tanto bem. No breviário tenho o testamento da minha avó Rosa e leio-o frequentemente: para mim é como uma oração. Ela é uma santa que sofreu tanto, também moralmente, e seguiu sempre em frente com coragem».
«Esta Igreja com a qual devemos “sentir” é a casa de todos, não uma pequena capela que só pode conter um grupinho de pessoas selecionadas. Não devemos reduzir o seio da Igreja universal a um ninho protetor da nossa mediocridade. E a Igreja é Mãe — continua. A Igreja é fecunda, deve sê-lo. Veja: quando me apercebo de comportamentos negativos de ministros da Igreja ou de consagrados ou consagradas, a primeira coisa que me vem à cabeça é: «Aqui está um solteirão» ou «Aqui está uma solteirona». Não são nem pais, nem mães. Não são capazes de gerar vida. Pelo contrário, quando leio, por exemplo, a vida dos missionários salesianos que foram para a Patagônia, leio uma história de vida, de fecundidade».
«Um outro exemplo destes dias: vi que foi muito referido nos jornais o telefonema que fiz a um rapaz que me tinha escrito uma carta. Telefonei-lhe, porque aquela carta era tão bela, tão simples. Para mim isto foi um ato de fecundidade. Apercebi-me que é um jovem que cresce, sentiu em mim um pai, e assim eu disse-lhe alguma coisa sobre a sua vida. Um pai não pode dizer: “Não tenho nada que ver com isso”. Esta fecundidade faz-me muito bem».
Igrejas jovens e Igrejas antigas
Permaneço no tema da Igreja, colocando ao Papa uma pergunta, também à luz da recente Jornada Mundial da Juventude: «Este grande evento acendeu ulteriormente os focos sobre os jovens, mas também sobre aqueles ‘pulmões espirituais’ que são as Igrejas de instituição mais recente. Quais as esperanças para a Igreja universal que lhe parecem provir destas Igrejas?»
«As Igrejas jovens desenvolvem uma síntese de fé, cultura e vida em devir, e, portanto, diferente da desenvolvida pelas Igrejas mais antigas. Para mim, a relação entre as Igrejas mais antigas e as mais recentes é semelhante à relação entre jovens e velhos numa sociedade: constroem o futuro, mas uns com a sua força e os outros com a sua sabedoria. Correm-se sempre riscos, obviamente; as Igrejas mais jovens correm o risco de se sentirem autossuficientes, as mais antigas correm o risco de querer impor às mais jovens os seus modelos culturais. Mas o futuro constrói-se conjuntamente».
A Igreja? Um hospital de campanha…
O Papa Bento XVI, ao anunciar a sua renúncia ao Pontificado, retratou o mundo de hoje como sujeito a rápidas mudanças e agitado por questões de grande relevância para a vida da fé, que requerem vigor, seja do corpo, seja da alma. Pergunto ao Papa, também à luz daquilo que acabou de me dizer: «De que é que a Igreja tem maior necessidade neste momento histórico? São necessárias reformas? Quais são os seus desejos para a Igreja dos próximos anos? Que Igreja “sonha”?»
O Papa Francisco, tomando o incipit da minha pergunta, começa por dizer: «O Papa Bento teve um ato de santidade, de grandeza, de humildade. É um homem de Deus», demonstrando um grande afeto e uma enorme estima pelo seu predecessor.
«Vejo com clareza — continua — que aquilo de que a Igreja mais precisa hoje é a capacidade de curar as feridas e de aquecer o coração dos fiéis, a proximidade. Vejo a Igreja como um hospital de campanha depois de uma batalha. É inútil perguntar a um ferido grave se tem o colesterol ou o açúcar altos. Devem curar-se as suas feridas. Depois podemos falar de tudo o resto. Curar as feridas, curar as feridas… E é necessário começar de baixo».
A Igreja, por vezes, encerrou-se em pequenas coisas, em pequenos preceitos. O mais importante, no entanto, é o primeiro anúncio: “Jesus Cristo salvou-te”. E os ministros da Igreja devem ser, acima de tudo, ministros de misericórdia. O confessor, por exemplo, corre sempre o risco de ser ou demasiado rigorista ou demasiado laxista. Nenhum dos dois é misericordioso, porque nenhum dos dois toma verdadeiramente a seu cargo a pessoa. O rigorista lava as mãos porque remete-o para o mandamento. O laxista lava as mãos dizendo simplesmente “isto não é pecado” ou coisas semelhantes. As pessoas têm de ser acompanhadas, as feridas têm de ser curadas».
«Como estamos a tratar o povo de Deus? Sonho com uma Igreja Mãe e Pastora. Os ministros da Igreja devem ser misericordiosos, tomar a seu cargo as pessoas, acompanhando-as como o bom samaritano que lava, limpa, levanta o seu próximo. Isto é Evangelho puro. Deus é maior que o pecado. As reformas organizativas e estruturais são secundárias, isto é, vêm depois. A primeira reforma deve ser a da atitude. Os ministros do Evangelho devem ser capazes de aquecer o coração das pessoas, de caminhar na noite com elas, de saber dialogar e mesmo de descer às suas noites, na sua escuridão, sem perder-se. O povo de Deus quer pastores e não funcionários ou clérigos de Estado. Os bispos, em particular, devem ser capazes de suportar com paciência os passos de Deus no seu povo, de tal modo que ninguém fique para trás, mas também para acompanhar o rebanho que tem o faro para encontrar novos caminhos».
«Em vez de ser apenas uma Igreja que acolhe e recebe, tendo as portas abertas, procuramos mesmo ser uma Igreja que encontra novos caminhos, que é capaz de sair de si mesma e ir ao encontro de quem não a frequenta, de quem a abandonou ou lhe é indiferente. Quem a abandonou fê-lo, por vezes, por razões que, se forem bem compreendidas e avaliadas, podem levar a um regresso. Mas é necessário audácia, coragem».
Reflito naquilo que o Papa está a dizer e refiro o fato que existem cristãos que vivem em situações não regulares para a Igreja ou, de qualquer modo, em situações complexas, cristãos que, de um modo ou de outro, vivem feridas abertas. Penso nos divorciados recasados, casais homossexuais, outras situações difíceis. Como fazer uma pastoral missionária nestes casos? Em que insistir? O Papa faz sinal de ter compreendido o que pretendo dizer e responde.
«Devemos anunciar o Evangelho em todos os caminhos, pregando a boa nova do Reino e curando, também com a nossa pregação, todo o tipo de doença e de ferida. Em Buenos Aires recebia cartas de pessoas homossexuais, que são “feridos sociais”, porque me dizem que sentem como a Igreja sempre os condenou. Mas a Igreja não quer fazer isto. Durante o voo de regresso do Rio de Janeiro disse que se uma pessoa homossexual é de boa vontade e está à procura de Deus, eu não sou ninguém para julgá-la. Dizendo isso, eu disse aquilo que diz o Catecismo. A religião tem o direito de exprimir a própria opinião para serviço das pessoas, mas Deus, na criação, tornou-nos livres: a ingerência espiritual na vida pessoal não é possível. Uma vez uma pessoa, de modo provocatório, perguntou-me se aprovava a homossexualidade. Eu, então, respondi-lhe com uma outra pergunta: “Diz-me: Deus, quando olha para uma pessoa homossexual, aprova a sua existência com afeto ou rejeita-a, condenando-a?” É necessário sempre considerar a pessoa. Aqui entramos no mistério do homem. Na vida, Deus acompanha as pessoas e nós devemos acompanhá-las a partir da sua condição. É preciso acompanhar com misericórdia. Quando isto acontece, o Espírito Santo inspira o sacerdote a dizer a coisa mais apropriada».
«Esta é também a grandeza da confissão: o fato de avaliar caso a caso e de poder discernir qual é a melhor coisa a fazer por uma pessoa que procura Deus e a sua graça. O confessionário não é uma sala de tortura, mas lugar de misericórdia, no qual o Senhor nos estimula a fazer o melhor que pudermos. Penso também na situação de uma mulher que carregou consigo um matrimônio fracassado, no qual chegou a abortar. Depois esta mulher voltou a casar e agora está serena, com cinco filhos. O aborto pesa-lhe muito e está sinceramente arrependida. Gostaria de avançar na vida cristã. O que faz o confessor?»
«Não podemos insistir somente sobre questões ligadas ao aborto, ao casamento homossexual e uso dos métodos contraceptivos. Isto não é possível. Eu não falei muito destas coisas e censuraram-me por isso. Mas quando se fala disto, é necessário falar num contexto. De resto, o parecer da Igreja é conhecido e eu sou filho da Igreja, mas não é necessário falar disso continuamente».
«Os ensinamentos, tanto dogmáticos como morais, não são todos equivalentes. Uma pastoral missionária não está obcecada pela transmissão desarticulada de uma multiplicidade de doutrinas a impor insistentemente. O anúncio de carácter missionário concentra-se no essencial, no necessário, que é também aquilo que mais apaixona e atrai, aquilo que faz arder o coração, como aos discípulos de Emaús. Devemos, pois, encontrar um novo equilíbrio; de outro modo, mesmo o edifício moral da Igreja corre o risco de cair como um castelo de cartas, de perder a frescura e o perfume do Evangelho. A proposta evangélica deve ser mais simples, profunda, irradiante. É desta proposta que vêm depois as consequências morais».
«Digo isto também pensando na pregação e nos conteúdos da nossa pregação. Uma bela homilia, uma verdadeira homilia, deve começar com o primeiro anúncio, com o anúncio da salvação. Não há nada de mais sólido, profundo e seguro do que este anúncio. Depois deve fazer-se uma catequese. Assim, pode tirar-se também uma consequência moral. Mas o anúncio do amor salvífico de Deus precede a obrigação moral e religiosa. Hoje, por vezes, parece que prevalece a ordem inversa. A homilia é a pedra de comparação para calibrar a proximidade e a capacidade de encontro de um pastor com o seu povo, porque quem prega deve reconhecer o coração da sua comunidade para procurar onde está vivo e ardente o desejo de Deus. A mensagem evangélica não pode limitar-se, portanto, apenas a alguns dos seus aspectos, que, mesmo importantes, sozinhos não manifestam o coração do ensinamento de Jesus.»
O primeiro religioso Papa desde há 182 anos…
O Papa Francisco é o primeiro Pontífice proveniente de uma Ordem Religiosa, depois do camaldolense Gregório XVI, eleito em 1831, há 182 anos. Pergunto, pois: «Qual é hoje na Igreja o lugar dos religiosos e religiosas?»
«Os religiosos são profetas. São os que escolheram um seguimento de Jesus, que imitam a sua vida com a obediência ao Pai, a pobreza, a vida de comunidade e a castidade. Neste sentido, os votos não podem cair em caricaturas; de outro modo, por exemplo, a vida comunitária torna-se um inferno e a castidade um modo de viver como solteirões. O voto de castidade deve ser um voto de fecundidade. Na Igreja, os religiosos são chamados em particular a ser profetas que testemunham como Jesus viveu nesta terra e que anunciam como o Reino de Deus será na sua perfeição. Um religioso nunca deve renunciar à profecia. Isto não significa contrapor-se à parte hierárquica da Igreja, mesmo se a função profética e a estrutura hierárquica não coincidem. Estou falando de uma proposta sempre positiva, que, no entanto, não deve ser medrosa. Pensemos naquilo que fizeram tantos grandes santos monges, religiosos e religiosas, desde Santo Antão, abade. Ser profeta pode significar, por vezes, fazer ruído, não sei como dizer. A profecia faz ruído, alarido, alguns chamam «chinfrim». Mas, na realidade, o seu carisma é o de ser fermento: a profecia anuncia o espírito do Evangelho».
Dicastérios romanos, sinodalidade, ecumenismo
Considerando a referência à hierarquia, pergunto neste ponto ao Papa: «O que pensa dos Dicastérios romanos?»
«Os dicastérios romanos estão ao serviço do Papa e dos bispos: devem ajudar tanto as Igrejas particulares como as Conferências Episcopais. São mecanismos de ajuda. Em alguns casos, quando não são bem entendidos, correm o risco, pelo contrário, de se tornarem organismos de censura. É impressionante ver as denúncias de falta de ortodoxia que chegam a Roma. Creio que os casos devem ser estudados pelas Conferências Episcopais locais, às quais pode chegar uma válida ajuda de Roma. De fato, os casos tratam-se melhor no local. Os dicastérios romanos são mediadores, nem intermediários nem gestores».
Recordo ao Papa que no passado dia 29 de junho, durante a cerimônia da bênção e da imposição do pálio a 34 bispos metropolitas, tinha afirmado «o caminho da sinodalidade» como o caminho que leva a Igreja unida a «crescer em harmonia com o serviço do primado». Eis, então, a minha pergunta: «Como conciliar em harmonia primado petrino e sinodalidade? Que caminhos são praticáveis, também numa perspectiva ecumênica?»
«Devemos caminhar juntos: as pessoas, os Bispos e o Papa. A sinodalidade vive-se a vários níveis. Talvez seja tempo de mudar a metodologia do sínodo, porque a atual parece-me estática. Isto poderá também ter valor ecumênico, especialmente com os nossos irmãos ortodoxos. Deles se pode aprender mais sobre o sentido da colegialidade episcopal e sobre a tradição da sinodalidade. O esforço de reflexão comum, vendo o modo como se governava a Igreja nos primeiros séculos, antes da ruptura entre Oriente e Ocidente, dará frutos a seu tempo. Nas relações ecumênicas isto é importante: não só conhecer-se melhor, mas também reconhecer o que o Espírito semeou nos outros como um dom também para nós. Quero prosseguir a reflexão sobre como exercitar o primado petrino, já iniciada em 2007 pela Comissão Mista, e que levou à assinatura do documento de Ravena. É preciso continuar neste caminho».
Procuro compreender como o Papa vê o futuro da unidade da Igreja. Responde-me: «Devemos caminhar unidos nas diferenças: não há outro caminho para nos unirmos. Este é o caminho de Jesus».
E o papel da mulher na Igreja? O Papa referiu-se a este tema em várias ocasiões. Numa entrevista tinha afirmado que a presença feminina na Igreja não emergiu mais, porque a tentação do machismo não deixou espaço para tornar visível o papel que compete às mulheres na comunidade. Retomou a questão durante a viagem de regresso do Rio de Janeiro, afirmando que ainda não foi feita uma teologia profunda da mulher. Então, pergunto: «Qual deve ser o papel da mulher na Igreja? Como fazer para torná-lo hoje mais visível?»
«É necessário ampliar os espaços de uma presença feminina mais incisiva na Igreja. Temo a solução do “machismo de saias”, porque, na verdade, a mulher tem uma estrutura diferente do homem. E, pelo contrário, os argumentos que ouço sobre o papel da mulher são muitas vezes inspirados precisamente numa ideologia machista. As mulheres têm vindo a colocar perguntas profundas que devem ser tratadas. A Igreja não pode ser ela própria sem a mulher e o seu papel. A mulher, para Igreja, é imprescindível. Maria, uma mulher, é mais importante que os bispos. Digo isto, porque não se deve confundir a função com a dignidade. É necessário, pois, aprofundar melhor a figura da mulher na Igreja. É preciso trabalhar mais para fazer uma teologia profunda da mulher. Só realizando esta etapa se poderá refletir melhor sobre a função da mulher no interior da Igreja. O gênio feminino é necessário nos lugares em que se tomam as decisões importantes. O desafio hoje é exatamente esse: refletir sobre o lugar específico da mulher, precisamente também onde se exerce a autoridade nos vários âmbitos da Igreja.
O Concílio Vaticano II
«O que é que realizou o Concílio Vaticano II? Que é que foi?», pergunto-lhe à luz das suas afirmações precedentes, imaginando uma resposta longa e articulada. Tenho, pelo contrário, como que a impressão de que o Papa simplesmente considera o Concílio como um facto de tal modo indiscutível que para sublinhar a sua importância não vale a pena falar disso demasiado tempo.
«O Vaticano II foi uma releitura do Evangelho à luz da cultura contemporânea. Produziu um movimento de renovação que vem simplesmente do próprio Evangelho. Os frutos são enormes. Basta recordar a liturgia. O trabalho da reforma litúrgica foi um serviço ao povo como releitura do Evangelho a partir de uma situação histórica concreta. Sim, existem linhas de hermenêutica de continuidade e de descontinuidade. Todavia, uma coisa é clara: a dinâmica de leitura do Evangelho no hoje, que é própria do Concílio, é absolutamente irreversível. Depois existem questões particulares, como a liturgia segundo o Vetus Ordo2 [O rito litúrgico de S. Pio V, usado até ao Concílio Vaticano II]. Penso que a escolha do Papa Bento XVI foi prudente, ligada à ajuda a algumas pessoas que têm esta sensibilidade particular. Considero, no entanto, preocupante o risco de ideologização do Vetus Ordo, a sua instrumentalização.
Procurar e encontrar Deus em todas as coisas
O discurso do Papa Francisco sobre os desafios de hoje é muito desconcertante. Há uns anos tinha escrito que para ver a realidade é necessário o olhar da fé; de outra forma, vê-se uma realidade muito fragmentada. É este também um dos temas da Encíclica Lumen Fidei. Tenho em mente também algumas passagens dos discursos do Papa Francisco durante a Jornada Mundial da Juventude do Rio de Janeiro. Cito-lhos: «Deus é real se Se manifesta no hoje»; «Deus está em toda a parte». São frases que fazem eco da expressão inaciana «procurar e encontrar Deus em todas as coisas». Pergunto, então, ao Papa: «Santidade, como se faz para procurar e encontrar Deus em todas as coisas?»
«O que eu disse no Rio tem um valor temporal. Existe, de fato, a tentação de procurar Deus no passado ou no futuro. Deus está, certamente, no passado porque está nas pegadas que deixou. E está também no futuro como promessa. Mas o Deus “concreto”, digamos assim, é hoje. Por isso, os queixumes nunca, nunca, nos ajudam a encontrar Deus. As queixas de hoje de como o mundo anda “bárbaro” acabam por fazer nascer dentro da Igreja desejos de ordem entendidos como pura conservação, defesa. Não. Deus deve ser encontrado no hoje».
«Deus manifesta-Se numa revelação histórica, no tempo. O tempo inicia os processos, o espaço cristaliza-os. Deus encontra-Se no tempo, nos processos em curso. Não é preciso privilegiar os espaços de poder relativamente aos tempos, mesmo longos, dos processos. Devemos encaminhar processos, mais que ocupar espaços. Deus manifesta-Se no tempo e está presente nos processos da História. Isto faz privilegiar as ações que geram dinâmicas novas. E exige paciência, espera».
«Encontrar Deus em todas as coisas não é um eureka empírico. No fundo, quando desejamos encontrar Deus, quereríamos constatá-l’O de imediato com um método empírico. Assim não se encontra Deus. Ele encontra-Se na brisa ligeira sentida por Elias. Os sentidos que constatam Deus são os que Santo Inácio designa por “sentidos espirituais”. Inácio pede para abrir a sensibilidade espiritual para encontrar Deus para além de uma abordagem puramente empírica. É necessária uma atitude contemplativa: é o sentir que se vai pelo bom caminho da compreensão e do afeto no que diz respeito às coisas e às situações. O sinal de que se está neste bom caminho é o sinal da paz profunda, da consolação espiritual, do amor de Deus e de todas as coisas em Deus».
Certezas e erros
Se o encontro com Deus em todas as coisas não é um «eureka empírico» — digo ao Papa — e se, portanto, se trata de um caminho que lê a história, podem cometer-se erros…
«Sim, neste procurar e encontrar Deus em todas as coisas fica sempre uma zona de incertezas. Tem que ser assim. Se uma pessoa diz que encontrou Deus com certeza total e não aflora uma margem de incerteza, então não está bem. Para mim, esta é uma chave importante. Se alguém tem a resposta a todas as perguntas, esta é a prova de que Deus não está com ela. Quer dizer que é um falso profeta, que usa a religião para si próprio. Os grandes guias do povo de Deus, como Moisés, sempre deixaram espaço para a dúvida. Devemos deixar espaço ao Senhor, não às nossas certezas. É necessário ser humilde. A incerteza existe em cada discernimento verdadeiro que se abre à confirmação da consolação espiritual».
«O risco no procurar e encontrar Deus em todas as coisas é, pois, a vontade de explicar demasiado, de dizer com certeza humana e arrogância: “Deus está aqui”. Encontraremos somente um deus à nossa medida. A atitude correta é a agostiniana: procurar a Deus para O encontrar e encontrá-l’O para O procurar sempre. E muitas vezes procura-se por tentativas, como se lê na Bíblia. É esta a experiência dos grandes Pais da Fé, que são o nosso modelo. É necessário reler o capítulo 11 da Carta aos Hebreus. Abraão partiu sem saber para onde ia, pela fé. Todos os nossos antepassados da fé morreram vendo os bens prometidos, mas longe… A nossa vida não nos é dada como um libreto de ópera onde está tudo escrito, mas é ir, caminhar, fazer, procurar, ver… Deve-se entrar na aventura da procura do encontro e do deixar-se procurar e deixar-se encontrar por Deus».
«Porque Deus está antes, Deus está sempre antes, Deus antecede. Deus é um pouco como a flor da amendoeira da tua Sicília, Antônio, que floresce sempre antes [3 O Padre António Spadaro, autor desta entrevista é um jesuíta italiano, nascido na Sicília.] . Lemo-lo nos profetas. Portanto, encontra-se Deus caminhando, no caminho. E neste ponto alguém poderia dizer que isto é relativismo. É relativismo? Sim, se é mal interpretado, como espécie de panteísmo indistinto. Não, se é interpretado em sentido bíblico, onde Deus é sempre uma surpresa e, portanto, não sabes nunca onde e como O encontras, não és tu a fixar os tempos e os lugares do encontro com Ele. É necessário, portanto, discernir o encontro. Por isso, o discernimento é fundamental».
«Se o cristão é restauracionista, legalista, se quer tudo claro e seguro, então não encontra nada. A tradição e a memória do passado devem ajudar-nos a ter a coragem de abrir novos espaços para Deus. Quem hoje procura sempre soluções disciplinares, quem tende de modo exagerado à “segurança” doutrinal, quem procura obstinadamente recuperar o passado perdido, tem uma visão estática e involutiva. E deste modo a fé torna-se uma ideologia entre tantas. Tenho uma certeza dogmática: Deus está na vida de cada pessoa. Deus está na vida de cada um. Mesmo se a vida de uma pessoa foi um desastre, se se encontra destruída pelos vícios, pela droga ou por qualquer outra coisa, Deus está na sua vida. Pode-se e deve-se procurar na vida humana. Mesmo se a vida de uma pessoa é um terreno cheio de espinhos e ervas daninhas, há sempre um espaço onde a semente boa pode crescer. É preciso confiar em Deus».
Devemos ser otimistas?
Estas palavras do Papa recordam-me algumas reflexões suas do passado, nas quais o então cardeal Bergoglio escreveu que Deus vive já na cidade, vitalmente misturado no meio de todos e unido a cada um. É um outro modo, na minha opinião, para dizer o que Santo Inácio escreve nos Exercícios Espirituais, ou seja, que Deus «trabalha e opera» no nosso mundo. Pergunto-lhe, então: «Devemos ser otimistas? Quais são os sinais de esperança no mundo de hoje? Como conseguir ser otimista num mundo em crise?»
«Não gosto de usar a palavra “otimismo”, porque indica uma atitude psicológica. Gosto, pelo contrário, de usar a palavra “esperança”, segundo aquilo que se lê no capítulo 11 da Carta aos Hebreus, como já citei. Os Pais continuaram a caminhar, atravessando grandes dificuldades. E a esperança não engana, como lemos na Carta aos Romanos. Pensa, pelo contrário, no primeiro enigma da ópera Turandot, de Puccini», pede-me o Papa.
Naquele momento recordei, um pouco de memória, os versos daquele enigma da princesa que tem como resposta a esperança: Na noite escura voa um fantasma / Iluminado. / Sobe e abre as asas / Sobre a negra infinita humanidade. / Todo o mundo o invoca / E todo mundo o implora. / Mas o fantasma desaparece com a Aurora para renascer no / coração. / E cada noite nasce e cada dia morre! Versos que revelam o desejo de uma esperança que aqui, no entanto, é um fantasma cintilante e que desaparece com a aurora.
«Aqui está — continua o Papa —, a esperança cristã não é um fantasma e não engana. É uma virtude teologal e, portanto, definitivamente, um presente de Deus que não se pode reduzir ao otimismo, que é apenas humano. Deus não defrauda a esperança, não pode negar-Se a Si mesmo. Deus é todo promessa.
A arte e a criatividade
Fico impressionado pela citação de Turandot para falar do mistério da esperança. Gostaria de compreender melhor quais são as suas referências artísticas e literárias. Recordo-lhe que em 2006 tinha dito que os grandes artistas sabem apresentar com beleza as realidades trágicas e dolorosas da vida. Pergunto então quais são os artistas e escritores que prefere; se eles têm algo em comum…
«Gostei muito de autores diferentes entre si. Gosto muitíssimo de Dostoiévski e Hölderlin. De Hölderlin quero recordar aquela poesia para o aniversário da sua avó, que é de grande beleza e que me fez tanto bem espiritual. É aquela que termina com o verso “Que o homem mantenha o que o rapaz prometeu”. Impressionou-me também porque amava muito a minha avó Rosa, e ali Hölderlin compara a sua avó a Maria que gerou Jesus, que para ele é o amigo da terra que não considerou ninguém estrangeiro. Li I Promessi Sposi três vezes e tenho-o agora sobre a mesa para reler. Manzoni deu-me muito. A minha avó, quando eu era criança, ensinou-me de cor o início dos Promessi Sposi: “Quel ramo del lago di Como, che volge a mezzogiorno, tra due catene non interrotte di monti…”(Dos dois braços que formam o lago de Como, um deles dirige-se para o sul, entre duas cadeias ininterruptas de montanhas…) Também gostei muito de Gerard Manley Hopkins».
«Na pintura admiro Caravaggio: as suas telas falam-me. Mas também Chagall, com a sua Crucifixão Branca…».
«Na música gosto muito de Mozart, obviamente. Aquele Et Incarnatus est da sua Missa em Dó é insuperável: leva-te a Deus! Gosto muito de Mozart executado por Clara Haskil. Mozart preenche-me: não posso pensá-lo, devo ouvi-lo. Gosto de ouvir Beethoven, mas prometeicamente. E o intérprete mais prometeico para mim é Furtwängler. E depois as Paixões de Bach. O trecho de Bach de que gosto muito é o Erbarme Dich, o pranto de Pedro da Paixão segundo São Mateus. Sublime. Depois, num outro nível, não tão íntimo, gosto de Wagner. Gosto de ouvi-lo, mas não sempre. A Tetralogia do Anel executada por Furtwängler no Scala nos anos 50 é, para mim, a melhor. Mas também o Parsifal executado em 1962 por Knappertsbusch».
«Deveríamos também falar do cinema. La strada de Fellini é talvez o filme de que mais gostei. Identifico-me com aquele filme, no qual está implícita uma referência a São Francisco. Depois, creio ter visto todos os filmes com Anna Magnani e Aldo Fabrizi quando eu tinha entre 10 e 12 anos. Um outro filme de que muito gostei é Roma città aperta. Devo a minha cultura cinematográfica sobretudo aos meus pais, que nos levavam frequentemente ao cinema».
«Em todo o caso, em geral gosto muito dos artistas trágicos, especialmente os mais clássicos. Há uma bela definição que Cervantes coloca na boca do bacharel Carrasco para fazer o elogio da história de Dom Quixote: “Os rapazes têm-na entre as mãos, os jovens leem-na, os adultos entendem-na, os velhos elogiam-na”. Esta, para mim, pode ser uma boa definição para os clássicos».
Apercebo-me de estar absorvido por estas suas referências e de ter o desejo de entrar na sua vida, pela porta das suas escolhas artísticas. Seria um percurso a fazer, imagino que longo. E incluiria também o cinema, do neorrealismo italiano até a A Festa de Babette. Vêm-me à mente outros autores e outras obras que ele citou noutras ocasiões, mesmo menores ou menos conhecidas ou locais: de Martín Fierro de José Hernández à poesia de Nino Costa, a Il grande esodo de Luigi Orsenigo. Mas penso também em Joseph Malègue e José María Pemán. E, obviamente, em Dante e Borges, mas também em Leopoldo Marechal, o autor de Adán Buenosayres, El banquete de Severo Arcángelo e Megafón o la guerra.
Penso em particular precisamente em Jorge Luis Borges, porque Bergoglio, quando tinha 28 anos e era professor de Literatura em Santa Fé no Colegio de la Inmaculada Concepción, conheceu-o diretamente. Bergoglio ensinava os últimos dois anos do Liceu e encaminhou os seus rapazes para a escrita criativa. Também eu tive uma experiência parecida à sua, quando tinha a mesma idade, no Instituto Massimo de Roma, fundando BombaCarta, e conto-lha. No final, peço ao Papa para me contar a sua experiência.
«Foi uma coisa um pouco arriscada — responde. Devia fazer de tal modo que os meus alunos estudassem El Cid. Mas os rapazes não gostavam. Pediam-me para ler García Lorca. Então decidi que deveriam estudar El Cid em casa e durante as lições eu trataria os autores de que os rapazes mais gostavam. Obviamente, os jovens queriam ler as obras literárias mais “picantes”, contemporâneas como La casada infiel ou clássicas como La Celestina de Fernando de Rojas. Mas, ao ler estas coisas que os atraíam naquele momento, ganhavam mais gosto em geral pela literatura, pela poesia e passavam a outros autores. Para mim, esta foi uma grande experiência. Cumpri o programa, mas de modo desestruturado, isto é, não ordenado segundo aquilo que estava previsto, mas segundo uma ordem que resultava natural na leitura dos autores. E esta modalidade tinha muito que ver comigo: não gostava de fazer uma programação rígida, mas eventualmente saber mais ou menos onde chegar. Então comecei também a fazê-los escrever. No final decidi dar a ler a Borges dois contos escritos pelos meus rapazes. Conhecia a sua secretária, que tinha sido a minha professora de piano. Borges gostou muitíssimo e, então, ele propôs escrever a introdução de uma colectânea».
«Então, Santo Padre, para a vida de uma pessoa a criatividade é importante?», pergunto-lhe. Ele ri e responde: «Para um jesuíta é extremamente importante! Um jesuíta deve ser criativo».
Fronteiras e laboratórios
Criatividade, portanto: para um jesuíta é importante. O Papa Francisco, ao receber os Padres e colaboradores de La Civiltà Cattolica, tinha traçado uma tríade de outras características importantes para o trabalho cultural dos jesuítas. Regresso à memória desse dia, o passado 14 de junho. Recordo que então, no colóquio prévio ao encontro com todo o nosso grupo, me tinha pré-anunciado a tríade: diálogo, discernimento, fronteira. E tinha insistido particularmente no último ponto, citando-me Paulo VI, que num famoso discurso tinha dito dos jesuítas: «Onde quer que, na Igreja, também nos campos mais difíceis e de vanguarda, nas encruzilhadas das ideologias e nas trincheiras sociais, tenha havido e haja o confronto entre as exigências ardentes do homem e a mensagem perene do Evangelho, lá estiveram e estão presentes os jesuítas».
Peço ao Papa Francisco algum esclarecimento: «Pediu-nos para estarmos atentos, para não cair na “tentação de domesticar as fronteiras: deve ir-se em direção às fronteiras, e não trazer as fronteiras para casa a fim de envernizá-las um pouco e domesticá-las”. A que é que se referia? O que é que pretendia dizer-nos exatamente? Esta entrevista foi acordada num grupo de revistas dirigidas pela Companhia de Jesus: que convite deseja exprimir-lhes? Quais devem ser as suas prioridades?».
«As três palavras-chave que dirigi a La Civiltà Cattolica podem ser extensivas a todas as revistas da Companhia, quiçá com diferentes acentuações segundo a sua natureza e os seus objetivos. Quando insisto na fronteira, de modo particular, refiro-me à necessidade para o homem da cultura de estar inserido no contexto em que opera e sobre o qual reflete. Está sempre à espreita o perigo de viver num laboratório. A nossa fé não é uma fé-laboratório, mas uma fé-caminho, uma fé histórica. Deus revelou-Se como história, não como um compêndio de verdades abstratas. Tenho medo dos laboratórios, porque no laboratório pegam-se nos problemas e levam-se para a própria casa, para domesticá-los, para os envernizar, fora do seu contexto. Não é preciso levar a fronteira para casa, mas viver na fronteira e ser audazes».
Peço ao Papa se pode dar algum exemplo baseado na sua experiência pessoal.
«Quando se fala de problemas sociais, uma coisa é reunir-se para estudar o problema da droga num bairro-de-lata, e uma outra coisa é ir lá, morar e compreender o problema a partir de dentro e estudá-lo. Há uma carta genial do P. Arrupe aos Centros de Investigación y Acción Social (CIAS) sobre a pobreza, na qual se diz claramente que não se pode falar de pobreza se não se experimenta com inserção direta nos lugares nos quais ela se vive. Esta palavra “inserção” é perigosa, porque alguns religiosos a tomaram como uma moda, e aconteceram desastres por falta de discernimento. Mas é verdadeiramente importante».
«E as fronteiras são tantas. Pensemos nas religiosas que vivem nos hospitais: elas vivem nas fronteiras. Eu estou vivo graças a uma delas. Quando tive o problema no pulmão no hospital, o médico deu-me penicilina e estretomicina em certas doses. A Irmã que estava de serviço triplicou as doses, porque tinha intuição, sabia o que fazer, porque estava com os doentes todo o dia. O médico, que era verdadeiramente bom, vivia no seu laboratório, a Irmã vivia na fronteira e dialogava com a fronteira todos os dias. Domesticar a fronteira significa limitar-se a falar de uma posição distante, fechar-se nos laboratórios. São coisas úteis, mas a reflexão para nós deve sempre partir da experiência».
Como o homem se compreende a si mesmo
Pergunto, então, ao Papa se isto é válido e de que modo, mesmo para uma fronteira cultural importante, como é a do desafio antropológico. A antropologia a que a Igreja tradicionalmente tem feito referência e a linguagem com a qual a expressou mantêm-se como uma referência sólida, fruto da sabedoria e da experiência seculares. Todavia, o homem a que a Igreja se dirige já não parece compreendê-las ou considerá-las suficientes. Começo a pensar no fato de que o homem interpreta-se num modo diferente do passado, com categorias diferentes. E isto também por causa das grandes mudanças na sociedade e de um mais amplo estudo de si próprio…
O Papa neste momento levanta-se e vai buscar o breviário à sua escrivaninha. É um breviário em Latim, já muito gasto pelo uso. Abre-o no Ofício de Leitura da Feria sexta, isto é, sexta-feira da XXVII semana. Lê-me uma passagem tirada do Commonitórium Primum de São Vicente de Lérins: ita étiam christiánae religiónis dogma sequátur has decet proféctuum leges, ut annis scílicet consolidétur, dilatétur témpore, sublimétur aetáte (“Mesmo o dogma da religião cristã deve seguir estas leis de aperfeiçoamento. Progride, consolidando-se com os anos, desenvolvendo-se com o tempo, aprofundando-se com a idade”)».
E assim continua o Papa: São Vicente de Lérins faz a comparação entre o desenvolvimento biológico do homem e a transmissão de uma época à outra do depositum fidei, que cresce e se consolida com o passar do tempo. Aqui está: a compreensão do homem muda com o tempo e assim também a consciência do homem aprofunda-se. Pensemos no tempo em que a escravatura era aceita ou a pena de morte era admitida sem nenhum problema. Assim, cresce-se na compreensão da verdade. Os exegetas e os teólogos ajudam a Igreja a amadurecer o próprio juízo. Também as outras ciências e a sua evolução ajudam a Igreja neste crescimento na compreensão. Existem normas e preceitos eclesiais secundários que noutros tempos eram eficazes, mas que agora perderam valor ou significado. Uma visão da doutrina da Igreja como um bloco monolítico a defender sem matizes é errada».
«De resto, em cada época o homem procura compreender e exprimir melhor a sua própria realidade. E assim o homem, com o tempo, muda o modo de se perceber a si mesmo: uma coisa é o homem que se exprime esculpindo a Nike (Vitória) de Samotrácia, outra a de Caravaggio, outra a de Chagall e ainda outra a de Dalí. Também as formas de expressão da verdade podem ser multiformes e isto é necessário para a transmissão da mensagem evangélica no seu significado imutável».
«O homem está à procura de si mesmo, e, obviamente, nesta procura pode também cometer erros. A Igreja viveu tempos de genialidade, como, por exemplo, o do tomismo. Mas viveu também tempos de decadência de pensamento. Por exemplo, não podemos confundir a genialidade do tomismo com o tomismo decadente. Eu, infelizmente, estudei a filosofia com manuais de tomismo decadente. No pensar o homem, portanto, a Igreja deveria tender à genialidade, não à decadência».
«Quando é que uma expressão do pensamento não é válida? Quando o pensamento perde de vista o humano ou até quando tem medo do humano ou se deixa enganar sobre si mesmo. É o pensamento enganado que pode ser representado como Ulisses diante do canto das sereias, ou como Tannhäuser, rodeado numa orgia por sátiros e bacantes, ou como Parsifal, no segundo ato da ópera wagneriana, no castelo de Klingsor. O pensamento da Igreja deve recuperar genialidade e entender sempre melhor como é que o homem se compreende hoje, para desenvolver e aprofundar o próprio ensino».
Rezar
Coloco ao Papa uma última pergunta sobre o seu modo preferido de rezar.
«Rezo o Ofício todas as manhãs. Gosto de rezar com os Salmos. Depois, a seguir, celebro a Missa. Rezo o Rosário. O que verdadeiramente prefiro é a Adoração vespertina, mesmo quando me distraio e penso noutra coisa ou mesmo quando adormeço rezando. Assim, à tarde, entre as sete e as oito, estou diante do Santíssimo durante uma hora, em adoração. Mas também rezo mentalmente quando espero no dentista ou noutros momentos do dia».
«E a oração é para mim uma oração “memoriosa”, cheia de memória, de recordações, também memória da minha história ou daquilo que o Senhor fez na sua Igreja ou numa paróquia particular. Para mim é a memória de que Santo Inácio fala na Primeira Semana dos Exercícios, no encontro misericordioso com Cristo Crucificado. E pergunto-me: “Que fiz por Cristo? Que faço por Cristo? Que farei por Cristo?” É a memória de que fala Inácio também na Contemplatio ad amorem, quando pede para trazer à memória os benefícios recebidos. Mas, sobretudo, eu sei também que o Senhor tem memória de mim. Eu posso esquecer-me d’Ele, mas sei que Ele nunca, nunca, se esquece de mim. A memória funda radicalmente o coração de um jesuíta: é a memória da graça, a memória de que se fala no Deuteronômio, a memória das obras de Deus que estão na base da aliança entre Deus e o seu povo. É esta memória que me faz filho e me faz ser também pai».
Conclusão
Dou-me conta que continuaria ainda por muito tempo este diálogo, mas sei que, como o Papa disse uma vez, não é preciso «maltratar os limites». Dialogamos amplamente por mais de seis horas, ao longo de três encontros, nos dias 19, 23 e 29 de Agosto. Aqui preferi articular o discurso sem assinalar os intervalos, para não perder o fio condutor. A nossa foi, na realidade, uma conversa, mais que uma entrevista: as perguntas fizeram de pano de fundo sem limitá-la em parâmetros pré-definidos e rígidos. Mesmo linguisticamente atravessamos fluidamente o Italiano e o Espanhol sem que nos apercebêssemos de quando em vez das mudanças. Não houve nada de mecânico e as respostas nasceram no interior de um pensamento que aqui procurei transmitir, de modo sintético, o melhor que puder.
Fonte: Vatican News